quarta-feira, 17 de junho de 2020

Sentido do pecado...


Porta Santa da Catedral de Santiago: perdão e pecado

Ao se perseguir a melhor compreensão do sentido do perdão no Caminho de Santiago – após concluir a peregrinação pelo Caminho Português no Ano Santo de 2010, quando ao peregrino é concedida indulgência plenária (veja os posts anteriores) –, é importante entender a natureza daquilo que o exige, ou, a contrario sensu, o redime e o anula, qual seja, o pecado – do ponto de vista como se apresentam as coisas naturais, na dualidade do Universo, no Uno e no Verso, no branco e no preto, no belo e no feio, no gordo e no magro, no homem e na mulher, no doce e no salgado, enfim, no Yin e no Yang, no Princípio Único da Vida. Há de se considerar, especialmente, que esta dicotomia há de ser sempre relativa, jamais absoluta, na busca de equilíbrio fundamental para a nossa existência.
Se há perdão é porque houve pecado – no caso, erro, vício, imperfeição, transgressão a dogmas, regras pré-estabelecidas. Os pecados capitais, por exemplo, seguem uma ordem. E talvez não seja por acaso que nesse ranking a gula está em primeiro e a preguiça em sexto...
1º - Gula.
2º - Avareza.
3º - Luxúria.
4º - Ira.
5º - Inveja.
6º - Preguiça.
7º - Vaidade ou orgulho.
Assim, cometeria pecado maior quem come muito, se comparado ao que é preguiçoso, ou mesmo ao invejoso.
Os 10 mandamentos compõem outra lista de ações que, ao praticá-las, também estar-se-á cometendo pecado – e que, da mesma forma que no outro rol, exigirá penitência para se obter o perdão. Não deve ser por acaso que os três primeiros tratam da religiosidade de cada um:
1º - Amar a Deus sobre todas as coisas.
2º - Não usar o santo nome de Deus em vão.
3º - Lembrar o dia de domingo para santificar.
4º - Honrar pai e mãe.
5º - Não matar.
6º - Guardar castidade nas palavras e nas obras.
7º - Não roubar.
8º - Não levantar falso testemunho.
9º - Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos.
10º - Não cobiçar as coisas do próximo.
Por tais mandamentos é possível admitir que matar é menos grave que se lembrar de santificar o domingo (aliás, o dia em que escrevo este texto...). Assim, se é possível graduar o pecado – da mesma forma como é possível graduar todos os objetos e ações, sejam as más, sejam as generosas –, também seria possível graduar o perdão. Ou não há de se admitir graduações? Não, isso talvez não faça sentido! Então, apenas para refletir, é possível, sim, graduar as ações pecaminosas. Uma relatividade que faz parte do princípio fundamental...
Isto é, aceitando essa relatividade, não se concederá perdão maior do que o tamanho do pecado. E também não se exigirá do pecador mais do que o suficiente para reparar a gravidade de seu ato. O perdão, pois, há de ser proporcional.
Muito menos se aplicará um pequeno perdão para um grande pecado. Se foi tão grande assim, a penitência para obtenção do perdão haverá de ser também gigante!!! O raciocínio terá como parâmetro a lógica, que estabelece uma pena proporcional ao crime, como ensinaram filósofos famosos, como o francês Michel Foucaut, e está estampado nos códigos penais, inclusive o brasileiro.
A pena para quem mata é maior que aquela para quem furta! Enfim, para qual ou quais tipos de pecado haverá de servir o tamanho do perdão concedido por se ter feito a peregrinação a Santiago de Compostela em Ano Santo Compostelano? Eis que a peregrinação nos demais anos, quando o dia consagrado ao Apóstolo Santiago – 25 de julho – não cai em domingo, não tem o condão da indulgência plenária...
A peregrinação a Santiago, por si só, é um movimento de dor, de reflexão e de sofrimento, ou ainda para muitos, de prazer e satisfação, dotado de começo, meio e fim – o fim junto às relíquias do Apóstolo, guardadas na cripta da Catedral de Santiago de Compostela, e a obtenção da Compostela (só entregue a quem peregrinou a pé ou a cavalo os últimos 100 quilômetros até Santiago, ou de bicicleta, os últimos 200 quilômetros).
O perdão será concedido ao peregrino no Ano Santo Compostelano por quem representa a autoridade divina e é responsável em conceder tal graça. Ao proporcionar o perdão, por outro lado, estar-se-á estabelecendo uma espécie de contrato – entre o perdoante e o perdoado –, de que o erro foi anulado (ainda que aparentemente ele não tenha sido reparado), não existe mais, sendo que o perdoado se livrou dele também com o compromisso de não repetí-lo.
Mas, o que aconteceria no caso de uma reincidência: o perdão anterior somar-se-ia ao novo, tornando sem efeito o primeiro perdão? Seria necessário, por exemplo, outra peregrinação a Santiago de Compostela no Ano Santo seguinte?
É o caso, no dito popular, de se estabelecer um preço ao perdão... o que me faz lembrar do poeta Vinícius de Moraes em seu “Samba da Volta”, no qual frisa que “o perdão pediu seu preço”.
Para quem não lembra:
“Você voltou, meu amor. Alegria que me deu.
Quando a porta abriu, você me olhou, você sorriu, ah, você se derreteu!
E se atirou, me envolveu, me brincou, conferiu o que era seu.
É verdade, eu reconheço, eu tantas fiz, mas agora tanto faz!
O perdão pediu seu preço; meu amor, eu te amo e Deus é mais”.
Afinal, a prática cristã ensina que o pecado cometido por qualquer pessoa pode ser perdoado por Deus, por conta do sacrifício feito por Jesus em sua morte.
Porém, como está na Bíblia, é possível admitir o pecado imperdoável, ou pecado eterno, aquele que impede a salvação do pecador. Um exemplo de pecado imperdoável é “blasfemar contra o Espírito Santo”.
Está em Marcos 3:28-30: “Em verdade vos digo: Que aos homens serão perdoados todos os pecados, e as blasfêmias que proferirem; mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca mais terá perdão, pelo contrário é réu de um pecado eterno.»
Em Mateus 12:31-32: “Por isso vos declaro: Todo o pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não lhes será perdoada. Ao que disser alguma palavra contra o Filho do Homem, isso lhe será perdoado; porém, ao que falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste mundo, nem no vindouro.”
Em Lucas 12:8-10: “Digo-vos ainda: Todo aquele que me confessar diante dos homens, também o Filho do homem o confessará perante os anjos de Deus; mas o que me negar diante dos homens, será negado perante os anjos de Deus. Todo aquele que proferir uma palavra contra o Filho do Homem, isso lhe será perdoado; mas o que blasfemar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado.”
São Tomás de Aquino, que prestou relevante contribuição à filosofia do Cristianismo, listou seis tipos de blasfêmias ao Espírito Santo, que seriam capazes de caracterizar o pecado eterno; admitindo, porém, o perdão por meio do milagre. Ah, o milagre...
1º - Acreditar que a própria maldade humana é maior do que a bondade divina.
2º - Desejar obter a glória da salvação sem ter méritos (ainda que haja arrependimento no leito de morte), ou perdão sem arrependimento.
3º - Resistir em conhecer a verdade.
4º - Invejar o bem espiritual alcançado pelo próximo.
5º - Vontade específica de não se arrepender de um pecado.
6º - Preso ao seu pecado, estar imune à ideia de que o bem existe dentro de si.
A questão é acreditar ou acreditar.
Aliás, quando é mesmo o próximo ano em que 25 de julho cai num domingo?
Em 2021.
Buen Camino!
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terça-feira, 16 de junho de 2020

Sentido do perdão no Caminho de Santiago


Peregrino agradece junto à imagem do Apóstolo na Catedral

Perder o horário da missa dos peregrinos ontem, às 12 horas, ao final da peregrinação pelo Caminho Português, revelou-se nesta data (há 10 anos!) um estupendo presente, pois pude participar de uma missa muito especial, celebrada pelo arcebispo de Santiago de Compostela, d. Júlian Barrio Barrio, e concelebrada pelo cardeal Juan Sandoval Íñiguez, então arcebispo de Guadalajara, no México, e o alto clero da Galícia. É assim que as coisas acontecem no sagrado Caminho de Santiago...
O ensinamento proporcionado na homilia de d. Barrio foi exemplar para meu entendimento sobre o Xacobeo2010, o Ano Santo Compostelano, e associar o mistério do perdão à mística do Caminho de Santiago. Naquele momento foi selado o segundo momento da saga Pedras do Caminho, iniciada no ano anterior com o encontro comigo mesmo ao peregrinar o Caminho Francês. Uma saga que me traria de volta ao Caminho em 2012, para peregrinar o Caminho Aragonês; em 2013, para o Sanabrês; em 2014, para a travessia de Assis a Compostela visando recriar a peregrinação de Francisco, há 800 anos; em 2015, para o Caminho Primitivo; em 2016, para o Inglês; e em 2017, para ser iluminado com o encontro da “lignum crucis”, o maior pedaço da cruz de Jesus Cristo, ao peregrinar o Caminho Lebaniego, uma rota tangencial do Caminho de Santiago...
Estou em Santiago de Compostela. A cidade está erguida onde foram descobertas as relíquias do Apóstolo Tiago Maior e de dois discípulos, Teodoro e Atanásio, após o eremita Pelayo ter sido alertado por luzes no céu e avisado o bispo de Iria Flavia, Teodomiro, que comprovou o achado. A palavra Compostela pode derivar de Campus Stellae, “campo de estrelas”, ou Composita Tella, “terras bem ajeitadas”, eufemismo de cemitério, pois ali existiu um cemitério pagão, numa antiga cidade celta, quem sabe no ano 44... Neste exato local foi sepultado o corpo do Apóstolo de Jesus... Desde a descoberta, no primeiro terço do século IX, o local tornou-se meta de peregrinação cristã.

Missa dos peregrinos na Catedral de Santiago de Santiago

Enfermos buscam paz e perdão na Catedral

Após a missa, tirabuleiros preparam o incensário gigante...

Momento esperado, o espetáculo do botafumeiro!

Final da missa dos peregrinos, Plaza do Obradoiro

Órgão da Catedral de Santiago de Compostela

Altar-mor da Catedral de Santiago

Cripta sob o altar-mor da Catedral guarda as relíquias do Apóstolo

Coluna central do Pórtico da Glória destaca a figura de Santiago

Postado em 16.06.10, 17h06 >>>>
Perdão pelo que não faço

Juan Sandoval Íñiguez e Júlian Barrio Barrio ao final da missa dos peregrinos

Não há dúvida que o peregrino, o que vai a pé, bicicleta ou cavalo... e o “peregrino”, o que vai, que chega todo dia aos milhares a Santiago de Compostela, neste Ano Santo Compostelano busca indulgência plenária, o perdão aos pecados, conforme bula do papa Calixto II, em 1119, que garantiu a graça ao peregrino que cumprir a jornada em ano jubilar, como é 2010, quando o Dia de Santiago, 25 de julho, cai num domingo (*). A iniciativa funcionou como grande alavanca às peregrinações, tanto que em 1179 o papa Alexandre III tornou perpétuo o Jubileu Compostelano e dois séculos depois, em 1332, o papa João XXII editou bula concedendo perdão aos pecados também às pessoas que ajudassem os peregrinos a Santiago.
Nem adianta o peregrino dizer que não se trata disso, que não veio atrás de indulgência plenária, pois no fundo, no fundo, esta é a motivação principal dessa agitação no Caminho, ainda que inconsciente – além do turismo, aventura, desafio, gastar dinheiro, comer bem... A cúpula religiosa sabe bem disso, tanto que traçou uma espetacular estratégia de marketing para atrair e recepcionar número recorde de peregrinos em Santiago de Compostela neste Ano Santo, o Xacobeo2010.
Se ontem perdi a missa dos peregrinos, hoje tive sorte grande, pois a cerimônia foi celebrada especialmente pelo arcebispo de Santiago de Compostela, d. Julián Barrio Barrio. Concelebrando, d. Julián contou com a atuação do alto clero da Galícia, pois Santiago é a capital da Província, e a presença especialíssima do cardeal Juan Sandoval Íñiguez, arcebispo de Guadalajara, México – que saudou os peregrinos e, entre os comentários, contou que veio a princípio para Roma e aproveitou para dar uma esticadinha a Santiago. Afinal, é Ano Santo...
Para encerrar, claro, o grande espetáculo do botafumeiro!
O anfitrião conduziu a missa de forma polida – o respeito ao peregrino está na alma do povo da Península, especialmente dos religiosos... –, mas, sem meias palavras, não deixou de colocar em primeiro plano a questão da indulgência plenária. E aproveitou para pautar algumas das exigências – o que, aliás, já havia comentando no post de ontem –, para garantir o perdão aos pecados. Ele enfatizou duas (há mais, naturalmente, que compõem o ritual): confissão e comunhão.
No meu caso, comungar já faz algum tempo que busco praticar, embora, verdade seja dita, tenha ficado indignado e até dado um tempo quando soube que um pároco da Capital de São Paulo fazia restrições para dar comunhão a casais que não haviam se consagrado no matrimônio religioso. Ainda que no referido caso, e este não é o meu caso, o homem fosse solteiro e a mulher viúva.
Atitude isolada ou não, já que ao pesquisar fiquei sabendo que isso não era praticado em outras paróquias (“mas é bom dar uma palavrinha com o padre...”, alguém me orientou), fiquei desestimulado em comungar com mais frequência, considerando que no meu caso sou divorciado e vivo em união estável desde 1984 com minha Sandra, que é solteira. Ou seja, sou casado! Confessar, então, nem me lembrava mais da última vez. Com certeza que já havia me confessado. Fiz Primeira Comunhão, acho que tinha uns 6 ou 7 anos; era e é obrigatório às famílias cristãs. E, quem sabe, confessei em alguma ocasião num dos dois anos em que estudei no extinto Colégio Santista, dos Irmãos Maristas.
Nesse contexto, a abordagem do arcebispo Julián Barrio Barrio foi de mestre e deixou à vontade inúmeras pessoas que, como eu, consideram que não devem se confessar pela simples constatação que não praticam, ou praticariam, o que se convencionou chamar de pecado, sejam os capitais, sejam os mais leves – se é possível estabelecer alguma graduação para esse tipo de conduta.
Ledo engano!
E foi nesse ponto que, lembrando do meu falecido avô materno Antonio Carneiro de Arruda, nos tempos de professor lá em Aquidauana, no Mato Grosso do Sul, dei minha mão à palmatória, à eventual prática, contumaz ou não, de pecar.
Pois, sim, articulou o arcebispo, há muitas pessoas com a convicção de que não praticam pecado, eis que bom filho, pai, marido, amigo; que não molestam e nada de ruim fazem a quem quer que seja. Mas, questionou, será que estão fazendo tudo de bom que poderiam e que são capazes?
Eis a questão!
(*) Após 2010, os próximos anos jubilares são 2021, 2027, 2032, 2038, 2049, 2055, 2060, 2066, 2077, 2083, 2088, 2094…
Buen Camino!
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Peregrino comemora a conquista da Compostela: peixe e vinho

Fila para ingresso na Catedral pela Porta Santa, fachada da Quintana

Confessar e comungar para obter indulgência plenária

Catedral de Compostela: Santiago a todos acolhe!

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Enfim, Compostela!


Peregrino diante da Catedral de Santiago de Compostela

Perdão

“A melhor maneira de estar com o seu Espírito é perdoar. Perdoe, pois assim seus pensamentos irão embora... Quanto menos você pensar, mais rápido avançará em sua realização”.
Conselho de Shri Mataji Nirmala Devi, fundadora da Sahaja Yoga.

Enfim, Compostela!

Há 10 anos, nesta data... Os 23,6 quilômetros finais do Caminho Português a Santiago de Compostela foram de alegria, pela conquista, e tristeza, pelo fim da peregrinação de 240 quilômetros durante 10 dias. Embora pudesse ser levado a comparar com os 29 dias, em 2009, quando peregrinei os 800 quilômetros do Caminho Francês, fortalecia em mim a convicção de que cada Caminho é um Caminho, com identidade e aspectos absolutamente distintos, cada um capaz de proporcionar reflexões únicas visando tornar uma pessoa melhor...
Ao deixar Padrón na manhã de terça-feira parecia sentir o peso da peregrinação em Ano Santo, o Xacobeo2010, atravessando as ruas decoradas com banners alusivos ao mito jacobeo. Em um quilômetro cheguei a ponto emblemático desse mistério, a paróquia de Iria Flávia, parte da cidade de Padrón, inicialmente ocupada pelos celtas e depois pelos romanos, e que foi sede episcopal da região quando se descobriu o sepulcro do Apóstolo Tiago Maior... Sua joia é a monumental Colegiata, do século XII, reformada ao longo dos anos até chegar a sua aparência atual, a primeira catedral da Galícia.
O Caminho segue atravessando pequenos pueblos, Pazos, Cambelas, Rueiro, Anteportas, alguns trechos com as famosas corredoiras galegas, antigas vias que ligam as aldeias, estreitas, decoradas com pedras cobertas de limo, até alcançar o Santuário da Escravidão, dedicado a Maria; um magnífico edifício de estilo barroco, com torres gêmeas de 32,5 metros, cuja construção foi concluída em 1886. A tradição diz que a água de sua fonte é milagrosa...
Após uma curta descida até Angueira de Suso parei para descansar e comer o bocadilho de jamón e queijo que trazia comigo. O Caminho volta a subir e passa pelos pueblos Areal, Faramello, Rúa de Francos, onde está a ermita de San Martiño e um interessante cruzeiro gótico, considerado um dos mais antigos da Galícia. O Caminho percorre pueblos que parecem esquecidos, Ameneiro, Galanas, e continua subindo para desembocar em Milladoiro, onde parei para tomar um café. Mais alguns passos e do alto do Monte Argo dos Monteiros, a 250 metros de altitude, considerado o Monte do Gozo do Caminho Português, é possível ver as torres da Catedral de Santiago de Compostela.
O Caminho agora desce ao vale do rio Sar, passando por Rocha Velha, para subir lentamente até retornar aos 250 metros de altitude, onde está Compostela. Estou convencido que não adianta acelerar o passo para chegar a tempo de participar da Missa dos Peregrinos. Então, pelo contrário, caminhei com vagar, desfrutando, e assistindo ao filme que minha mente elabora sobre os últimos dias de minha vida, desde o embarque a Lisboa, a chegada a Oporto, os dias de peregrinação, a minha segunda pelo Caminho de Santiago, o que esta experiência mudará em minha vida...
Ao alcançar a zona urbana de Compostela logo ingresso no casco histórico e chego à Praza do Obradoiro, que exibe a fachada ocidental da Catedral, no momento em que uma multidão descia as escadarias, pois havia terminado a Missa dos Peregrinos. Tudo bem. Permaneci aos pés do magnífico templo, para agradecer o êxito da peregrinação, ao mesmo tempo em que aprecio os detalhes de sua arquitetura. Após fazer o registro em hostal próximo, para deixar minha mochila, e ingressei na Catedral para me reencontrar com o Apóstolo e cumprir o ritual do Ano Santo. Depois, fui à Oficina de la Peregrinacion requerer a Compostela. Após passear algum tempo pelas ruas de pedra de Compostela, parei num pequeno restaurante, e comi frutos do mar com vinho. Na tevê, o Brasil estreava na Copa do Mundo de Futebol contra a Coreia do Norte, com vitória por 2 a 1.
A Missa dos Peregrinos ficou para o dia seguinte, com direito ao espetáculo do botafumeiro... Aliás, uma missa inesquecível, por meio da qual pude compreender, talvez, o sentido do perdão no Caminho de Santiago. E admitir a necessidade de pedir perdão não só pelas coisas que faço, e que nem sempre são as mais corretas, mas, em especial, por tudo aquilo que poderia fazer e, devido minhas imperfeições... não consigo.
Buen Camino!
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Banners nas ruas de Padrón comemoram o Xacobeo2010

Colegiata de Iria Flavia: obra dos séculos XII e XIII

Caminho atravessa vários pueblos...

Concha de vieira indica que estou no Caminho de Santiago

Vias estreitas com paredes de pedras cobertas de limo

Vias são conhecidas como “corredoiras galegas”...

Santuário da Escravitude: construção demorou três séculos até 1886

Entrada do Santuário da Escravitude, dedicado a Maria

Torres gêmeas do Santuário da Escravitude têm 32,5 metros

Curta descida até Anguería de Suso

Porto Rio: os apetrechos do peregrino agora descansam

Esticar as pernas e saborear bocadilho de jamón com queijo

Sombra do peregrino: a certeza de sua companhia...

Faramello: Caminho segue pelo acostamento da N-550

Enxada na mão, cuidando da horta

Despedida dos bosques refrescantes da Galícia

Monte Argo: já é possível avistar as torres da Catedral de Compostela

No Centro de Santiago de Compostela...

Chegada exatamente no fim da missa dos peregrinos

Praza do Obradoiro: fachada ocidental da Catedral de Santiago de Compostela

Postado em 15.06.10, 11h39 >>>>
O Aloisium agora é Ludovicum! Viva Santiago!

Compostela: agora sou Ludovicum Carolum Ferraz

Eu tentei, ah! como tentei. Sai de Padrón às 7h25, com previsão de chegar a Santiago de Compostela após 5 horas e 30 minutos de peregrinação pelo Caminho Português – o que me colocaria na catedral às 12h55 e, caso conseguisse ter acesso ao templo, talvez visse o espetáculo do botafumeiro... Mas nem tudo acontece como a gente quer.
Eis que cheguei na Praza do Obradoiro, a entrada ocidental da Catedral, por volta das 13h10, exatamente no término da missa dos peregrinos, quando o templo já estava sendo esvaziado e uma multidão permanecia parada em frente. Eram peregrinos sentados no chão, pessoas que nunca se viram se cumprimentando, enfim, uma grande festa...
Este é o clima de Compostela neste Ano Santo, quando o Dia de Santiago, 25 de julho, cai num domingo, e as normas canônicas estabelecem que, cumpridas determinadas exigências, o peregrino terá direito à indulgência plenária, ou seja, o perdão de todos os pecados. Falo em exigências, pois, além da peregrinação, o pretendente tem que orar um Pai Nosso, um Credo... e outras tantas coisinhas, algumas das quais guardadas em “caixa-preta”, que trato de garimpar para não esquecer de nada. Ou, ao final, ainda terei de ouvir de uma carola: “Espertinho, mas você não sabia?”
Perdida a missa – não tem problema, já reservei duas noites num hostal a uma quadra da catedral... –, aproveitei para visitar a bela catedral, atentar para inúmeros detalhes que passaram despercebidos na primeira visita, no ano passado, após completar o Caminho Francês e, claro, cumprir alguns itens do ritual do Ano Santo (outros tantos cumpriria na missa do dia seguinte...).
Em seguida, fui solicitar minha Compostela, o documento que prova a minha visita a Santiago de Compostela, mediante a peregrinação documentada pela minha credencial, com selos desde o Oporto, em Portugal – ou melhor, selos a partir de Vilar do Pinheiro, pois ao deixar a Sé, naquele início de manhã de domingo, simplesmente esqueci do importante detalhe, só lembrado por volta da hora do almoço...
Na Oficina de la Peregrinacion, um atencioso rapaz comprovou meus carimbos e, ao pedir que completasse o formulário oficial com meus dados (era o primeiro brasileiro do dia, confirmei com ele!), preparou o documento com sua letra.
O curioso e bota curioso nisso, para não dizer outra coisa, é que, ao preencher o documento em latim, em vez de grafar Dnum Aloisium Carolum Ferraz, como na primeira Compostela, que está pendurada na parede do meu escritório, ele escreveu Dnum Ludovicum Carolum Ferraz... Pois é, se no ano passado achei interessante observar que era outro, desta vez, sou... outro mesmo!!!
Ao alertá-lo para a situação, o jovem admitiu as duas versões para Luiz e até se dispôs a fazer nova Compostela. Mas, aleguei que não era necessário, e, comigo mesmo, considerei que a coincidência reforçou a ideia que já fazia, de que, realmente, sou outro, pois encontrei outro Luiz no Caminho Português...

domingo, 14 de junho de 2020

Mito jacobeo


Pedra onde foi amarrada a barca do Apóstolo Santiago

Perdão

“Então lhe disse o pai: Filho, tu sempre estás comigo, e tudo o que é meu é teu. Era, porém, necessário que houvesse banquete e festim, pois que este teu irmão era morto, e reviveu. Tinha-se perdido e achou-se”.
Parábola do Filho Pródigo”, em Lucas 15:11-32.

Mito jacobeo

Aparentemente tranquila por ter apenas 18,3 quilômetros, a etapa entre Caldas de Reis e Padrón, na peregrinação pelo Caminho Português a Santiago de Compostela, exigiu quase seis horas para ser vencida, não só devido ao cansaço, que aumentou, mas também pela vontade de permanecer caminhando... Tudo leva a crer que amanhã, terça-feira 15, estarei em Santiago de Compostela – nem imagino a hora... –, após completar a décima etapa do Caminho, desde Oporto, no domingo, 6 de junho.
Com tempo bom, iniciei a etapa ao atravessar a Ponte de Bermaña, que cruza o rio do mesmo nome, no centro de Caldas de Reis. Logo o Caminho começa a subir, em meio aos tradicionais bosques galegos, para alcançar 135 metros de altitude o pueblo de Carracedo, onde de longe é possível avistar a torre barroca da Igreja de Santa Mariña.
A partir deste ponto o Caminho começa a descer e o sol brilha, deixando a paisagem ainda mais esplêndida, na travessia de videiras, áreas de cultivo diversos e pequenos bosques. Não há sinais de hordas de peregrinos, o que atribuo ao fato de ser segunda-feira e muitos preferem o Caminho aos finais de semana... Reencontro apenas Ernest e Helmut, os dois peregrinos austríacos que conheci no café da manhã em Caldas de Reis, e peço para um deles me fotografar. Também faço foto da dupla.
Sigo meu Caminho e, após atravessar o pueblo de San Miguel de Valga, chego a Pontecesures, onde descanso diante da Igreja de San Julián. Estou apenas a três quilômetros de Padrón. Na saída de Pontecesures há opção de deixar a rota tradicional e ir ao Convento de São Francisco de Herbón, onde o albergue oferece hospitalidade franciscana. Apesar da singela tentação, opto por conhecer ainda mais a extraordinária Padrón, cujo nome deriva da pedra onde foi presa a barca que no século I trouxe o corpo do Apóstolo Santiago à Península Ibérica, e que está sob o altar da Igreja de Santiago de Padrón.
Atravesso a ponte medieval sobre o rio Ulla, que integra a ría de Arousa, e fico sabendo que ali existiu um importante porto romano e que pesquisas arqueológicas descobriram cerâmica e moedas romanas desde Tibério, 14–37 d.C., até Constantino III, 407–411. Mais: que mestre Mateo, conhecido pelo magnífico Pórtico da Glória da Catedral de Santiago, trabalhou em melhorias da antiga ponte de pedra.
Sigo para a vila de Padrón e conforme já havia decidido não ficarei em albergue. Escolho a Pension R. Jardin, uma construção de pedra do século XVIII, com excelente localização para iniciar amanhã a etapa final – que terá 23,6 quilômetros e poderá ser peregrinada em torno de cinco horas e meia. Ou seja, tudo indica que não chegarei a tempo de participar da missa dos peregrinos e assistir ao botafumeiro, às 12 horas.
Tudo bem, irei no dia seguinte. Mas, com certeza, chegarei disposto a dar um forte abraço na imagem do Apóstolo Santiago que fica no altar da Catedral e aproveitar o dia para conhecer mais as pessoas e os edifícios da Cidade Santa, considerando que no ano passado cheguei num sábado, em meio a uma movimentada feira medieval, e já no dia seguinte segui para Finisterre, sem tempo para investigar os tesouros jacobeos.
Como estou em Padrón, no menu peregrino do dia degusto os internacionalmente famosos pimentos, cultivados em Hebrón. De sabor intenso, o ditado popular galego alerta que pode ser muito ou pouco picante: “Coma os pementos de Padrón: uns pican e outros non”. Padrón é emblemática na mitologia jacobea, pois foi em Padrón que ancorou a barca com o corpo do Apóstolo Santiago Maior, vinda de Jaffa, na Palestina.
Santiago foi decapitado no ano 44 d.C. por ordem do rei Herodes Agripa I, e os discípulos de Santiago atravessaram o Mediterrâneo e a Costa Atlântica Peninsular, visando enterrá-lo na região onde o Apóstolo pregou em vida, a chamada TranslatioA barca entrou pela ría de Arousa, aportou às margens do rio Sar, perto de onde está hoje a Igreja de Santiago, e os discípulos carregaram o corpo até o monte Libredón, atual Compostela, para consumar o sepultamento.
A pedra original onde a barca foi amarrada, que dá nome à vila, se encontra sob o altar maior da Igreja de Santiago, cujo edifício atual é do século XIX, embora o primeiro templo date de 924. Ao visitá-la, a encontro repleta de turistas. Afinal, estamos comemorando Xacobeo2010, Ano Santo Compostelano. Aguardo um momento mais tranquilo e me aproximo da relíquia, que possui uma inscrição com tradução incerta, “No ori eses osp”, e um anagrama de Cristo gravado posteriormente. Junto há uma placa com frases em latim: “Cippus, cui nomen Petronum adest. Ei navim S. Jacob Zebedae Corporis. Vectricem alligatam fuisse. Pie creditur”.
É acreditar, ou acreditar!
Buen Camino!
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Ponte de Bermaña: três arcos de meio ponto, com dupla inclinação

Subindo para Carracedo a 135 metros de altitude

Depois de chuvas contínuas, sol iluminou o Caminho

Segunda-feira, presença reduzida de peregrinos

Igreja de Santa Mariña de Carracedo: torre barroca

Videiras e outras plantações ao longo do Caminho

Descendo para San Miguel de Valgae Pontecesures

Peregrino no Caminho Português

Peregrinos austríacos, Ernest e Helmut

Igreja de San Julián e cemitério em Pontecesures

Ponte medieval sobre o rio Ulla, que integra a ría de Arousa

Encenação da chegada do Apóstolo na ría de Arousa e Ulla

Placa explica tradição da pedra onde a barca do Apóstolo foi amarrada

Pedra está sob o altar da Igreja de Santiago em Padrón

Santiago Matamouros na Igreja de Santiago

Turistas celebram o mito jacobeo na Igreja de Santiago

Fachada lateral da Igreja de Santiago em Padrón

Ponte medieval sobre o rio Sar, junto à Igreja de Santiago

Rio Sar é usado para a prática de esportes náuticos

Monumento ao carro galego, de tração animal, às margens do rio Sar