Afresco de Santiago peregrino na parede da
Igreja de Sancti
Spiritus de Melide
Só posso
atribuir tantas mudanças no meu plano inicial do Caminho Primitivo, desde
Oviedo a Santiago de Compostela, em função de meu reencontro, em Melide, com o
Caminho Francês. Em 2009, ao peregrinar o Caminho Real Francês, passei direto
por Melide e descansei em Arzúa, depois Pedrouzo e, enfim, Santiago de
Compostela. Ontem, ao chegar a Melide, agora pelo Caminho Primitivo, as
lembranças de minha primeira peregrinação (que, aliás, sempre estiveram
presentes...) foram revigoradas ao rever o cruzeiro do século XIV, junto à
Capela de São Roque, considerado o mais antigo da Galícia – uma visão
exclusiva de quem peregrina o Francês...
Decidi que a
partir de Melide haveria de fazer mudanças nesta minha quinta peregrinação pelo
Caminho de Santiago... Se em 2009, após Melide, minha parada seguinte foi
Arzúa, desta vez não seria mais. Qual então a melhor alternativa, considerando
minha perspectiva de distribuir os 55 quilômetros restantes de peregrinação em
três dias, até sábado 20 de junho?
Recorrendo a
guias impressos e sites do Caminho e também trocando ideia com hospitaleiros e
peregrinos, decidi ponderar algumas exigências, como estabelecer a última
parada antes de Santiago no albergue da Xunta, no Monte do Gozo, onde há um
belo monumento dedicado ao Papa João Paulo, por sua visita a Santiago: estupendo,
o albergue conta com 800 vagas. E, além de tudo, o Monte do Gozo é ponto
emblemático da peregrinação a Santiago, localizado a cerca de 5 quilômetros da
Cidade Santa, de onde já se é possível avistar as torres da Catedral... Decidi,
então, que no sábado minha última etapa começará exatamente daí. Definida a
etapa final, minha preocupação passou a ser como equilibrar os outros cerca de
50 quilômetros de percurso em dois dias, levando em consideração os pueblos e
albergues existentes ao longo do percurso.
Tive que afastar
a possibilidade de minha 12ª etapa ser de Melide a Arzúa, com apenas cerca de
15 quilômetros – como inicialmente planejara (e para que as restantes fossem de
Arzúa a Pedrouzo, cerca de 20 quilômetros, e de Pedrouzo e Santiago, mais 20
quilômetros, preterindo a parada no Monte do Gozo...) No novo planejamento,
para que fosse possível compatibilizar esses 50 quilômetros, tinha que dar uma
esticada exatamente nesta 12ª etapa, que não poderia mais se limitar aos cerca
de 15 quilômetros. Ou seja, teria sim que atravessar Arzúa. Mas, chegar até
onde? A escolha recaiu, de forma inusitada, em Salceda, distante cerca de 10
quilômetros de Arzúa, onde está localizado um albergue turístico. Para isso, em
vez de 15 quilômetros teria que peregrinar algo em torno de 25 quilômetros – ou
seja, praticamente a mesma distância percorrida no dia anterior, ontem, de
Ferreira a Melide. Ainda me restabelecendo da tendinite no joelho esquerdo, que
me abala desde o final da terceira etapa, em Tineo, nas Astúrias, isso seria
possível?
Confiante,
acordei cedo e me preparei, tomando minhas vitaminas, comendo frutas, uma
empanada de carne, abusando da hidratação... e me atirei no Caminho. Logo me
despedi do Primitivo e ingressei, enfim, no Francês, seguindo pela Carretera de
Visantoña. Busquei sinais e lembranças da peregrinação de 2009. Ah! Quanta
coisa mudou. Ah! Quanta coisa não mudou. Entre um passo para cá e outro para lá,
peregrinei convencido de que o Francês continua o mesmo!!! Diferente do Caminho
Primitivo, que me serviu de base de comparação, constatei muitos peregrinos vestidos
à vontade, nem todos com mochila – ou se carregava mochila, certamente, contando
com transporte especial de uma segunda mochila... –, muitos no segundo ou terceiro
dia de peregrinação, quantas mulheres!!!, vendo mais peregrinos nos cafés do
que me ultrapassando ou sendo ultrapassado no Caminho...
E os
moradores dos pueblos da Galícia!!! Quanto gentileza. Basta cumprimentar com “buenos
dias!” e receber em troca um generoso “buen caminho!” No meu caso, tanto pelo
jeito, quanto pelo sotaque, a pergunta frequente é se o peregrino é brasileiro.
Com a resposta positiva, o sorriso se abria e o papo esticava, tempo para lembrar
de vizinhos e parentes que imigraram, sentir saudades...
Ah! Quanta
coisa não mudou. Ah! Quanta coisa mudou.
Os pueblos
se sucedem neste trecho do Caminho Francês, entre propriedades rurais, bosques,
muitos pássaros, pisando sobre cascalho, passando, entre outros, por O
Carballal, Raído, Parabispo, A Peroxa, Boente, Punta Brea, Figueiroa,
Castañeda, Fraga Alta, Pedrido, Río, Doroña, Ribadiso, Arzúa, As Barrosas, Preguntoño,
A Peroxa, Taberna Vella, Calzada, Calle, Boavista e, enfim, Salceda.
A mística do
Caminho está por todo lado. Para onde olho, em minha busca sem fim, o espírito
do Caminho está presente. Há Caminho de todo jeito, para todo tipo de
peregrino. Cada um faz o seu Caminho, cada Caminho é único. Esta é a mágica do
Caminho de Santiago, do reencontro consigo, da transformação interior... e
refletindo sobre todo esse poder, me passa os filmes das quatro peregrinações
anteriores, me alegrando nestes momentos finais antes do meu reencontro com as
relíquias do Apóstolo de Jesus, São Tiago Maior, na cripta da Catedral de
Santiago de Compostela.
Minha
vontade agora é só de agradecer, agradecer muito, e gritar, gritar muito:
Santiago, passa à frente!
#pedrasdocaminho
Cruzeiro de Melide, do século XIV, junto
à Capela de São
Roque, considerado
o mais antigo da Galícia
Da perspectiva de quem peregrinou o Caminho Primitivo,
neste ponto
dá-se o encontro com o Caminho Francês, com os peregrinos
hegando
pela esquerda e seguindo juntos pela Carretera de Visantoña
Em relação ao Caminho Primitivo, agora no Francês o
movimento
de peregrinos cresce de forma exponencial...
Até Arzúa, há trechos na estrada, mas também belos bosques
refrescantes, com muitos pássaros, num convite à reflexão...
Aumentam os peregrinos... e também bicigrinos
Adiós, Arzúa. Vou dar uma esticadinha até...
O inglês peregrinava catando o lixo reciclável que alguns
peregrinos atiram pelo Caminho e, perguntado porque fazia
isso, disse apenas
que tinha que ser assim...
Peregrinar
em dois... “o Caminho fica mais curto!”: uma das revelações
nesta quinta peregrinação.
Sempre busco, não sabendo o
que encontrar... e sempre aprendo. Assim é o
Caminho de Santiago!
Marco
oficial do Caminho em Salceda: a 26,3
quilômetros de Santiago de Compostela...