terça-feira, 28 de abril de 2015

12 séculos de peregrinação

Cruz símbolo do Reino das Astúrias

Neste momento em que conto dias para o embarque a Madri, e de lá a Oviedo, desde onde inicio minha peregrinação, ops, tudo bem, não tenho dúvida de que já estou no Caminho!, que ele iniciou no exato momento em que decidi a peregrinação, mas, enfim..., falava sobre Oviedo, na Espanha, desde onde inicio minha peregrinação pelo Caminho Primitivo a Santiago de Compostela, um percurso de cerca de 310 quilômetros, refazendo o roteiro do rei Alfonso II, o Casto, realizado no primeiro terço do século IX, segundo conta a tradição, embora alguns autores sustentem ter ocorrido exatamente em 812, 813, ou mesmo em 815 – o que pode significar que em 2015 estaríamos completando 1.200 anos! –, ou em 820..., enfim, desde Oviedo, para repetir a viagem do guerreiro rei das Astúrias (região que envolvia a Galícia e foi a primeira na Península Ibérica que se libertou do domínio dos mouros, dando ânimo ao processo da Reconquista...), que deixou a sede do reino até o local onde a autoridade eclesiástica representada pelo bispo Teodomiro, de Iria Flávia, alertado pela descoberta do eremita Pelágio, ou Paio, havia identificado no bosque de Libredón um sepulcro de pedra com três corpos, o do apóstolo de Jesus, Tiago Maior, e de dois dos seus discípulos Teodoro e Atanásio...
Para quem acompanha cada detalhe deste relato não há de ter dúvida que se está diante não só do primeiro, de onde deriva seu nome, Primitivo, mas, talvez – afinal a comparação é muito difícil –, do mais interessante, do mais espetacular... (do mais antigo com absoluta certeza), dentre os Caminhos que levam a Santiago de Compostela, sem querer desmerecer o Caminho Francês, o preferido dos peregrinos atuais, ou a Vía de la Plata, que vem desde Sevilha e está alicerçado (como aliás outros também estão) na magnífica rede de vias romanas, descrita no Itinerarium Provinciarum Antonini Augusti, o Itinerário de Antonino, consolidada nos primeiros séculos da era cristã...
Mas, voltando ao Caminho Primitivo, conta a tradição que após peregrinar até o local indicado pelo bispo Teodomiro, tornando-se assim o primeiro peregrino às relíquias de Santiago, o rei Alfonso II das Astúrias determinou a construção de uma pequena igreja – que viria a ser ampliada nas décadas seguintes até transformar-se na magnífica catedral de hoje, cuja construção iniciou em 1075, e onde em sua cripta repousam as relíquias... Pois foi a partir do incrível achado que teve início o fenômeno das peregrinações. E não apenas desde Oviedo, mas induzindo rotas de vários pontos da Europa, como se disse, quase sempre aproveitando e reconstruindo a antiga rede de vias romanas, o que serviu para repovoar o antigo assentamento romano, possivelmente um mansio, que passou a se chamar Santiago de Compostela, tornando-se a terceira maior rota de peregrinação cristã do planeta, superada apenas por Jerusalém e Roma.
Para reforçar sua convicção nesta tradição, veja este interessante vídeo de 7m45’. Clique na foto:


Discípulos trazem o corpo de Tiago Maior...

Diante de tudo isso, neste momento, como já disse, em que conto dias, me pergunto por qual motivo o Primitivo não foi minha primeira escolha para o meu encontro no Caminho de Santiago? Fácil, não conhecia este Caminho. Afinal, ao decidir peregrinar em 2009 a Santiago, fui inspirado a fazer os 800 quilômetros do Caminho Francês, desde Saint Jean Pied de Port, disposto a atravessar os Pirineus, da França a Espanha. Escolhi o Francês pelo fato de ser o mais famoso, o mais celebrado, o mais estruturado, aquele que serviu de cenário para a famosa ficção de Paulo Coelho... Mas, então, porque não foi o segundo? Da mesma forma, ainda não conhecia o Primitivo – se é que isso é possível! Minha segunda peregrinação foi pelo Caminho Português, em 2010, desde a cidade do Porto, cerca de 240 quilômetros até Santiago. E, depois, em 2012, porque não foi o meu terceiro Caminho a Santiago? Ora, continuava a ignorar o Primitivo. E, diante das opções avaliadas, escolhi enfrentar os cerca de 180 quilômetros do Caminho Aragonês, no trecho entre Somport, nos Pirineus, a Puente la Reina, onde ele se encontra com o Caminho Francês (atualmente, a bem da verdade, o encontro acontece alguns quilômetros antes, em Obanos...).
Meu despertar ao Caminho Primitivo só viria a acontecer, de forma efetiva, após concluir a peregrinação pelo Caminho Aragonês, quando revisava e escrevia textos para “Busca sem fim”, o terceiro livro da trilogia “Pedras do Caminho”. Conheci o Primitivo em meio a tantas novas informações sobre a mística do Caminho de Santiago, entre as quais, o conceito de rotas tangenciais, uma tendência secular de antigos peregrinos que se desviavam dos caminhos tradicionais para celebrar relíquias e santuários; eu mesmo tendo adotado uma rota tangencial, sem ter a dimensão do que fazia, em 2009, ao sair do tradicional Caminho Francês e ir ao encontro da Ermita de Eunate, um dos marcos dos cavaleiros da Ordem do Templo no Caminho Aragonês, e, em 2012, ao deixar o tradicional Caminho Aragonês e seguir até o Monastério Real de San Juan de la Peña, onde, segundo a tradição, durante alguns séculos ficou guardado o Santo Graal...
Neste momento, aliás, tive a dimensão de que nada, ou muito pouco sabia sobre o Caminho de Santiago – afinal, são 12 séculos de história da famosa rota de peregrinação!!! Desde então uma máxima do Caminho passaria a me perseguir:
Quien va a Compostela y no visita al Salvador, honra al criado y olvida al Señor.
A frase refere-se a Oviedo, onde está a Catedral de El Salvador, cuja Câmara Santa guarda inúmeras relíquias, como a Cruz dos Anjos, doação de Afonso II e símbolo de Oviedo; a Cruz da Victória, doação de Afonso III (século X), símbolo das Astúrias; e, com certeza a mais importante, uma das duas peças do Santo Sudário, a que protegeu a cabeça de Jesus após sua crucificação... – a outra, que abrigou o corpo de Jesus, está em Turim, na Itália.
Aliás, é levando ao pé da letra a célebre frase que persegue o Caminho desde o período da Alta Idade Média que muitos peregrinos do Caminho Francês, quando chegam a León, adotam uma rota tangencial, denominada Caminho Salvador, com cerca de 100 quilômetros, e seguem direto a Oviedo, para demonstrar que não, não esquecem o Salvador...
Ora, se já sabia tudo isso em 2012, qual a razão de o Caminho Primitivo não ter sido a minha escolha natural em 2013, quando realizei minha quarta peregrinação, desta vez pelo Caminho Sanabrês? Boa pergunta. Mas, estou tranquilo para repetir os argumentos que articulei ao relatar o belo percurso, passo a passo, etapa por etapa (e foram 16!), no livro “Descobrindo novos Caminhos”, lançado em março passado na Pinacoteca Benedicto Calixto, em Santos, no litoral do estado de São Paulo. Sim, assumi o desafio de peregrinar os cerca de 420 quilômetros do Caminho Sanabrês, iniciado na verdade de Zamora, ainda na Vía de la Plata, porque este Caminho, como o Francês e o Português, chega direto a Santiago de Compostela. Ou seja, é diferente, por exemplo, do Aragonês, que, como disse, se encontra com o Francês em Puente la Reina (hoje, um pouco antes, em Obanos...), seguindo juntos para Santiago de Compostela. É diferente também da Vía de la Plata, que se encontra com o Francês em Astorga... É diferente ainda do Caminho do Norte, que se encontra com o Francês em Arzúa... E é diferente do Primitivo, que se encontra com o Francês em Mélide...
Hoje, superado esse detalhe – e já de olho no Caminho Inglês (que continua um segredo para mim e um dos que chega direto a Santiago de Compostela...) – agora é a vez do Caminho Primitivo. É tarde? Não acredito. Nem cedo, nem tarde, a energia do Caminho Primitivo entrará na minha vida no momento certo, numa circunstância muito especial, no qual me considero preparado para mais este esforço, não só físico e mental, mas especialmente pelo volume de conhecimento que adquiro nas pesquisas históricas que faço sobre a formação e a importância do reino das Astúrias..., um esforço que interpreto como essencial para me lapidar neste processo de autoconhecimento e renovação espiritual. Acredito que tenha que ser assim mesmo.
Oviedo, estou chegando.
Santiago, passa à frente!

#pedrasdocaminho