sábado, 8 de agosto de 2020

Nunca mais!

Caminho de Santiago: abatido pela pandemia

Por mais doloroso que possa ser, mas se até agora você não peregrinou o Caminho de Santiago, nunca mais saberá o que isto significa ou poderia significar em sua vida. Minha sinceridade poderá incomodar e parecer cruel. Chego a admitir que alguns, talvez muitos, passarão a me odiar por manifestar esta opinião. “Poderia ter permanecido calado”. Sim, poderia. E continuar me sufocando e fazendo planos de como haverá de ser o meu retorno.

A verdade é uma só: a pandemia, efetivamente, acabou com o Caminho de Santiago. Pelo menos do jeito que se tornou conhecido ao longo de 12 séculos.

Este é o meu sentimento após tormentosas reflexões nos últimos meses, nas últimas semanas, nos últimos dias – quando ainda é incerta uma vacina eficiente contra o novo coronavírus. Aliás, mesmo que ela venha, o que pode acontecer em setembro, outubro, ou nas eleições dos Estados Unidos, o fato é que, mesmo com uma, ou mais vacinas, independentemente de sua eficácia, muito pouco, ou quase nada se sabe sobre como é e qual será o comportamento do vírus.

2021 é Ano Jubilar. Lamentavelmente, o Caminho de Santiago vive uma tragédia. Claro que este planeta é outro e ainda é cedo para estabelecer parâmetros do “novo normal” – apenas um eufemismo para uma situação que jamais poderá ser considerada normal. Mas não me importa falar sobre as relações humanas no trabalho, no transporte, nas cidades, no dia a dia. Estou farto do noticiário.

O que me importa é o Caminho de Santiago, sobre o qual reflito e sonho (sem exagero) a cada instante. Seja de noite, e mesmo de dia, me vejo percorrendo o solo sagrado do Caminho Francês, do Português, do Aragonês, do Sanabrês, do Primitivo, do Inglês, do Lebaniego, atravessando bosques, campos de trigo, pisando nas pedras de antigas vias romanas. E após cinco, seis, sete horas de peregrinação, depois de ouvir o som do Caminho e me surpreender em encontros, desencontros e combates comigo mesmo, chegar ao albergue para ser acolhido pelo hospitaleiro, rever peregrinos, trocar experiências.

Da forma semelhante, reflito e ajo a cada instante (sem exagero) diante da pandemia, sobre os cuidados para me prevenir da contaminação do inimigo invisível. Usar máscara, manter as mãos limpas e afastadas da boca, nariz, olhos. Afinal, o vírus pode estar circulando ou estacionado em qualquer lugar e a qualquer hora. Seja no elevador do edifício, na maçaneta de alguma porta, no carrinho do supermercado, na cabine do avião, nos ambientes sob refrigeração, ou flutuando no ar que se respira nas ruas e avenidas. É interminável a lista de possibilidades.

Tenho medo do Caminho de Santiago.

Tenho medo de sair de casa.

Ouço e leio relatos sobre pessoas que foram contaminadas e tenho medo de contrair a Covid-19, ser internado às pressas com dificuldade para respirar, ser rebaixado, entubado a um respirador artificial, se houver, e passar dias, semanas, vegetando num ambiente gelado de UTI. E por algum motivo, depois do abandono total, não voltar mais para casa, para o lado de minha esposa Sandra e de meu cão Billy. E ter, enfim, a certeza de que nunca mais hei de voltar ao Caminho de Santiago; pois estarei morto e mortos não caminham.

Alegro-me, contudo, ao constatar que faço parte de uma geração que teve o privilégio de peregrinar os últimos dias do Caminho de Santiago. Sim, os últimos em que era possível viver intensamente as virtudes que permeiam a tradicional rota de peregrinação, como o amor, a amizade, a fraternidade, a solidariedade. A vontade incontida de retribuir com abraço o peregrino que te estende a mão. O beijo involuntário no hospitaleiro que te acolhe e, a pretexto de te curar as bolhas dos pés, ouve tuas aflições e te aquieta. O toque dos lábios na mão do religioso que te abençoa ou na imagem do santo ou na cruz que te conforta. O cumprimento respeitoso no morador do pueblo, que te oferece uma fruta, um copo d’água, ou apenas lhe deseja Buen Camino!

Dormi em muitos albergues, públicos e particulares, pensões, hotéis, e sei do potencial de contaminação que esses locais são capazes de proporcionar. Alguns oferecem quartos insalubres, mal ventilados, apertados, beliches amontoados, com roupas de cama nunca trocadas, e com apenas um ou dois banheiros para atender 16, 20 pessoas – quando não 50, 100. Em cada espaço é notória a falta de higiene. Muitas vezes sem hospitaleiro, fica a critério do bom senso do peregrino ao lado a manutenção da limpeza. E tudo, absolutamente tudo, acaba sendo deixado para lá; relegado a segundo ou terceiro plano, sob a alegação de que se está em peregrinação, e que se caminha sob a proteção do Apóstolo Santiago, o preferido de Jesus.

Rezemos!

Passada talvez a primeira onda da pandemia, logo após a Espanha vencer o pico das 700 mortes diárias – quando já se anunciava a retomada de atividades – era possível constatar o desespero de donos de albergues do Caminho. O sintoma da insensatez era evidente depois de mais de 100 dias sem trabalho. O convite ao peregrino revelava a disponibilização de um protocolo reduzido de segurança, aparentemente definido pelo proprietário do albergue sem qualquer controle das autoridades sanitárias. Algo como álcool em gel para as mãos; um local para colocar as botas; nenhuma referência sobre máscara; redução no número de beliches, em vez de 10, apenas oito; e muita vontade em receber o peregrino.

Tudo errado.

O apelo agoniado era para o pagamento antecipado de uma eventual estadia.

Evidente que não era possível levar a sério a pretensão de se voltar às atividades sem a definição de um modelo sanitário adequado ao Caminho de Santiago. Afinal, o faturamento sempre aconteceu na bagunça, com a casa cheia.

Paralelamente, a curva da pandemia subia de forma preocupante em vários países, como Estados Unidos e Brasil. Enquanto os americanos sofriam com 2.000 mortes diárias, o Brasil contabilizava 1.000 mortos por dia – números que aqui se mantiveram até o final de julho, quando a pandemia estacionou num elevado índice e fez com que o brasileiro passasse a ser classificado como persona non grata, em vários países, incluindo, desgraçadamente, Espanha e Portugal.

Passou a ser uma contradição continuar convidando o peregrino brasileiro. As próprias companhias áreas, operando com voos reduzidos e pressionadas pela comunidade internacional, começaram a fazer exigências severas para desmotivar uma viagem com a singela finalidade de peregrinar o Caminho de Santiago. Afinal, não se trata de uma viagem “essencial”.

Obrigado. Aviões e aeroportos estão no topo da lista entre os locais com maior risco de contaminação pelo novo coronavírus.

Cada vez mais desmascarado, o debate revelou o cinismo do interesse mercantil, na insana tentativa de sobrepujar o espírito do Caminho de Santiago, quando um esperto da Galícia fez com que a imprensa divulgasse a pretensão do Cabildo do Catedral de Santiago de Compostela de pleitear ao Papa Francisco a extensão do Ano Jubilar de 2021, o Xacobeo2021 – quando, historicamente, a busca por indulgência plenária tende a aumentar a afluência de peregrinos a Compostela. Ou seja, para que Francisco declare Santo, de forma extraordinária, o ano de 2022, embora o Dia de Santiago, 25 de julho, não venha a cair em domingo, mas numa segunda-feira. Seria uma compensação pelo anunciado fracasso financeiro.

Absurdo!

Naturalmente, um ou dois dias depois, instado a confirmar a ambição, o porta-voz do Cabildo tratou de negá-la. Mas, pelo sim, pelo não, a ideia já estava lançada; do tipo, “se colar, colou”. Por ora, não colou. E a Santa Sé está muda.

Visionário, ou buscando me manter coerente com minhas convicções religiosas, olho o Caminho de Santiago como dádiva de Deus, a oportunidade de experimentar a peregrinação ao túmulo do Apóstolo e tornar-se melhor. A ocasião para qualquer um ter a felicidade de encontrar respostas para dúvidas e necessidades espirituais.

Não vejo o Caminho de Santiago como um negócio.

Não, absolutamente, não.

O detrator será ordinário: “Sim, mas você escreve livros sobre o Caminho e ganha dinheiro” – como li num post em rede social, assinado por alguém que tentou se aproveitar da farsa de um tal “Caminho de Santiago brasileiro”.

Reitero o que já registrei neste blog, que não existe e nunca existirá Caminho de Santiago no Brasil, a famosa rota medieval de peregrinação cristã, Patrimônio Cultural de Humanidade.

Escrevi, sim (e continuarei a escrever, pois assim sou...), oito livros sobre o Caminho de Santiago. Sobre sete peregrinações que fiz, uma delas ao lado de minha esposa; e, de forma especial, sobre a peregrinação de São Francisco, desde Assis. E mais: parte da renda da venda desses livros destinei a instituição santista que cuida de crianças portadoras de paralisia cerebral, assim como a santuário franciscano e a igreja anglicana que me ajudaram na divulgação das obras.

Foi assim, com alegria e sem nenhuma pretensão de enriquecer, que compartilhei as experiências conquistadas no Caminho de Santiago e reparti os frutos gerados por elas.

Quero voltar ao Caminho de Santiago, e como quero voltar ao Caminho de Santiago. Sei que não encontrarei mais o Caminho de Santiago que conheci, pois, em harmonia com o que disse no início, este Caminho de Santiago não existe mais. Mas não sei quanto tempo, anos, décadas, durará o impacto da pandemia sobre o verdadeiro espírito do Caminho.

Por ora, como Elias (1 Reis 19, 9-11, 13), espero uma brisa tênue...

Buen Camino!

#pedrasdocaminho