Caminho
Português atravessa os bosques da Galícia
Perdão
“Perdoar
é um ato grandioso. A intensidade do amor pode ser medida pela capacidade de
perdoar. Quando acolhemos alguém com amor verdadeiro, ele manifesta a perfeição
original. Caímos em ilusão quando não somos capazes de acolher os outros com amor
verdadeiro. Devemos acolher tudo e todos, confiando em Deus, que abrange todos
os seres e todas as coisas”.
Do livro
Kami wa Ikiteiru (Deus está vivo em tudo e todos), de Seicho Taniguchi, líder
religioso japonês, fundador da Seicho-No-Ie.
Verdes, refrescantes...
Como já havia
peregrinado 172,4 quilômetros desde Oporto, em Portugal, e já estava cada vez
mais perto de Santiago de Compostela, começava a sentir saudade do Caminho... Por
isso, neste domingo, 13 de junho, há 10 anos, planejava seguir o guia: a partir
de Pontevedra, fazer apenas 18,7 quilômetros, caminhando pela Via Romana XIX, e
ficar no albergue de peregrinos de Briallos – Portas. Após muita lama, contudo,
encontrei o albergue fechado e num ponto isolado... Decidi seguir mais 5,1
quilômetros até Caldas de Reis, o famoso balneário do Império Romano na Galícia.
A jornada
compreendeu mais 23,8 quilômetros. Lembro que a primeira das etapas na Espanha,
na sexta-feira 11, foi de Tui a Redondela (30,9 quilômetros) e a segunda, no
sábado 12, de Redondela a Pontevedra (18,2 quilômetros).
O guia El
País/Aguilar sugere uma etapa curta, de 18,7 quilômetros, de Pontevedra até o albergue
municipal “nuevo y de excelente calidad” em Briallos – Portas. Estava de acordo,
pois desde que coloquei o pé no caminho, decidi revezar minhas estadias, ora
ficando em albergues – até o momento conheci o de São Pedro de Rates e Ponte de
Lima, em Portugal, e o de Redondela, na Espanha –, ora em residencial, hostel,
hotel – em Barcelos e Rubiães, em Portugal, e em Tui e Pontevedra, na Espanha –,
pois nem sempre é fácil suportar a sinfonia de roncos, fila ao banheiro, falta
de wifi etc. Assim, depois de me
hospedar no Rúas, em Pontevedra, seguindo a dica do baiano Jeferson, era a vez
de enfrentar um albergue, ainda mais com a “certificação” do guia.
Dou
adeus à Pontevedra e atravesso a Ponte del Burgo. Incluída no escudo de armas
da cidade, a ponte medieval sobre a ría de Pontevedra tinha
originalmente 15 arcos rebaixados de meio ponto e hoje apenas 11 são visíveis
devido ao assoreamento das margens. O Caminho segue por um
bosque verde, refrescante e com lama até Alba, onde paro alguns minutos
para apreciar a Igreja de Santa María de Alba. A subida é suave e continuo por
um trecho à margem da ferrovia, adentrando em seguida na zona vinícola de Santo
Amaro, conhecida pela produção do vinho albariño. Ao cruzar a N-550, que segue
em paralelo com o Caminho, a placa informa que o acesso a Compostela, pela
estrada, está a 40 quilômetros...
Até La Seca
as plantações de uva se sucedem e após dois quilômetros chego ao Albergue de Peregrinos
de Briallos – Portas. A pretensão de ficar, contudo, não deu certo. Após quase
cinco horas de caminhada (sai às 7h45 e era por volta das 12h30), enfrentando trechos com lama, apesar de a chuva ter parado de vez, encontrei o
albergue fechado. Relendo a indicação do guia, está lá o alerta: “llaves em
el...” e um número de telefone. Não lembrei do detalhe e me socorri com morador
vizinho, que me confirmou: sim, o albergue fica fechado, e as chaves podem ser
retiradas com uma senhora, na casa próxima à ponte...
Passei a avaliar o custo/benefício e considerei que o albergue, embora novo, não estava bem localizado, longe de tudo, sem lugar
próximo para comer e comprar mantimentos. Para não me arriscar, resolvi
capitular e voltar a investir em mais comodidade:
– Amigo, caso
não tenha ninguém na casa da mulher da chave, onde fica um hotel? – perguntei
ao morador.
– Aqui não
tem hotel – me garantiu. Você só vai encontrar em Caldas de Reis, que fica a 5
quilômetros depois que retornar à estrada.
Decidi
seguir e, ao passar pela casa da tal mulher que fica com a chave do
albergue (pois, pelo jeito, não há hospitaleiro...), estava fechada! Continuei
a caminhar, com ânimo de percorrer mais cinco quilômetros. Avisto a Capela de
Santa Lucía e me aquieto. Continuo seguindo paralelo à N-550, atravesso plantações
de uvas e já nos arredores da cidade encontro a Igreja de Santa María de Caldas de Reis. Adiante está
a Igreja de São Tomás de Cantuária, construída com as pedras do castelo que a
rainha Urraca I tinha em Caldas. Diz a tradição que o templo foi dedicado a São
Tomás pelo fato de o arcebispo e mártir inglês ter ficado em Caldas ao peregrinar
a Compostela antes de ser assassinado em 1170.
Caldas de Reis está localizada no Noroeste da Província de
Pontevedra, no vale do rio Umia. Um mergulho na história da vila registra que os
primeiros habitantes foram os cilenos, um povo castrejo (lugar fortificado)
pré-romano que ocupava o território entre os rios Ulla e Lérez. A vila, capital
da região, foi denominada Aqua Celenae, ou Águas Celenas, devido às águas termais que atraíram os romanos, resultando na sua ocupação e implantação de um mansio, edifício existente ao longo das vias romanas. Caldas, inclusive, é citada no Itinerário de Antonino,
o mapa criado no século III, na rota da Via Romana XIX, que ligava Braga a Astorga.
A vila foi sede episcopal até 569, quando esta condição foi transferida para Iria
Flávia, atual Padrón – cidade que é reconhecida como o local de chegada da
barca de pedra que trouxe o corpo do Apóstolo Santiago à Península Ibérica, e
que só viria a ser encontrado no primeiro terço do século IX. Caldas denomina-se
“de Reis” pois foi onde nasceu Afonso VII de Leão e Castela, filho da rainha
Urraca I e de Raimundo de Borgonha, conde da Galícia.
No Centro de Caldas de Reis está a Ponte de Bermaña, que tem esse nome por cruzar o rio do mesmo
nome. De origem romana e reformada no século XVI, ela é formada por três
arcos de meio ponto, com dupla inclinação.
Embora cansado
e faminto pela esticada no percurso, entre tantas opções de hospedagem, por 25
euros fiquei no Hotel Lotus. Por mais nove euros devorei um menu peregrino no
restaurante do mesmo dono...
Buen Camino!
#pedrasdocaminho
#10yearchallenge
Ponte del Burgo, sobre a ría de Pontevedra: 11 dos 15 arcos originais
Concha
de vieira, no detalhe da Ponte del Burgo
Igreja
de Santa María de Alba
Sinalização
facilita o peregrino no Caminho Português pela Galícia
Subindo
para Santo Amaro
Caminho
segue à margem da ferrovia
Placa detalha a construção da Via Romana XIX
Juntos,
marcos do Caminho e da Via Romana XIX
Atravessando a famosa zona vinícola da Galícia
Caminho
segue paralelo com a N-550
Acesso
ao albergue de peregrinos de Briallos – Portas
Encontro
o albergue fechado, sem hospitaleiro...
Ao
retomar o Caminho, a singela Ermita de Santa Lucía
Videiras
continuam enfeitando o Caminho
Igreja
de Santa María de Caldas de Reis
Casa
do Concello, sede do ayuntamiento de Caldas de Reis
Igreja
de São Tomás de Cantuária
Ponte
sobre o rio Bermaña, no centro de Caldas de Reis
Postado em
13.06.10, 14h34 >>>>
Mãos ao alto
ou o espírito do Caminho?
Nem tanto na
paisagem, já que os bosques do Norte de Portugal e os da Galícia, na Espanha,
são muito semelhantes, mas é principalmente no bolso que o peregrino sente a
diferença ao entrar em solo espanhol no Caminho Português rumo a Santiago de
Compostela.
Na Espanha,
onde estou desde sexta-feira 11, após atravessar a Ponte Internacional, que
liga os dois países por Valença do Minho e Tui, em quase tudo os preços dobram;
e algumas vezes chegam a triplicar – não significando, necessariamente, melhor
qualidade no produto ou na prestação do serviço.
O motivo,
aliás, nem me atrevo a aprofundar, pois, numa breve análise, percebi algo
cultural nas majorações... Pelo sim, pelo não, para quem está de passagem,
apenas com olhar peregrino, o melhor é deixar que cada um enfrente a crise da
forma que melhor lhe convier e com as armas que tiver.
Assim é que,
na semana passada, quando ainda estava em Portugal, causou polêmica o apelo do
presidente Cavaco Silva, por uma “atitude patriótica” do português, sugerindo
que passe suas férias “cá dentro”. A declararão foi criticada pelo ministro
português da Economia, Vieira da Silva, ao lembrar ao presidente que o fluxo de
turistas estrangeiros é infinitamente maior do que o de domésticos e clamar, da
mesma forma, “que os outros países não façam o mesmo”...
Trapalhadas
à parte, menos de uma semana depois estavam juntos, como não poderia ser
diferente, José Sócrates, primeiro-ministro de Portugal, e José Luis Rodríguez
Zapatero, presidente do governo espanhol, para comemorar, com atos nos dois
países, os 25 anos de Portugal e Espanha na Comunidade Europeia.
Nos
discursos, a oportunidade para, se não agradecer os parceiros, enfatizar
publicamente toda a importância que a adesão ao bloco representou em termos de
desenvolvimento, progresso, investimentos..., especialmente – e várias vezes
essa situação foi lembrada – “neste momento de crise”.
O Caminho,
certamente, reflete todo esse clima por que passam Portugal e Espanha (além de
outros países, como Grécia e Irlanda), cada um tentando se virar como pode. No
fundo, no fundo, pelo menos para mim, peregrino brasileiro, dois povos gentis
que parecem não saber o que fazer para me deixar à vontade, como se em casa
estivesse – um deles, claro, cobrando um pouco mais por isso...
Como é
impossível não comparar com o Caminho Francês, os três trechos na Espanha do
Caminho Português – os até agora percorridos – ainda têm muito a aprender sobre
o chamado “espírito do Caminho”. Aliás, um aprendizado que merece ser também
aperfeiçoado, e mesmo profissionalizado, no percurso em Portugal.
Ao repassar
os números neste domingo 13, após ter completado oito dias desde que iniciei a
peregrinação em Oporto, já caminhei 196,2 quilômetros.
Em cinco
etapas, uma por dia, foram 123,3 quilômetros em solo português – ou um pouquinho
menos, pois a conta inclui os 3,2 quilômetros entre Valença, a última cidade de
Portugal, a Tui, a primeira da Espanha.
A saber:
37,1 quilômetros, no domingo 6, do Oporto a São Pedro de Rates; 15,5
quilômetros, na segunda 7, de Rates a Barcelos; 33 quilômetros, na terça 8, de
Barcelos a Ponte de Lima; 18,2 quilômetros, na quarta 9, de Ponte de Lima a
Rubiães; e 19,5 quilômetros, na quinta 10, Rubiães a Tui.
E mais 72,9
quilômetros em terras espanholas, feitas em três etapas: na sexta 11, de Tui a
Redondela, 30,9 quilômetros; no sábado 12, de Redondela a Pontevedra, 18,2
quilômetros; e neste domingo 13, de Pontevedra a Caldas de Reis, 23,8
quilômetros.
Tudo isso de
acordo com os números do guia El País/Aguilar.
Segundo o
mesmo guia, posso dizer que neste momento estão restando 41,9 quilômetros para
estar junto às relíquias do Apóstolo. Um percurso que pretendo fazer em mais
duas etapas: amanhã, segunda 14, Caldas de Reis a Padrón, 18,4 quilômetros; e
na terça 15, Padrón a Santiago de Compostela, os últimos 23,6 quilômetros.
Números,
números, números...
Perdão!
Sei que a
peregrinação a Santiago de Compostela é muito mais que números!
Para quem
pretende um dia realizar o Caminho Português, esses números, contudo, poderão
fazer a diferença.
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