Peregrino e sua sombra: batalhas travadas no Caminho de
Santiago
A peregrinação pelo Caminho de Santiago representa
desafios diários. Da mesma forma que uma força incrível te lança ao Caminho com
os primeiros raios da manhã – e você comemora –, teus demônios tentam te tirar
do Caminho... Reflexões ao final da peregrinação pelo Caminho Francês, de Saint
Jean Pied de Port a Santiago de Compostela, com cerca de 800 quilômetros,
realizada há 10 anos durante 29 dias. Viva Santiago!
#10yearchallenge
#pedrasdocaminho
#xacobeo2021
O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da
trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!
DESPEDIDA!
As reflexões
sobre o Caminho ecoarão até o último dia, o que me obrigará de vez em quando supri-las
diretamente na fonte. Em 2010, programo a volta, para peregrinar o Caminho Português...
Afinal, dia após dia, continuam a surgir questionamentos, que levam a
conclusões e que geram novos questionamentos, numa dialética sem fim, formando
uma espiral que me lembra muito o milagre do Princípio Único da Vida. Num
desses momentos me flagrei indagando: afinal, venci meus demônios? Sim, venci.
Claro que venci!!! Cheguei a Santiago, depois de 29 dias caminhando. Esta é a
prova que venci.
O Caminho é
feito de desafios diários. Da mesma forma que uma força incrível te lança ao
Caminho com os primeiros raios da manhã – e você comemora –, teus demônios
tentam te tirar do Caminho. A batalha é diária. Diária, não. Trata-se de uma
batalha minuto a minuto. Um descuido e você está fora.
Esse é um
fator imponderável do Caminho.
O “descuido”
pode vir na forma de milhão de coisas. Uma infecção nas bolhas do pé. Um
telefonema informando que um familiar querido está no leito de morte...
Vi gente
desistir. Anunciando que iria desistir e, finalmente, desistir. Não aguentou a
pressão; a dor. Vi outros que ameaçaram desistir e não desistiram. Resistiram.
E venceram.
Fui um
desses. Travei várias batalhas com meus demônios durante o Caminho. A mais
feroz, talvez, iniciou na tarde do terceiro dia de Caminho, quando cheguei a
Pamplona, a primeira grande cidade da rota jacobea. Naquele dia havia saído de
Zubiri. Já tinha feito dois trechos – de Saint Jean Pied de Port a Roncesvalles
e de Roncesvalles a Zubiri – e ainda estava sob o impacto da travessia dos
Pirineus.
Era uma
segunda-feira. Em Zubiri a experiência havia sido excelente. No domingo,
cheguei no momento em que uma procissão anunciava o início da Semana de Corpus
Christi. Optei por um albergue particular. Conheci espanhóis muito gentis. No
bar onde comi um bocadilho, o dono, ao saber que eu era brasileiro, colocou um
CD com músicas da Roberta Miranda. Acordei disposto, tendo como meta Pamplona,
onde é famosa a festa a São Firmino, que em 2009 ficará na história pela morte
de um corredor, atingido pelos chifres do touro Capuccino. O trecho foi muito
difícil. Cheguei a parar alguns quilômetros antes de chegar ao centro de
Pamplona, num grande parque, me sentei no chão, tirei as botas, fiz um lanche,
descansei...
Ao chegar às
muralhas que protegem a entrada de Pamplona me empolguei e tirei muitas fotos,
especialmente da ponte elevadiça – que havia visto apenas em fotos e filmes
sobre a época medieval. Devido às obras públicas que confundiram a sinalização
do Caminho, dei algumas voltas por ruas estreitas, cansei, até chegar ao
albergue municipal. Peguei a cama 33 do beliche, a de cima. Seria a primeira
vez que dormiria no alto e ainda tinha dúvidas se era melhor ou pior que dormir
na cama de baixo.
Foi difícil
lavar e secar as roupas na lavanderia do albergue. Tive que dizer não para um
espanhol que queria colocar suas roupas para secar junto com as minhas – mas
queria que eu primeiro esperasse ele lavar as roupas dele... Mesmo com as
indicações feitas num mapa fornecido pelo hospitaleiro não localizei o
restaurante indicado. Nas ruas em obras e sem sinalização foi difícil encontrar
um local para comer. Não encontrei menu e fui obrigado a comer uma tortilha...
Todos esses
momentos foram de um puxa-estica espetacular. Só agora entendo as trevas que
iam surgindo, de formas diferentes. Algumas, acabava vencendo; noutras,
sucumbia, ainda que isso significasse apenas me cansar, me estressar, me
resignar. Outros inúmeros detalhes pareciam me aborrecer – embora logo em
seguida não admitia que alguma coisa, muito menos estranha, pudesse me
aborrecer.
Quando a
noite chegou, já havia feito muitas coisas, recorrido ao guia de El
País/Aguilar, desabafado com dois peregrinos brasileiros, e já admitia
restringir a quarta etapa até o próximo pueblo, denominado Cizur Menor – pelo
nome dá para imaginar o tamanho...
Pouco mais
de 5 quilômetros, fácil. Vou até lá e paro, descanso, durmo, sei lá... saio do
Caminho. Ideia idiota, naturalmente. Mas ela martelou minha cabeça durante
muito tempo. Cheguei mesmo, com auxílio da hospitaleira, a ligar até o albergue
de Cizur Menor, para fazer minha reserva. Até neste momento, o telefone público
estava sendo ocupado por um brasileiro, que falava com familiares, a cobrar. E
como falava! A hospitaleira deu-lhe uma bronca, pois fazia muito tempo que ele
estava usando o aparelho.
Antes disso,
por algum impulso que hoje considero impossível, saquei o celular e liguei para
Cizur Menor e entreguei para a hospitaleira, que falou – foi informada, ou
confirmada, de que não era possível fazer reserva... – e a insensível
aproveitou para tirar outra dúvida, que não tinha nada a ver comigo. Mas usou
minha ligação, a uma taxa absurda, para tratar de assunto pessoal. Com certeza
teria ficado muito mais barato se tivesse utilizado o telefone público...
A decisão
era minha.
Fui dormir
na dúvida. Amanhã é outro dia. E, realmente, foi outro dia. Entrei no Caminho e
enfrentei de frente o desafio. Passei Cizur Menor e estava tão bem que as
dúvidas e incertezas do dia anterior se dissiparam. A quarta etapa foi
decisiva. Muito mais do que me programar para chegar em Puente La Reina, decidi
pegar um trecho do Caminho Aragonês e fui direito para Eunate conhecer a ermida
erguida pelos Cavaleiros Templários e o seu ermitão – que me recitou Gonçalves
Dias...
O que
aconteceu você sabe. Buen Camino!