domingo, 31 de maio de 2015

O espírito do Caminho

Santiago peregrino, a imagem mais antiga da Espanha, século XI:
no portal da Igreja de Santa Marta de Tera, Caminho Sanabrês

Vou em busca do espírito do Caminho de Santiago. Não é simples compreender isso. É possível que algumas pessoas nunca consigam – ou nem precisem. Não tem nada a ver com livrar-se das tarefas do dia a dia em sua cidade, em seu país, e deixar tudo acontecer na Espanha, e lá fazer aquilo que der na cabeça, transgredir e nem ligar para as consequências... Isto é outra coisa e tem mais a ver com aquele período da vida de qualquer um, no qual a responsabilidade não faz parte das prioridades pessoais; e quando, muito menos, interessa cultivar virtudes.
Ah!, sim, vou em busca do espírito do Caminho de Santiago, pois sei que nele é possível descobrir virtudes. Elas estão em todos os lugares, nas pedras do Caminho, nos bichos, na gente, enfim, na mística da peregrinação às relíquias do Apóstolo de Jesus, Tiago Maior, guardadas na cripta da catedral de Santiago de Compostela.
Com a popularidade acumulada ao longo de 12 séculos, todos os Caminhos que levam a Santiago de Compostela atraem pessoas de várias partes do mundo, a grande maioria, naturalmente, da própria Espanha. Afinal, tendo Santiago como patrono de seu país, para o espanhol a peregrinação não é uma decisão qualquer: não se trata, por exemplo, de fazer turismo. Pelo contrário, é uma escolha séria, cercada de ritual, comparada a uma prova de vida. Não é como acontece em muitos outros países, entre os quais o Brasil, na qual a peregrinação a Santiago parece não fazer o mesmo, ou nenhum sentido, sendo equivalente a uma viagem de lazer, como a Ouro Preto, Caldas Novas, ou às Cataratas do Iguaçu.
Um desentendimento, contudo, que não tem qualquer importância, seja para o espanhol ou para os povos que possuem a dimensão da peregrinação, seja para os demais, para os quais tal esforço, como se disse, não tem o mesmo, ou qualquer significado, representando tão-somente um passeio por paisagens fantásticas, enriquecidas por um monumental patrimônio histórico, artístico, arquitetônico, palco de batalhas intermináveis que transformaram civilizações, berço de nossos antepassados...
Pois se é assim, cada caminhante é dono do seu Caminho e há de percorrê-lo do jeito que lhe convier, sem qualquer compromisso ou, como diria o poeta, “sem lenço e sem documento”. Com essa disposição, o caminhante – e aqui já é possível chama-lo de andarilho –, interpretará a seu modo cada provérbio do Caminho, como o que ensina que “o Caminho sou eu”, ou “o Caminho se faz caminhando”.
E que se cuide quem ousar impedi-lo de caminhar!!!
Mas não haverá, com absoluta certeza, quem o censure a caminhar, pois uma das virtudes do Caminho é a liberdade, e nesse sentido qualquer um é livre para caminhar, com a indumentária e os equipamentos que quiser, visando apreciar a bela paisagem e usufruir de toda a infraestrutura fomentada para atender ao peregrino.
Ao final de rápidas ponderações – sobre as quais, aliás, escrevi alguns livros... –, fica fácil distinguir o espírito da peregrinação por meio de uma famosa máxima do Caminho:

“El turista viaja,
El senderista anda,
El peregrino busca.”

Para vivenciar a mística do Caminho de Santiago e, por meio da peregrinação, garimpar virtudes, encontrando-as nas mais sublimes atitudes, seja na saudação dos moradores dos pueblos, no acolhimento dos hospitaleiros, em especial entre os que exercem a atividade de forma voluntária nos albergues, e mesmo entre peregrinos (de qualquer nacionalidade), não basta simplesmente caminhar. Ou seja, não basta ESTAR! Para penetrar no universo da peregrinação, envolver-se com o espírito do Caminho de Santiago, evoluir ao encontrar-se consigo mesmo neste ambiente em que prevalecem as virtudes, como a solidariedade, a amizade, o amor, a fraternidade, o respeito, a caridade..., é preciso SER.
A escolha, obviamente, como já se disse e se reitera, é livre de cada um e cada qual deve saber de sua vida e responder por seus atos. A propósito, ainda que nos dias de hoje muitos (nem todos...) que fazem o Caminho assumam motivos turísticos, lembro de um ensinamento obtido numa de minhas peregrinações, em 2010, Ano Jacobeo, pelo Caminho Português. Na ocasião, o hospitaleiro me revelou que dois franceses haviam acabado de descer de um táxi, nas imediações do albergue e, flagrados, foram logo explicando que um deles havia torcido o pé, mas que no dia seguinte estavam dispostos a voltar ao ponto onde haviam contratado o táxi para dali retomar a peregrinação. O hospitaleiro teria autoridade para negar acolhimento, indicando uma Casa Rural ou hotel, mas, em vez disso, recepcionou os caminhantes. Apenas advertiu: “Sobre o Caminho, vocês se acertam com o Apóstolo em Santiago!”.
Como no post imediatamente abaixo – hoje, já contando as horas... –, logo mais iniciarei minha peregrinação pelo Caminho Primitivo, desde Oviedo. Será minha quinta peregrinação a Santiago de Compostela e, por tudo o que aprendi nas anteriores, espero que não seja a última, até porque entendo que essa busca é sem fim – como intitulei o terceiro livro da trilogia Pedras do Caminho...
Por ora, cuido dos detalhes desta peregrinação, que envolve a magnífica história do começo da peregrinação a Santiago de Compostela, e que se insere no processo da famosa Reconquista... Trata-se de um percurso em torno de 320 quilômetros, que atravessa belas paisagens dos Picos de Europa, onde a presença do apóstolo Tiago Maior é celebrada no contexto de conhecido provérbio da Idade Média: “Quien va a Compostela y no visita al Salvador, honra al criado y se olvida del Señor”.
Santiago, passa à frente!

#pedrasdocaminho