sábado, 6 de julho de 2019

Venci meus demônios?


Peregrino e sua sombra: batalhas travadas no Caminho de Santiago

A peregrinação pelo Caminho de Santiago representa desafios diários. Da mesma forma que uma força incrível te lança ao Caminho com os primeiros raios da manhã – e você comemora –, teus demônios tentam te tirar do Caminho... Reflexões ao final da peregrinação pelo Caminho Francês, de Saint Jean Pied de Port a Santiago de Compostela, com cerca de 800 quilômetros, realizada há 10 anos durante 29 dias. Viva Santiago!
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

DESPEDIDA!

As reflexões sobre o Caminho ecoarão até o último dia, o que me obrigará de vez em quando supri-las diretamente na fonte. Em 2010, programo a volta, para peregrinar o Caminho Português... Afinal, dia após dia, continuam a surgir questionamentos, que levam a conclusões e que geram novos questionamentos, numa dialética sem fim, formando uma espiral que me lembra muito o milagre do Princípio Único da Vida. Num desses momentos me flagrei indagando: afinal, venci meus demônios? Sim, venci. Claro que venci!!! Cheguei a Santiago, depois de 29 dias caminhando. Esta é a prova que venci.
O Caminho é feito de desafios diários. Da mesma forma que uma força incrível te lança ao Caminho com os primeiros raios da manhã – e você comemora –, teus demônios tentam te tirar do Caminho. A batalha é diária. Diária, não. Trata-se de uma batalha minuto a minuto. Um descuido e você está fora.
Esse é um fator imponderável do Caminho.
O “descuido” pode vir na forma de milhão de coisas. Uma infecção nas bolhas do pé. Um telefonema informando que um familiar querido está no leito de morte...
Vi gente desistir. Anunciando que iria desistir e, finalmente, desistir. Não aguentou a pressão; a dor. Vi outros que ameaçaram desistir e não desistiram. Resistiram. E venceram.
Fui um desses. Travei várias batalhas com meus demônios durante o Caminho. A mais feroz, talvez, iniciou na tarde do terceiro dia de Caminho, quando cheguei a Pamplona, a primeira grande cidade da rota jacobea. Naquele dia havia saído de Zubiri. Já tinha feito dois trechos – de Saint Jean Pied de Port a Roncesvalles e de Roncesvalles a Zubiri – e ainda estava sob o impacto da travessia dos Pirineus.
Era uma segunda-feira. Em Zubiri a experiência havia sido excelente. No domingo, cheguei no momento em que uma procissão anunciava o início da Semana de Corpus Christi. Optei por um albergue particular. Conheci espanhóis muito gentis. No bar onde comi um bocadilho, o dono, ao saber que eu era brasileiro, colocou um CD com músicas da Roberta Miranda. Acordei disposto, tendo como meta Pamplona, onde é famosa a festa a São Firmino, que em 2009 ficará na história pela morte de um corredor, atingido pelos chifres do touro Capuccino. O trecho foi muito difícil. Cheguei a parar alguns quilômetros antes de chegar ao centro de Pamplona, num grande parque, me sentei no chão, tirei as botas, fiz um lanche, descansei...
Ao chegar às muralhas que protegem a entrada de Pamplona me empolguei e tirei muitas fotos, especialmente da ponte elevadiça – que havia visto apenas em fotos e filmes sobre a época medieval. Devido às obras públicas que confundiram a sinalização do Caminho, dei algumas voltas por ruas estreitas, cansei, até chegar ao albergue municipal. Peguei a cama 33 do beliche, a de cima. Seria a primeira vez que dormiria no alto e ainda tinha dúvidas se era melhor ou pior que dormir na cama de baixo.
Foi difícil lavar e secar as roupas na lavanderia do albergue. Tive que dizer não para um espanhol que queria colocar suas roupas para secar junto com as minhas – mas queria que eu primeiro esperasse ele lavar as roupas dele... Mesmo com as indicações feitas num mapa fornecido pelo hospitaleiro não localizei o restaurante indicado. Nas ruas em obras e sem sinalização foi difícil encontrar um local para comer. Não encontrei menu e fui obrigado a comer uma tortilha...
Todos esses momentos foram de um puxa-estica espetacular. Só agora entendo as trevas que iam surgindo, de formas diferentes. Algumas, acabava vencendo; noutras, sucumbia, ainda que isso significasse apenas me cansar, me estressar, me resignar. Outros inúmeros detalhes pareciam me aborrecer – embora logo em seguida não admitia que alguma coisa, muito menos estranha, pudesse me aborrecer.
Quando a noite chegou, já havia feito muitas coisas, recorrido ao guia de El País/Aguilar, desabafado com dois peregrinos brasileiros, e já admitia restringir a quarta etapa até o próximo pueblo, denominado Cizur Menor – pelo nome dá para imaginar o tamanho...
Pouco mais de 5 quilômetros, fácil. Vou até lá e paro, descanso, durmo, sei lá... saio do Caminho. Ideia idiota, naturalmente. Mas ela martelou minha cabeça durante muito tempo. Cheguei mesmo, com auxílio da hospitaleira, a ligar até o albergue de Cizur Menor, para fazer minha reserva. Até neste momento, o telefone público estava sendo ocupado por um brasileiro, que falava com familiares, a cobrar. E como falava! A hospitaleira deu-lhe uma bronca, pois fazia muito tempo que ele estava usando o aparelho.
Antes disso, por algum impulso que hoje considero impossível, saquei o celular e liguei para Cizur Menor e entreguei para a hospitaleira, que falou – foi informada, ou confirmada, de que não era possível fazer reserva... – e a insensível aproveitou para tirar outra dúvida, que não tinha nada a ver comigo. Mas usou minha ligação, a uma taxa absurda, para tratar de assunto pessoal. Com certeza teria ficado muito mais barato se tivesse utilizado o telefone público...
A decisão era minha.
Fui dormir na dúvida. Amanhã é outro dia. E, realmente, foi outro dia. Entrei no Caminho e enfrentei de frente o desafio. Passei Cizur Menor e estava tão bem que as dúvidas e incertezas do dia anterior se dissiparam. A quarta etapa foi decisiva. Muito mais do que me programar para chegar em Puente La Reina, decidi pegar um trecho do Caminho Aragonês e fui direito para Eunate conhecer a ermida erguida pelos Cavaleiros Templários e o seu ermitão – que me recitou Gonçalves Dias...
O que aconteceu você sabe. Buen Camino!

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Mais um em mim!


Está na Compostela: também sou Dnum. Aloisium Carolum Ferraz

“Vou continuar o mesmo, com todas as qualidades e defeitos...” Era o que achava ao final da peregrinação pelo Caminho Francês, de Saint Jean Pied de Port a Santiago de Compostela, com cerca de 800 quilômetros, realizada há 10 anos durante 29 dias. Viva Santiago!
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

APENAS... MAIS UM EM MIM!

– Você voltará outro!
Nunca compartilhei a ideia de que a peregrinação a Santiago de Compostela seja capaz de me mudar. Quem me conhece há mais tempo pode até achar essa necessidade. Eu não. Estou bem. Tenho ao meu lado pessoas que me amam do jeito que sou, inclusive uma cadela que me obedece e abana o toco de seu rabo quando me vê... exerço atividades profissionais proativas que, além de me manter e a minha família, me dão a oportunidade de ajudar inúmeras pessoas (e se não ajudo tanto quanto gostaria, pelo menos não prejudico...).
Por isso, pelo menos da minha parte, selo o compromisso de que não vou, ou pelo menos não quero e não pretendo mudar. Vou continuar o mesmo, com todas as qualidades e defeitos... apenas, é claro, enriquecido com a experiência de ter feito uma caminhada – que muitos julgam maluca (“gastando sola”, resumiu o “Macarrão” no blog do Jornal da Orla) – de 800 quilômetros sobre solo europeu, a maior parte na Espanha. Um país que passei a compreender melhor e amar seu povo, tanto quanto muitos dos espanhóis que conheci amam o povo brasileiro.
Portanto, sem essa de mudar, mas de agregar, somar: a partir de agora sou apenas... mais um em mim! Afinal, escrita em latim e assinada por Jenaro Fabrício F., Canonicus Deputatus pro Peregrinis, a Compostelana que recebi num anexo da Catedral de Santiago de Compostela me assegura outra identidade. Agora, além de Cebola, Cê, Luiz Carlos Ferraz, Lú, Neguinho, entre outras variações, sou o Dnum. Aloisium Carolum Ferraz.
Aloisium, tudo bem. Mas, para quem nunca teve vocação para coroinha, ainda não me acostumei com Carolum no meio do nome, do qual Carlos teria derivado. O Ferraz se manteve. O Dnum equivale a senhor...
Depois de um dia emocionante em Santiago de Compostela, a cidade repleta de peregrinos e turistas, a grande Feira Medieval ocupando as ruas do Centro Histórico, domingo 5 logo cedo peguei o ônibus que me levou a Finisterre, na Costa da Morte...
Não é a primeira vez que chego ao fim do mundo. A primeira foi no início dos anos 90, quando conheci Ushuaia, na Terra do Fogo, Patagônia Argentina, que também se intitula a cidade do fim do mundo – por ser a mais austral, a mais perto da Antártida. Na ocasião estava com o colega Lauro Tubino, do jornal A Tribuna. Éramos convidados do empresário Pepe Altstut, idealizador da Memorial Necrópole Ecumênica, “a mais alta do mundo”, para apresentar a cidade argentina que estava firmando um convênio de irmanação com Santos... Aliás, como está esse intercâmbio?
Foi uma experiência muito interessante, conheci a neve, andei de snowjet, entrevistei políticos, empresários do segmento turístico e cientistas – na época, um dos focos avançados de estudos era, como deve ser ainda hoje, a destruição da camada de ozônio pelos gases que causam o efeito estufa, especialmente o CO2...
Meus textos foram publicados no Jornal Perspectiva, claro, e no Jornal da Orla. Naquela época o fax era uma revolução e a Internet um sonho... Fosse agora, talvez tivesse colocado tudo num blog.
Nesta segunda vez, o contexto é outro... Finisterre por um longo período foi tida efetivamente como a cidade do fim do mundo – afinal, para os romanos, que acreditavam que ali acabava a terra, o Atlântico era referido como Mare Tenebrosum... Hoje, Finisterre reflete sobre o passado e investe no segmento turismo, em especial buscando recepcionar a legião de peregrinos que cada vez mais chega de Santiago de Compostela. Para isso, recorre a referências sobre a peregrinação na Idade Média aliada à rituais de purificação e de celebração do sol e da fertilidade... E só! Afinal, segundo se conta, após pregar pelos pueblos da Espanha, Santiago regressou à Palestina e foi decapitado por ordem do Rei Herodes (41-44 d.C). Seu corpo foi colocado numa barca de pedra e, milagrosamente, viajou da Palestina à Galícia, chegando à costa em Iria Flavia, atual Padrón... ou seja, nem foi em Finisterre...
O corpo foi enterrado e mais tarde encontrado e declarando autêntico pelo bispo Teodomiro, da então Iria Flavia. Nesse local, por determinação de Alfonso II, Rei de Asturias e León, foi construída uma igreja, dando origem à cidade de Santiago de Compostela.
Em meio a lendas e contradições, Finisterre é simpática. É como um pueblo espanhol tradicional, só que no litoral e, também por isso, atrai turistas de toda a Europa. O grasnar das gaivotas, ininterrupto, garante a trilha sonora do lugar. De seu pequeno centro, com hotéis, pensões, albergues e restaurantes, a rota do peregrino determina que vá a pé ao farol do cabo. O local está distante cerca de 4 quilômetros e é aberto à visitação, com exposição de fotos e informações turísticas. Ao redor, em meio às pedras, o peregrino fará seu ritual de queima de roupas... visando a renovação e a purificação... de preferência, ao pôr do sol...
Num mastro de madeira, em quatro línguas, a mensagem: “Que a paz prevaleça na Terra”.
Como estou com as roupas contadas, duas bermudas, três camisetas, três cuecas, três pares de meia... e ainda vou permanecer alguns dias na Espanha, queimar algo, ainda que fosse uma cueca, é um risco. Me foi sugerido queimar as botas... Passei essa parte...
Fui ao farol, a pé, conferi o visual, me emocionei – é difícil não se emocionar depois de tudo que aconteceu... – e voltei para tomar sopa de mariscos, comer uma paella e descansar num piso, apartamento, para peregrinos que se dispõem a pagar um pouco mais...
Sem os pés no Caminho, sigo de ônibus – dotado de wifi, onde concluo esse post – para a casa do amigo José Antonio Soto Rojas, em Santander, que me convidou para descansar alguns dias...

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Viva Santiago!


Fim da peregrinação: junto às relíquias do Apóstolo Tiago Maior

Cheguei à Catedral de Compostela, junto às relíquias do Apóstolo Tiago Maior, há 10 anos, em 4 de julho, a meta do Caminho de Santiago!!! Foi o final da 29ª e última etapa de minha peregrinação pelo Caminho Francês, de Pedrouzo a Santiago de Compostela, com cerca de 21,3 quilômetros. Viva Santiago!
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

AGORA, AO FIM DO MUNDO... (*)

Engana-se quem acredita que a peregrinação à Santiago de Compostela termina na Catedral, após a missa das 12 horas, com aquele espetáculo do botafumeiro – inesquecível! –, a visita à tumba do apóstolo, o abraço e o beijo à imagem atrás do altar, a conquista da Compostela... Cada vez mais, os peregrinos continuam o Caminho a Finisterre, no galego Fisterra, no latim Finis Terrae, ou seja ao “fim do mundo”... É para lá que estou indo – depois da festa deste sábado em Santiago de Compostela, com o reencontro de inúmeros peregrinos que topei no Caminho, ora na Catedral, ora nas ruas, onde estava montada uma feira medieval, com barracas vendendo quinquilharias alusivas ao período, a Santiago, ao Caminho...
Finisterre é um cabo, um acidente geográfico, que avança no Oceano Atlântico como um dedo, e que foi considerado um lugar místico para os celtas, fenícios e romanos, que celebravam ritos solares e de fertilidade... Diz-se que o mar é violento em Finisterre, tanto que o Noroeste da Galícia é também conhecido como Costa da Morte, em alusão aos naufrágios registrados – como o do petroleiro Prestige, em 2002, que causou o derramamento de mais de 70.000 toneladas de petróleo, com prejuízos ambientais que atingiram também Portugal e França. Assim, da mesma forma que Finisterre representou ritos de fertilidade e início, é considerado marco para o reinício da vida renovada, após a peregrinação, visando o retorno. Tanto que se tornou famoso o ritual do peregrino queimar suas roupas, após devolver sua concha ao mar, e, pelado, mergulhar na água fria e ver o pôr do Sol... Pronto, está renascido.
Vou com calma, naturalmente... Afinal, são lendas, e lendas... são lendas. Tanto que, enquanto dizem que o peregrino deve seguir a Finisterre a pé, acrescentando mais 87,2 quilômetros à caminhada – o que pode ser feito em mais três etapas... – eu vou de ônibus, ou de trem, ainda decido...
Por ora, minha peregrinação pelo Caminho Francês, saindo de Saint Jean Pied de Port, na França, somou 798,9 quilômetros. Isso, pelo menos, é o que garante o guia Rother – diferente de outras fontes, que divergem e divulgam quilometragens diferentes, ora para mais, ora para menos. Mas essa é apenas uma questão numérica, pois o Caminho é feito por cada um, considerando as muitas opções de parada, de acordo com a condição física e o interesse, seja ele arquitetônico, artístico, religioso etc.
Para os cálculos do meu Caminho adotei o guia alemão, que é objetivo e me parece mais organizado que o espanhol, editado por El País/Aguilar. Fiz o meu Caminho em 29 etapas e as respectivas distâncias estão baseadas no Rother. A mais pedreira foi a 21, que cumpri no dia 26 de junho, de Santa Catalina de Somoza até Molinaseca, e que somou 39,9 km! – ou seja, quase uma maratona, que tem 42.195 metros. Já a mais leve foi a etapa 9, feita no dia 14 de junho, de Nájera até Santo Domingo de la Calzada: só 20,6 km...
É um roteiro possível, eis que consegui realizá-lo, bastando apenas um pouco de disciplina, antes de dar o primeiro passo e, principalmente, durante o Caminho...
Confira as etapas:
01 – 06/06 – Saint Jean Pied de Port (França)/Roncesvalles (Espanha) – 24,8 km
02 – 07/06 – Roncesvalles/Zubiri – 21,2 km (46 km)
03 – 08/06 – Zubiri/Pamplona – 21,1 km (67,1 km)
04 – 09/06 – Pamplona/Puente la Reina – 23,1 km (91,2 km)
05 – 10/06 – Puente la Reina/Estella – 24 km (114,2 km)
06 – 11/06 – Estella/Los Arcos – 21,3 km (135,5 km)
07 – 12/06 – Los Arcos/Logroño – 28,7 km (164,2 km)
08 – 13/06 – Logroño /Nájera – 30,7 km (194,9 km)
09 – 14/06 – Nájera/Santo Domingo de la Calzada – 20,6 km (215,5 km)
10 – 15/06 – Santo Domingo de la Calzada/Belorado – 23,5 km (239 km)
11 – 16/06 – Belorado/Agés – 27,9 km (266,9 km)
12 – 17/06 – Agés/Tardajos – 34,7 km (301,6 km)
13 – 18/06 – Tardajos/Castrojeriz – 32,0 km (333,6 km)
14 – 19/06 – Castrojeriz/Frómista – 25,9 km (359,5 km)
15 – 20/06 – Frómista/Calzadilla de la Cueza – 37,3 km (396,8 km)
16 – 21/06 – Calzadilla de la Cueza/Sahagún – 22,8 km (419,6 km)
17 – 22/06 – Sahagún/Reliegos – 30,7 km (450,3 km)
18 – 23/06 – Reliegos/La Virgen del Camino – 32,5 km (482,8 km)
19 – 24/06 – La Virgen del Camino/Hospital de Órbigo – 28,7 km (511,5 km)
20 – 25/06 – Hospital de Órbigo/Santa Catalina de Somoza – 26,6 km (538,1 km)
21 – 26/06 – Santa Catalina de Somoza/Molinaseca – 39,9 km (578 km)
22 – 27/06 – Molinaseca/Cacabelos – 25,1 km (603,1 km)
23 – 28/06 – Cacabelos/O Cebreiro – 36 km (639,1 km)
24 – 29/06 – O Cebreiro/Samos – 28,5 km (667,6 km)
25 – 30/06 – Samos/Portomarín – 33,7 km (701,3 km)
26 – 01/07 – Portomarín/Palas de Rei – 24,5 km (725,8 km)
27 – 02/07 – Palas de Rei/Arzúa – 30,5 km (756,3 km)
28 – 03/07 – Arzúa/Pedrouzo – 21,3 km (777,6 km)
29 – 04/07 – Pedrouzo/Santiago de Compostela – 21,3 km (798,9)

(*) Hoje, faço mea culpa sobre este entendimento, após retornar outras sete vezes a Compostela e ter tido a experiência de peregrinar o Caminho Português (2010), Aragonês (2012), Sanabrês (2013), Primitivo (2015) e Inglês (2016) – sem contar o Caminho Lebaniego (2017), uma rota tangencial do Caminho de Santiago, e a travessia, de Assis a Compostela (2014), resgatando os passos de Francisco em sua célebre peregrinação em 1214...
NÃO! Não se engana quem acredita que a peregrinação à Santiago de Compostela termina na Catedral. SIM, a peregrinação à Santiago de Compostela termina na Catedral, de joelhos junto às relíquias do Apóstolo Tiago Maior!
Buen Camino!

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Estou pronto...?!


Buen Camino!: clima de despedida nos bosques da Galícia

Faltando muito pouco para chegar a Compostela, há 10 anos, em 3 de julho, realizei a 28ª etapa de minha peregrinação pelo Caminho Francês, de Arzúa a Pedrouzo, com cerca de 21,3 quilômetros...
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

ESTOU PRONTO. ESTOU PRONTO?

Se eu tivesse trazido o... terno preto, certamente o usaria... Hoje, depois da caminhada matinal, entre 6h50 e 11h15, de Arzúa até Pedrouzo, tirei o dia para me preparar para estar junto à tumba do apóstolo Santiago, irmão do apóstolo João, na Catedral de Santiago de Compostela.
Diz-se que a peregrinação só estará completa depois que o peregrino subir a escada que existe atrás do altar maior, abraçar e beijar a imagem de Santiago.
Se tudo estiver favorável e conseguir manter o ritmo de hoje, para uma distância semelhante de 21,3 quilômetros, vou chegar a tempo de participar da missa do meio dia e cumprir esse ritual.
A celebração do meio dia é famosa, especial para peregrinos, quando, alegre (sim, ele deve ficar alegre...), o botafumeiro é a grande atração.
Banhado em prata, pesando 50 quilos, o gigantesco incensário balança na nave durante a missa, por meio de uma corda de 35 metros de comprimento, e, entre outras funções, ameniza o odor das roupas dos peregrinos... Não das minhas, claro, pois, como disse, dediquei a sexta-feira para me preparar – o que incluiu, naturalmente, a raspagem dos pelos da cabeça e da face, um banho reforçado, lavagem com sabonete da bermuda, camiseta, cueca e das três meias (o pé direito exige o uso diário de duas...)
E as botas? Ontem, depois de pisar num atoleiro no bosque, já as havia lavado... Foi um descuido, sem maiores consequências, mas um bom teste para conferir se eram mesmo waterproof, como diz o fabricante.
Estarei pronto!? Hoje, de volta aos bosques da Galícia, o clima foi de despedida... Cruzei com pessoas dos pueblos, a pé e em tratores... vi muitos bichos... pessoal da manutenção do Caminho... Aproveitei para agradecer e saudar especialmente todos os que nele habitam, o que incluiu um grande abraço na maior das árvores que encontrei...
Afinal, segundo o guia do Caminho já alerta, a paisagem vai mudando na medida em que se vai chegando a Santiago. “A beleza, nesta etapa, estará no interior...”, avisa. É que a cidade avança, o Caminho se mistura com a rodovia...
Hoje, como no dia anterior, quando a etapa foi de Palas de Rei a Arzúa, o bosque estava iluminado... e cheiroso. Você é capaz de sentir o cheiro dos bosques galegos? Tente. Feche os olhos, respire fundo, o frescor da mata, pássaros cantando, a vida em tudo, pulsando, em movimento... pense nos Jardins do Éden...
Minha Sandra associou as fotos que viu a sua infância, em Santa Catarina. Veja o que ela escreveu: “O caminho que fazia na infância era assim... havia árvores, animais, estrada estreita de terra ou cascalho, frutinhas, florzinhas, lavouras, rios, riachos, casas antigas, pessoas de todo tipo, mas sempre tudo muito simples. Penso que estás me vendo em todos os lugares por onde tens passado, pois tenhas certeza, isso que estás vivendo fez parte da vida que vivi no Riozinho, every day, lembra? E por isso estou imensamente feliz por essa tua rica experimentação, que é o verdadeiro sentido do princípio da nossa criação. Em todas as árvores, em todas as coisas, como Deus nos criou. Eu e você...”
Pois é... O amigo Ibrahim também deixou uma mensagem interessante no post de ontem... Aliás, agradeço a todos os amigos que se emocionam e me emocionam com suas mensagens, alegres, profundas, de ânimo, sentimentos que fazem parte do espírito do Caminho...
Desta vez fui eu, deixei marcas – como pedras que coloquei em vários pontos e setas que construí para auxiliar futuros peregrinos... –, e em breve vocês estarão fazendo o Caminho, que milhões de pessoas já fizeram ao longo de séculos...
Mudaremos alguma coisa? É possível que sim. Lembrando o ensinamento do monge beneditino, não devemos nos privar do bom exemplo. Devemos exercê-lo. Sempre. Ele tem força, uma força silenciosa e que a história já mostrou que é capaz de gerar transformações colossais...
O movimento é lento. Sim, e daí? Mas quem está com pressa? Eu tenho (?) pressa! Eu tenho mais é que controlar a pressa, a ansiedade, a intolerância... Hoje, também preparei a minha credencial de peregrino para receber o último selo na Catedral de Santiago de Compostela. Será o selo número 30, considerando que o primeiro foi colocado em Saint Jean Pied de Port, no dia 5 de junho – um dia antes de iniciar o Caminho.
Os outros 28 selos foram de lugares onde descansei e me recuperei para no dia seguinte continuar no Caminho. Agradeço a todos os que colaboraram com o meu descanso e continuam me ajudando... Agora mesmo, enquanto escrevia, uma peregrina espanhola (ela contou, enquanto lavávamos roupas, que iniciou o Caminho no ano passado, em Saint Jean, e foi até León. Este ano, o retomou de León e amanhã certamente chegará a Santiago com o marido, que a acompanha...) veio me alertar que estava chuviscando e que minhas roupas... subi as escadas, rápido, até o varal onde as havia estendido e... surpresa... alguém já as havia transferido para um lugar coberto... Teria sido ela? Ou...
Com o selo da Catedral terei direito a receber a Compostela, o documento oficial que confirmará minha peregrinação a Santiago de Compostela...

terça-feira, 2 de julho de 2019

Iniciação diária


Caminhando os perfumados bosques da Galícia...

Ah! Os bosques da Galícia! Há 10 anos, em 2 de julho, realizei a 27ª etapa de minha peregrinação pelo Caminho Francês, de Palas de Rei a Arzúa, com cerca de 30,5 quilômetros...
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

SÁBADO COM SANTIAGO...

Os bosques da Galícia oferecem paisagens que devem existir no paraíso. Elas são um convite à contemplação, reflexão, oração... e tem tudo a ver com os momentos cruciais que antecedem o encontro com Santiago! Com Santiago? E você?
Pois é, aquele reencontro comigo, que cheguei a cogitar no início do Caminho, estou tendo diariamente. Acho que até acostumei kkkkk A cada dia que acordo, me preparo, dou os primeiros passos no Caminho e me sinto renovado. É uma experiência curiosa que vale a pena sentir.
O amigo Sérgio Moita comparou a peregrinação à Santiago de Compostela a uma nova iniciação! Concordo, pois ao raiar o dia no Caminho você vê a luz... do novo dia... e as projeções do que você faz da sua vida o leva a passear no passado, presente e, claro, no futuro..., incerto, mas tão simples, palpável... que a única vontade que você tem é agradecer: estou vivo!
O resto você já sabe...
Uma iniciação diária, Moita, o começo do recomeço, a espiral infinita da vida... Este é o Caminho!
O encontro com Santiago estou prevendo para sábado. Ontem à noite, quarta, 1 de julho, ao traçar a estratégia deste momento da peregrinação, decidi completá-la em três etapas. Primeiro, diante de inúmeras contradições quanto à quilometragem da rota, resolvi adotar o guia Rother para definir o roteiro. E constatei que até então estavam restando 73,1 quilômetros até Santiago...
Combinei comigo fazer hoje 30,5 quilômetros, de Palas de Rei a Arzúa. Uma pernada que deu certo. Cheguei bem, consegui somar 756,3 quilômetros, e me instalei num albergue da Red de Albergues, muito bem localizado em Arzúa. Dica do Acácio da Paz, que é secretário da Red. Agora, restam 42,6 quilômetros!
Para amanhã, sexta 3, programei a etapa 28, de Arzúa a Pedrouzo, cujo percurso é exatamente a metade, 21,3 quilômetros. E no sábado 4, de Pedrouzo a Santiago de Compostela, completando os 798,9 quilômetros, de Saint Jean Pied de Port a Santiago, conforme o guia alemão.
Enfatizo a referência ao guia Rother, pois o site www.caminodesantiago.consumer.es diz que o trecho de Arzúa até Santiago tem 39 quilômetros, sugerindo fazê-lo de uma só vez.
Não.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Vacaciones no Caminho...


Família em férias no Caminho de Santiago

1º de julho, há 10 anos, constatei os efeitos do início das “vacaciones” no Caminho de Santiago, em minha 26ª etapa peregrinando o Caminho Francês, de Portomarín a Palas de Rei, com cerca de 25 quilômetros...
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ARREPIOS A CADA METRO...

Não posso negar: os pés doem ao chegar a Palas de Rei, após deixar Portomarín e completar a etapa 26 com mais 25,1 km.
Considero normal, ou inevitável.
Afinal, depois de peregrinar cerca de 733 km, em 26 dias – uma média de 28 km por dia! – o corpo há de sentir. Só o corpo? Muito mais. Vai levar tempo para assimilar a dimensão dos sentimentos.
Os quilômetros finais me arrepiam a cada metro.

OBA, OBA! VACACIONES NO CAMINHO

A Europa está em férias escolares e isso é fácil constatar no movimento dos últimos dias no Caminho de Santiago de Compostela, especialmente nos albergues de peregrinos da rota jacobea. Mas, o que tem a ver a ocupação dos equipamentos da peregrinação com as vacaciones espanholas – de resto dos demais países da Comunidade Europeia?
Tudo – apesar do desconforto que essa invasão gera ao verdadeiro peregrino. Frise-se verdadeiro, pois o turista, ora em grupos de adolescentes, ora acompanhados de pais, avós..., também se considera peregrino, embora seja uma fraude...
Comentando o assunto com um monge beneditino, que não tem qualquer dúvida sobre o “espírito do Caminho”, além de possuir uma histórica experiência no atendimento a peregrinos, ele concorda que se trata de um desvirtuamento. Em cita dois tipos que interferem com o peregrino: o turista, que como se observa – e em seguida darei exemplos – ocupa o espaço do peregrino; e o ladrão, que se infiltra no albergue para furtar, naturalmente, o peregrino...
Sobre furtos, o monge me contou um caso – um único, talvez o mais recente, mas “inadmissível!”, e eu lhe contei outro, absurdo. Quem me relatou foi a própria vítima, o brasileiro Ricardo, que conheci em Samos, e que teve furtadas as botas no albergue paroquial em Hospital de Órbigo. Teve que comprar outras em Astorga. O prejuízo não fica só pela despesa, pois se soma o risco de usar botas sem o necessário amaciamento...
Sobre a superlotação provocada pelo turista, no sábado 27, por volta das 16 horas, ingressei no Albergue Municipal de Peregrinos (ô mania oficial de enfatizar o “espírito” do Caminho, por apenas 6 euros), em Cacabelos, chegando de Molinaseca – depois de 23,3 km de peregrinação. Percebi crianças com duas famílias, respectivos pais, avós. Cheguei a conversar com o grupo e um pai me disse que sua filha tinha 12 anos e estava sim peregrinando, mas em “tramos”, ou seja, em trechos. E só nos finais de semana!
Nesse dia fui um dos últimos a chegar, número 49, para 56 vagas. Sai para cear etc e tal, quando retornei, já na hora de fechar as portas, percebi que um casal de peregrinos, autênticos (pois já o tinha visto em várias etapas), estava dormindo em colchões improvisados em cima de bancos... Dia seguinte, domingo 28, fiz o trajeto de Cacabelos até O Cebreiro, percorrendo 36,5 quilômetros, e fiquei no albergue municipal (outra vez... só 3 euros) mantido pela Xunta de Galícia. O Cebreiro é uma cidade turística, estava fervendo. A vista de lá é fenomenal, lembra a nossa serra gaúcha. O albergue dispõe de 104 vagas, um mostro, mas muito bem cuidado e preparado para receber peregrinos (?).
Depois de 36,5 quilômetros de peregrinação, mesmo tendo iniciado às 6h30 da manhã, cheguei por volta das 16 horas. Fui o 93! Como havia passado vários peregrinos, inclusive alguns que conheço desde Saint Jean Pied de Port... como os italianos Andréa e Roger... sabia que logo iria lotar. E é o único albergue do local; o resto é hostal. Eles conseguiram entrar, tudo bem, e logo a hospitaleira (?) colocou o aviso: não há mais vagas.
Estava pendurando roupas que acabara de lavar quando um casal espanhol de peregrinos chegou de bicicleta perguntando sobre o acesso à secretaria. Era por volta das 17h15 e embora soubesse que não tinha mais vagas indiquei a entrada. Foi a maior confusão, porque queriam a todo custo ficar e a funcionária do albergue não tinha como abrigá-los. Ou seja, tiveram que pedalar pelo menos mais 10 km em busca do albergue mais próximo. E se estivessem a pé?
Na segunda, fiz o trecho de O Cebreiro até Samos (30,6 quilômetros) – onde tem um precioso monastério beneditino (mil histórias para contar, participei de uma visita guiada, fiquei mais de meia hora falando com um monge, sobre tudo, de Paulo Coelho ao “espírito do Caminho”, menos política...) – e no albergue mantido pela Ordem, muito simples, mas limpo (sem taxa, só doação...), teve espaço para todo mundo.
Ontem, terça, completei minha etapa 25 de Samos a Portomarín (33,7 quilômetros...). Entrei num albergue da Xunta de Galícia (novamente... só 3 euros...) e, apesar de ter capacidade para 110 pessoas (além de estar apto a ocupar uma escola localizada em frente...), ao ir até a biblioteca blogar, não havia mais vaga.
Lotado de turistas e alguns peregrinos – que enfrentam fila para tomar banho, disputam espaço para uma mesa para o lanche, tropeçam em turistas e ainda são repreendidos quando, às 6 horas, começam a fazer barulho para se preparar para a peregrinação e a turistada quer mesmo é dormir... Falei com a hospitaleira... hospitaleira nada, a gerente do estabelecimento, e ela me confirmou que é só pagar os 3 euros que o acesso é liberado – para menor, inclusive. Basta estar com pai ou monitor.
“Aqui não é só para peregrino”, fez questão de frisar, embora na entrada o nome do lugar deixe claro que se trata de um albergue de peregrinos... Mas como esse pessoal está pagando e consome, e muito, usufruindo um turismo barato para uma Espanha em crise (?), o que tem demais tomar emprestado a estrutura construída ao longo dos anos – anos o cacete, séculos! – para dar suporte aos que, por algum motivo, acreditam no poder de transformação do Caminho Santo?
Outro exemplo dessa lotação encontrei em Sarria (primeira parada, ontem, após Samos...). Me deparei com um grupo de 50 estudantes de Madri entrando na rota jacobea. Falei com um dos monitores, Carlos, que contou que se tratava de uma atividade desportiva extracurricular...
Como Sarria está distante cerca de 120 quilômetros de Santiago de Compostela, ele contou que nos próximos dias o grupo fará etapas diárias em torno de 20 quilômetros. Em seis dias voltam para casa... Engasgou para lembrar onde o grupo iria parar ao final do dia; mas, possivelmente, iriam ocupar um espaço que, se houvesse necessidade, seria do peregrino...
Como se disse, essa agitação tem o seu lado bom, porque movimenta a economia. E como!!! Por duas bananas paguei 1 euro e 20 centavos, ou seja, cada banana o equivalente a 1,80 real!!! Por um sabonete desembolsei 3 euros e 60 centavos!!!
Mas, só isso? Para o monge beneditino que concordou em conversar comigo, não, decididamente, não. Além de acreditar na importância de se praticar o bom exemplo – até para intimidar o ladrão de botas... – ele pondera que, ao fazer a rota por turismo, pode acontecer o momento mágico do encontro com Deus... e aí ele dá o exemplo de uma jovem que, ao passar férias na rota jacobea, decidiu fazer seus votos religiosos...
Viva Santiago!