Por mais doloroso que possa ser, mas se até agora você não peregrinou o Caminho de Santiago, nunca mais saberá o que isto significa ou poderia significar em sua vida. Minha sinceridade poderá incomodar e parecer cruel. Chego a admitir que alguns, talvez muitos, passarão a me odiar por manifestar esta opinião. “Poderia ter permanecido calado”. Sim, poderia. E continuar me sufocando e fazendo planos de como haverá de ser o meu retorno.
A verdade é uma só: a pandemia, efetivamente,
acabou com o Caminho de Santiago. Pelo menos do jeito que se tornou conhecido ao
longo de 12 séculos.
Este é o meu sentimento após tormentosas reflexões
nos últimos meses, nas últimas semanas, nos últimos dias – quando ainda é incerta
uma vacina eficiente contra o novo coronavírus. Aliás, mesmo que ela venha, o
que pode acontecer em setembro, outubro, ou nas eleições dos Estados Unidos, o
fato é que, mesmo com uma, ou mais vacinas, independentemente de sua eficácia,
muito pouco, ou quase nada se sabe sobre como é e qual será o comportamento do
vírus.
2021 é Ano Jubilar. Lamentavelmente, o Caminho de
Santiago vive uma tragédia. Claro que este planeta é outro e ainda é cedo para
estabelecer parâmetros do “novo normal” – apenas um eufemismo para uma situação
que jamais poderá ser considerada normal. Mas não me importa falar sobre as
relações humanas no trabalho, no transporte, nas cidades, no dia a dia. Estou
farto do noticiário.
O que me importa é o Caminho de Santiago, sobre o
qual reflito e sonho (sem exagero) a cada instante. Seja de noite, e mesmo de dia,
me vejo percorrendo o solo sagrado do Caminho Francês, do Português, do Aragonês,
do Sanabrês, do Primitivo, do Inglês, do Lebaniego, atravessando bosques,
campos de trigo, pisando nas pedras de antigas vias romanas. E após cinco,
seis, sete horas de peregrinação, depois de ouvir o som do Caminho e me
surpreender em encontros, desencontros e combates comigo mesmo, chegar ao
albergue para ser acolhido pelo hospitaleiro, rever peregrinos, trocar
experiências.
Da forma semelhante, reflito e ajo a cada instante
(sem exagero) diante da pandemia, sobre os cuidados para me prevenir da contaminação
do inimigo invisível. Usar máscara, manter as mãos limpas e afastadas da boca, nariz,
olhos. Afinal, o vírus pode estar circulando ou estacionado em qualquer lugar e
a qualquer hora. Seja no elevador do edifício, na maçaneta de alguma porta, no
carrinho do supermercado, na cabine do avião, nos ambientes sob refrigeração,
ou flutuando no ar que se respira nas ruas e avenidas. É interminável a lista de
possibilidades.
Tenho medo do Caminho de Santiago.
Tenho medo de sair de casa.
Ouço e leio relatos sobre pessoas que foram
contaminadas e tenho medo de contrair a Covid-19, ser internado às pressas com dificuldade
para respirar, ser rebaixado, entubado a um respirador artificial, se houver, e
passar dias, semanas, vegetando num ambiente gelado de UTI. E por algum motivo,
depois do abandono total, não voltar mais para casa, para o lado de minha
esposa Sandra e de meu cão Billy. E ter, enfim, a certeza de que nunca mais hei
de voltar ao Caminho de Santiago; pois estarei morto e mortos não caminham.
Alegro-me, contudo, ao constatar que faço parte de
uma geração que teve o privilégio de peregrinar os últimos dias do Caminho de
Santiago. Sim, os últimos em que era possível viver intensamente as virtudes
que permeiam a tradicional rota de peregrinação, como o amor, a amizade, a fraternidade,
a solidariedade. A vontade incontida de retribuir com abraço o peregrino que te
estende a mão. O beijo involuntário no hospitaleiro que te acolhe e, a pretexto
de te curar as bolhas dos pés, ouve tuas aflições e te aquieta. O toque dos
lábios na mão do religioso que te abençoa ou na imagem do santo ou na cruz que
te conforta. O cumprimento respeitoso no morador do pueblo, que te
oferece uma fruta, um copo d’água, ou apenas lhe deseja Buen Camino!
Dormi em muitos albergues, públicos e
particulares, pensões, hotéis, e sei do potencial de contaminação que esses
locais são capazes de proporcionar. Alguns oferecem quartos insalubres, mal ventilados,
apertados, beliches amontoados, com roupas de cama nunca trocadas, e com apenas
um ou dois banheiros para atender 16, 20 pessoas – quando não 50, 100. Em cada
espaço é notória a falta de higiene. Muitas vezes sem hospitaleiro, fica a critério
do bom senso do peregrino ao lado a manutenção da limpeza. E tudo, absolutamente
tudo, acaba sendo deixado para lá; relegado a segundo ou terceiro plano, sob a
alegação de que se está em peregrinação, e que se caminha sob a proteção do
Apóstolo Santiago, o preferido de Jesus.
Rezemos!
Passada talvez a primeira onda da pandemia, logo
após a Espanha vencer o pico das 700 mortes diárias – quando já se anunciava a
retomada de atividades – era possível constatar o desespero de donos de
albergues do Caminho. O sintoma da insensatez era evidente depois de mais de
100 dias sem trabalho. O convite ao peregrino revelava a disponibilização de um
protocolo reduzido de segurança, aparentemente definido pelo proprietário do
albergue sem qualquer controle das autoridades sanitárias. Algo como álcool em
gel para as mãos; um local para colocar as botas; nenhuma referência sobre máscara;
redução no número de beliches, em vez de 10, apenas oito; e muita vontade em receber
o peregrino.
Tudo errado.
O apelo agoniado era para o pagamento antecipado de
uma eventual estadia.
Evidente que não era possível levar a sério a pretensão
de se voltar às atividades sem a definição de um modelo sanitário adequado ao
Caminho de Santiago. Afinal, o faturamento sempre aconteceu na bagunça, com a
casa cheia.
Paralelamente, a curva da pandemia subia de forma
preocupante em vários países, como Estados Unidos e Brasil. Enquanto os
americanos sofriam com 2.000 mortes diárias, o Brasil contabilizava 1.000 mortos
por dia – números que aqui se mantiveram até o final de julho, quando a
pandemia estacionou num elevado índice e fez com que o brasileiro passasse a
ser classificado como persona non grata, em vários países, incluindo, desgraçadamente,
Espanha e Portugal.
Passou a ser uma contradição continuar convidando o
peregrino brasileiro. As próprias companhias áreas, operando com voos reduzidos
e pressionadas pela comunidade internacional, começaram a fazer exigências severas
para desmotivar uma viagem com a singela finalidade de peregrinar o Caminho de
Santiago. Afinal, não se trata de uma viagem “essencial”.
Obrigado. Aviões e aeroportos estão no topo da
lista entre os locais com maior risco de contaminação pelo novo coronavírus.
Cada vez mais desmascarado, o debate revelou o
cinismo do interesse mercantil, na insana tentativa de sobrepujar o espírito
do Caminho de Santiago, quando um esperto da Galícia fez com que a imprensa
divulgasse a pretensão do Cabildo do Catedral de Santiago de Compostela de pleitear
ao Papa Francisco a extensão do Ano Jubilar de 2021, o Xacobeo2021 – quando,
historicamente, a busca por indulgência plenária tende a aumentar a afluência
de peregrinos a Compostela. Ou seja, para que Francisco declare Santo, de forma
extraordinária, o ano de 2022, embora o Dia de Santiago, 25 de julho, não venha
a cair em domingo, mas numa segunda-feira. Seria uma compensação pelo anunciado fracasso financeiro.
Absurdo!
Naturalmente, um ou dois dias depois, instado a
confirmar a ambição, o porta-voz do Cabildo tratou de negá-la. Mas, pelo sim,
pelo não, a ideia já estava lançada; do tipo, “se colar, colou”. Por ora, não
colou. E a Santa Sé está muda.
Visionário, ou buscando me manter coerente com
minhas convicções religiosas, olho o Caminho de Santiago como dádiva de Deus, a
oportunidade de experimentar a peregrinação ao túmulo do Apóstolo e tornar-se
melhor. A ocasião para qualquer um ter a felicidade de encontrar respostas para
dúvidas e necessidades espirituais.
Não vejo o Caminho de Santiago como um negócio.
Não, absolutamente, não.
O detrator será ordinário: “Sim, mas você escreve
livros sobre o Caminho e ganha dinheiro” – como li num post em rede
social, assinado por alguém que tentou se aproveitar da farsa de um tal “Caminho
de Santiago brasileiro”.
Reitero o que já registrei neste blog, que não
existe e nunca existirá Caminho de Santiago no Brasil, a famosa rota medieval
de peregrinação cristã, Patrimônio Cultural de Humanidade.
Escrevi, sim (e continuarei a escrever, pois assim
sou...), oito livros sobre o Caminho de Santiago. Sobre sete peregrinações que
fiz, uma delas ao lado de minha esposa; e, de forma especial, sobre a
peregrinação de São Francisco, desde Assis. E mais: parte da renda da venda desses
livros destinei a instituição santista que cuida de crianças portadoras de
paralisia cerebral, assim como a santuário franciscano e a igreja anglicana que
me ajudaram na divulgação das obras.
Foi assim, com alegria e sem nenhuma pretensão de
enriquecer, que compartilhei as experiências conquistadas no Caminho de Santiago
e reparti os frutos gerados por elas.
Quero voltar ao Caminho de Santiago, e como quero
voltar ao Caminho de Santiago. Sei que não encontrarei mais o Caminho de
Santiago que conheci, pois, em harmonia com o que disse no início, este Caminho
de Santiago não existe mais. Mas não sei quanto tempo, anos, décadas, durará o
impacto da pandemia sobre o verdadeiro espírito do Caminho.
Por ora, como Elias (1 Reis 19, 9-11, 13), espero
uma brisa tênue...
Buen Camino!
#pedrasdocaminho