sexta-feira, 28 de junho de 2019

Com os pés na Galícia


Albergue de O Cebreiro

Colocar os pés na Galícia marcou o final da 23ª etapa de minha peregrinação pelo Caminho Francês, de Cacabelos a O Cebreiro, com cerca de 36 quilômetros, que completei hoje, há 10 anos...
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

COM OS PÉS NA GALÍCIA

Desde que iniciei a peregrinação, cruzando a Espanha de Leste a Oeste, passei pelas Províncias de Navarra, La Rioja, Burgos, Palencia e León y Castilla. Neste domingo 28 de junho, às 15 e 40, ao entrar no povoado de O Cebreiro, dei o primeiro passo na Galícia (que é um conjunto de províncias), cuja capital é Santiago de Compostela.
A cidade de pedra, como O Cebreiro é conhecida, está a cerca de 1.300 metros de altitude e oferece uma paisagem impressionante, de uma sequência de morros forrados de plantações... Mas até Santiago, que está a 250 metros acima do nível do mar, haverá ainda muitas subidas e descidas, a mais alta delas em Alto de Riocabo, a 900 metros...
No sábado, quando sai de Molinaseca e me detive no Castelo dos Templários, em Ponferrada, terminei a etapa em Cacabelos, somando mais 23,3 quilômetros à peregrinação – o que está dentro de uma média razoável... No domingo, para compensar, e como o objetivo estava na chegada, em O Cebreiro, fiz 36,6 quilômetros.
Apenas para dar uma pontuada, pelas minhas contas já caminhei 613,9 quilômetros – o que significa que, de O Cebreiro, 185,1 quilômetros me separam de Santiago de Compostela. Essas são as minhas contas... pois o guia Rother informa que desse ponto faltam 159,8 quilômetros, enquanto para o El País/Aguilar seriam apenas (!) 154,7 quilômetros.
Mas, e a Galícia? O que se diz é que se trata de uma região misteriosa, onde é muito forte uma tradição pré-cristã, com destaque para a cultura megalítica (4000 anos a.C.) e símbolos da Idade do Bronze (1800 a.C.).
Os celtas habitaram as terras da Galícia desde os anos 700 a.C., até a invasão dos romanos, em 135 a.C., e a eles se deve o nome “galaicos”...

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Templários em Ponferrada


Principal resquício de construção templária do Caminho Francês

O Castillo de los Templarios, em Ponferrada, me surpreendeu na 22ª etapa do Caminho Francês, de Molinaseca a Cacabelos, com cerca de 25,1 quilômetros, que completei hoje, há 10 anos...
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

TEMPLÁRIOS EM PONFERRADA

Saindo de Molinaseca, depois de 4,4 quilômetros de caminhada se passa por Campo e mais 3,6 quilômetros se chega a Ponferrada, considerada a última grande concentração urbana antes de Santiago de Compostela.
Ponferrada, entre outras construções seculares, tem como destaque o Castillo de los Templarios, cujas obras de sua primeira fase teriam sido concluídas em 1282, apesar de que o castelo foi habitado pelos monges guerreiros desde 1178 até o fim da organização em 1312. Desse período, restou apenas uma muralha – todo o restante do castelo atual foi construído nos séculos XIV e XV, após ter sido confiscado e, em seguida, ocupado por Pedro Fernández de Castro. Este senhor levantou o castelo hoje existente num extremo, denominado Castillo Viejo. Durante o século XV, informa o Ayuntamiento de Ponferrada, pertenceu ao duque de Arjona, a sua irmã Beatriz de Castro e seu esposo Pedro Álvarez de Osorio, Conde de Lemos, que realizou inúmeras obras e transformou o lugar num luxuoso palácio, que passou a se chamar Castillo Nuevo.
A fortaleza, que é anunciada como o principal resquício de construção templária do Caminho, está no centro de Ponferrada e ocupa cerca de 8.000 metros quadrados de área.
As visitas aos sábados, contudo, só iniciam às 11 horas... Ou seja, desde que sai de Molinaseca fiquei enrolando no café da manhã fora do albergue, fui para frente da biblioteca municipal, onde o wifi continuava funcionando apesar de não haver expediente, e fiz o trajeto de 8 quilômetros em passo de tartaruga... Um fato inusitado é que em Campo cruzei com cinco peregrinos que fazem o Caminho a cavalo.
O comum é a pé e de bicicleta; a cavalo foram os primeiros. Cumprimentei o grupo e fiz fotos. Gostaria de ter podido conversar, saber de onde saíram, se vão direto etc. – afinal nos finais de semana e principalmente nos finais de semana aparece de tudo no Caminho –, mas passaram lotado...
Permaneci no “Godivah”, um espaço gourmet em frente ao castelo que tem folheados deliciosos. Consegui me conectar numa rede e adiantar o texto... Antes, fiz fotos externas. Aguardei a abertura da bilheteria do castelo e mediante 3 euros pude fazer fotos internas.
Sobre os cavaleiros famosos, vale lembrar que a Ordem dos Templários, de cunho religioso e militar, foi criada em 1118, por Hugues de Payens, Geoffrey de Saint Ademar e outros cavaleiros. Seguindo regras de castidade, pobreza e obediência, o objetivo era proteger os lugares santos da Palestina e os peregrinos, inclusive os de Santiago de Compostela. Consta que lideraram os exércitos das Cruzadas. Com o tempo, conquistando poder e dinheiro, construíram fortalezas, igrejas, estradas e pontes. Até que o Papa Clemente V determinou a extinção da Ordem e confiscou seus bens... O último Grão Mestre dos Templários foi Jaques Demolay, queimado em praça pública. Sua morte não representaria o fim dos princípios da Ordem, pois muitos dos seus integrantes foram abrigados em outras organizações secretas, colaborando para solidificar cada vez mais os conceitos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

La Cruz de Hierro


O peregrino e a cruz solitária de ferro sobre um mastro de madeira...

Uma solitária cruz de ferro sobre um mastro de madeira de 5 metros, La Cruz de Hierro, marca o ponto mais alto do Caminho Francês, com quase 1.500 metros de altitude, durante a 21ª etapa pelo Caminho Francês, de Santa Catalina de Somoza a Molinaseca, cerca de 39,9 quilômetros, que completei hoje, há 10 anos...
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

O PONTO MAIS ALTO... ISTO É REAL!

Hoje, ao peregrinar a minha etapa 21 do Caminho – de Santa Catalina de Somoza até Molinaseca, algo em torno de 39,9 quilômetros... – passei de manhã emLa Cruz de Hierro. Trata-se do ponto mais alto do Caminho Francês, com quase 1.500 metros de altitude, marcado por uma solitária cruz de ferro sobre um mastro de madeira de 5 metros. Diz a lenda que o peregrino deve trazer uma pedra de seu lugar de origem e deixá-la na base, para se livrar de suas cargas e culpas e ter proteção na viagem...
Como sabia dessa necessidade, trouxe do Brasil uma pedra na minha mochila e lancei-a no monte. Vai que...
Ao cruzar por La Cruz de Hierro passei pelo penúltimo maior obstáculo do Caminho – afinal você parte de altitude de 900 e poucos metros, em Santa Catalina de Somoza, atinge os quase 1.500 metros, e desce para Molinaseca, a menos de 600 metros do nível do mar...
Penúltimo, porque o último, conforme apontam os guias que me auxiliam, dentro de uns dias estarei chegando a O Cebreiro, a pouco mais de 1.300 metros de altitude... se bem que alguns dias depois tem o Alto de Riocabo, a 900 metros...
Mas não adianta se preocupar por antecipação, pois tudo depende das condições do solo, da meteorologia e, claro, de como eu estiver no momento. Hoje, por exemplo, estava muito bem. Só isso para justificar uma caminhada de quase uma maratona. Aliás, nesse momento de projeções e balanços, acabo de constatar que, para o guia El País/Aguilar, de Molinaseca estou 214,5 quilômetros distante de Santiago de Compostela. Ou seja, já teria percorrido exatos 584,5 – considerando os 799 quilômetros do Caminho Francês. Já para o guia Rother, faltariam 220 quilômetros até Santiago e eu já teria peregrinado 579 quilômetros... Contudo, considerando as minhas contas, eu teria somado 554,1 quilômetros e restariam 244,9 quilômetros. Com certeza um dos três, ou os três fizeram contas erradas... Sinceramente, as contas de El País/Aguilar me são mais favoráveis, pois só 214,5 quilômetros me separam de Santiago de Compostela!
Mas, afinal...
– O Neguinho não tinha mais o que fazer? – perguntou meu irmão quando minha mãe lhe contou que eu estava peregrinando o Caminho de Santiago.
Assim como a incredulidade do “Batata”, as reações são as mais inusitadas ao se saber por onde ando, especialmente se o interlocutor já ouviu falar, leu ou teve algum amigo que fez o Caminho – principalmente se foi a pé. Afinal são cerca de 800 quilômetros, em condições nem sempre ideais para uma caminhada, como a que se faz na orla de Santos...
Gerson diz que nem de carro... “Macarrão” garante que vai acompanhar sentado em frente ao micro... Léa parabeniza e... não se fala mais nisso! O apoio vem da família, Sandra, dona Maria, Flávia, Juliana, Lady (meio chateada...). O entusiasmo chega de todos os “loucos”, Lisbôa, Hilda, Waldir, Glauco, Guerato, Campos, Thomas, Denys, Zé Cássio, Zilli, Hugo, Joaquim, Antonio Maria, Arnaldo, Marcão, Braga, Bunitão, Edu, Ariomar, Marinho, Maratona, Angela, Jacuí, Oscarzinho, Rô, Di Renzo, Santana, Soto, Filetti, Felipe, Tati (e o afilhado Mateus deve ter pensado...), Caio, Ibrahim (e outros que não tiveram a oportunidade de postar...).
Legal que todos os que acham a iniciativa interessante pensam também um dia concretizá-la. Não sei o que estão esperando! Se programem para o próximo Verão; ainda mais considerando que 2010 é ano jubilar, quando o perdão divino é garantido a todos os pecadores que chegarem a Santiago... A todos vocês digo que é possível qualquer um, ainda que com a fragilidade da idade e o costume do conforto, tirar de letra os quase 800 quilômetros do Caminho. Como já contei, até este momento topei com situações quase impossíveis, caso da americana de 84 anos, que faz as etapas conforme sua condição. Dias atrás, num restaurante em Reliegos, conheci a brasileira Eudóxia, 74 anos. Ela mora na Zona Norte de São Paulo e, na base de 10 a 15 quilômetros por dia, está fazendo o Caminho desde 25 de maio.
Quer mais: em 25 de junho, em Murias de Rechivaldo, quando fazia o trecho entre Hospital de Órbidos e Santa Catalina de Somoza, encontrei um casal da terceira idade que faz o Caminho não de Saint Jean, mas de Le Puy, também na França, o que acrescenta mais de 750 quilômetros à caminhada – totalizando algum em torno de 1.549 quilômetros.
Ela carrega uma mochila e ele uma mala com rodinhas. Falei com ele, que se identificou como Francis, e contou que haviam saído de Le Puy no domingo de Páscoa... Fiz fotos e dei votos de ânimo!
Mas tem gente que anda muito mais, vem de outros pontos da França, da Holanda, da Alemanha... Ou seja, não tem limite, muito menos de idade para aceitar o desafio. Desafio?
A verdadeira motivação para desembarcar em Saint Jean Pied de Port, na França, para dar o primeiro passo, acredito, será para mim sempre uma incógnita, por mais que pense e tenha, na ponta da língua, mais de 1.001 motivos para expor. Da mesma forma, ignoro a origem da disposição para acordar diariamente às 6 horas para andar e andar, sozinho – em parte, pois você passa e é passado por outros peregrinos, a pé ou de bicicleta, ou cruza com a gente dos pueblos (sempre com o cumprimento “Buen Camino, Peregrino”) ah! e os bichos do Caminho, como lesmas de vários tipos, sapos, pássaros (ouvir o cuco é demais...), ovelhas, bois, cavalos, salamandras, formigas, lagartos, cães, gatos, um tal de chinche, uma praga, que, sinceramente, não vi nenhum...
Nos últimos dias penso e me preparo para enfrentar o encontro com Santiago de Compostela. Afinal, acredito que tudo, absolutamente tudo, desde a mordida do mosquito, até a preparação, o primeiro passo, o dia a dia, as coincidências..., enfim, a própria existência... todo esse quebra-cabeça dos últimos dias possivelmente se cristalizará no momento mágico em que avistar as torres da catedral de Santiago de Compostela...
A torre da igreja, via de regra, é a primeira coisa que se vê quando se está chegando ao povoado ou à cidade. Durante o Caminho esta é uma expectativa presente a cada passo; uma sensação de conforto... não tanto pela religiosidade, ou inconscientemente sim, sei lá, mas principalmente pela perspectiva de conhecer o pueblo; parar e se livrar um pouco da mochila, descansar, comer ou beber alguma coisa... Consumir?
Este é um dos efeitos Santiago de Compostela!
O tempo disponível te dá a oportunidade de avaliar cada movimento, cada olhar, sob vários aspectos, e são tantos que se somam, que, ao final, será a conjugação deles que poderá te aproximar um pouquinho mais e com melhor clareza daquilo que é real...

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Lendas...


Ponte medieval em Hospital de Órbigo

De Iacomus surgiu (Sant) Iago e de Iacabus surgiu Jacobo y Jacob..., ao final da 19ª etapa pelo Caminho Francês, de La Virgen del Camino a Hospital de Órbigo, cerca de 28,7 quilômetros, que completei hoje, há 10 anos...
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IMAGENS DA ROTA JACOBEA

Uma questão que me intriga sobre o Caminho é o fato de os textos, em guias e na internet, sempre se referirem à rota jacobea.
Afinal, qual seria o motivo, se o santo é São Tiago Maior, ou Santiago, o apóstolo cujo sepulcro foi encontrado na região hoje denominada Compostela – outro termo cuja explicação é divergente.
Entre as explicações para a palavra jacobea designar o Caminho de Santiago deve ser considerado, em primeiro lugar, que Santiago em inglês é Saint James. E James, segundo o dicionário American Heritage Dictionary of the English Language, vem do latim antigo Iacomus, que é uma variante de Iacobus, que vem do hebreu Yaakov. Assim, de Iacomus surgiu (Sant) Iago e de Iacabus surgiu Jacobo y Jacob.
Outra palavra polêmica no âmbito do Caminho é Compostela. Há quem considere que derive de campus stellae, que significa “campo da estrela”, devido à lenda que um monge viu uma estrela bailando no céu antes de cair e indicar a tumba do apóstolo.
Há especialistas, contudo, que afirmam que o termo vem de compositum tellum, que significa “sepulcro bem cuidado”, pois esta era a situação da tumba de Santiago no momento em que foi encontrada.
Lendas e divergências do Caminho...

Negócios...


Ao longo dos anos, Caminho de Santiago mudou muito...

Refletindo sobre a essência do Caminho de Santiago, escrevi sobre os negócios que nele proliferam, após a 18ª etapa, de Reliegos a La Virgen del Camino, cerca de 32,5 quilômetros, que completei ontem, há 10 anos...
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

O “BUSINESS” DO CAMINHO

A peregrinação deixa marcas no peregrino, não só aquelas mais profundas – n’alma, por exemplo, pois como se diz, “ele nunca mais será o mesmo!” –, mas tantas outras pelo corpo, que acabam sendo compartilhadas pelos que estão no Caminho.
Os pés são os que mais sofrem – e os joelhos, os ombros, as costas... também, devido ao peso da mochila. Mas, as bolhas nos pés são inevitáveis e aparecem mesmo que o calçado seja o mais adequado e o peregrino dos novos tempos tenha tido a oportunidade de planejar o uso diário das botas antes de pôr o pé na estrada.
O piso irregular em que os passos são dados, quase sempre de cascalho e pedra, mesclado com subidas e descidas, determinam uma pisada que ora força a ponta dos pés – e aí as bolhas surgem dos dedos para a planta –, ora o calcanhar, formando bolhas exatamente nessa parte do pé.
Com bolhas nos pés fica muito difícil caminhar. Uma forma de prevenir o surgimento de bolhas logo no primeiro dia é evitar andar com as meias úmidas. O ideal, assim que o suor ensopou os pés, é trocar as meias.
Ah! E menos mal se forem só as bolhas, pois há casos em que o pé, o tornozelo, o calcanhar ou o joelho incham, talvez resultado de algum processo inflamatório, e andar fica quase impossível!
Eu mesmo acompanhei o sofrimento de um peregrino durante dois dias seguidos, desde que chegou a Frómista. A comoção era geral, pois todos ouviam seus gritos. No dia seguinte, achando até que havia abandonado o Caminho, o encontrei na rua seguindo em frente. À noite, chegou gemendo a Calzadilla de la Cueza, depois de percorrer 36,4 quilômetros!
Eu mesmo, embora sabendo que não deveria, ofereci comprimido de aceclofenaco, que levei para minhas dores na coluna, mas ele não aceitou. Ainda bem. Vai que tem alergia...
O sofrimento, nesses casos, desencadeia um fenômeno solidário, desde o colega peregrino ao hospitaleiro, que é o responsável pela acolhida do doente.
A dor, portanto, faz, sempre fez e fará parte do Caminho. Imagino os muitos casos de dor em todos esses séculos de peregrinação... Antigamente, a maioria dos peregrinos ia provavelmente descalça, fazendo a rota jacobea com motivações muito diferentes das de hoje, quase que absolutamente sob a pressão da Igreja, com o objetivo de buscar a indulgência e se livrar do pecado.
Afinal, em 1119, o papa Calixto II concedeu ao peregrino de Santiago durante o ano jubilar, como será 2010 (*), quando o Dia de Santiago Maior, 25 de julho, cai num domingo, o perdão a todos os seus pecados. Então, peregrinar nos demais anos não conta? Deve contar, ora!
Quem tinha dinheiro pagava a chave celeste... Descalço, aquilo sim é que era sofrimento – daí terem proliferado tanto hospitais e albergues de peregrinos no Caminho, até muito mais e maiores do que nos dias de hoje, conforme relatos dos guias medievais. Aliás, em 1332, o papa João XXII concedeu indulgência às pessoas que ajudassem os peregrinos com hospedagens ou com esmolas, o que fez ampliar essa estrutura...
Por isso, foi com estupefação que a hospitaleira Carmen, do Albergue Municipal de Peregrinos de Frómista, numa manhã de junho, atendeu um motorista de táxi. Em 21 anos de hospitalaria ela nunca havia presenciado tal cena. O taxista trazia duas mochilas, devidamente identificadas, e colocou aos seus pés.
– São de dois peregrinos.
– Dois o quê? – não acreditou Carmen.
Pois é, os peregrinos haviam contratado o táxi para levar as mochilas para o Albergue Municipal. Fariam a peregrinação tal como peregrinos, ou seja, fantasiados com roupas tradicionais, tecido leve, cor caqui, botas de solado resistente, cajadinho básico de alumínio, e uma pochetezinha na cintura, com dinheiro para o menu ou o bocadilho num dos muitos bares existentes no Caminho, credencial de peregrino adquirida em alguma das associações de amigos e quando chegassem...
Pois é, quando chegaram, pediram para ver o albergue, não gostaram e foram para o hotel ao lado.
– Não recebo mais mochila aqui –, vacinou-se Carmen – Este não é o espírito do Caminho.
Eis a questão, qual é o espírito do Caminho?
Ao longo dos últimos anos o Caminho de Santiago de Compostela mudou muito. Não só para os que o fazem, mas também para os que trabalham nele, incluindo aí a Igreja, poder público (local e provincial), empresariado e os que veem nele a oportunidade de ganhar dinheiro e muito – caso dele, sim, ele mesmo, o próprio, Paulo Coelho. A começar pela rota, que a cada dia muda, com o surgimento de um novo negócio ou interesse, do empresário ou mesmo do poder público – como, aliás, me confidenciou um dono de restaurante em Carrión de Los Condes. Nessa que é uma das últimas cidades importantes da Província de Palencia, antes de o Caminho entrar em León, a rota original foi alterada para fazer com que os peregrinos passem por ruas onde funcionam negócios dos apadrinhados do poder...
Hoje, o Caminho de Santiago é importante para a própria sobrevivência da Espanha. Não somente como polo de difusão cultural, pelo rico patrimônio histórico, arquitetônico, arqueológico e o escambau, mas especialmente como atração turística.
Peregrinar o Caminho nos dias atuais, além das muitas motivações que o próprio peregrino enumera ao justificar sua presença na rota, virou turismo – e turismo barato, para a família inteira, de um dia, uma semana, ou uma quinzena, fácil de fazer, principalmente em meio à crise que se abateu nas principais economias do mundo, notadamente na Europa.
Peregrino virou turista! Ou melhor: turista virou peregrino!
Ou seja, estabeleceu-se a maior confusão na terceira maior rota de caminhantes do mundo – depois da Palestina, a primeira, e do Vaticano, os chamados romeiros.
A questão, como demonstra o episódio dos peregrinos que mandaram as mochilas pelo taxista, já alcança a questão ética, e o turista não se faz de rogado (não no caso, cujos protagonistas preferiram o hotel...) em utilizar a estrutura mantida para atender o verdadeiro peregrino.
Ou isso é uma bobagem? Talvez seja, coisa de purista – e nesses tempos bicudos de crise, há de ser pragmático.
Afinal, turismo movimenta o comércio, o serviço, faz a riqueza circular!
O próprio ayjuntamiento, o equivalente à prefeitura, não se preocupa em dar uma orientação clara no caso do atendimento prestado ao peregrino no albergue municipal – que geralmente é bem equipado, recebe recursos do governo da Província e mesmo assim ainda cobra. Enquanto um municipal cobra 4 euros, por exemplo, caso do albergue municipal Cluny, de Sahagún, um particular pode cobrar 10 euros, caso do El Pajar, de Agés. Além de tudo, a solidariedade faz parte do Caminho, e mesmo que o hospitaleiro, ainda que de um albergue municipal, de associação ou da igreja, perceba que está diante de uma fraude, será improvável que não aceite o turista... digo, peregrino. Ainda mais se estiver portando uma credencial. E tem também aquela bula papal...
A situação vai recrudescer nestas férias de Verão, a primeira depois da crise, e que terá seu pico nos meses de julho e agosto. Por enquanto, os albergues estão vazios, ou com muito espaço vago.
Domingo passado, 21 de junho, em Sahagún, por exemplo, das 64 camas disponíveis, somente 10 estavam ocupadas. Apesar disso, enquanto degustava um menu peregrino, com direito a coelho no segundo prato!, chegaram uns 10 peregrinos (ou seriam turistas?, não importa!), que movimentaram o restaurante. Eles haviam caminhado cerca de 15 km e estavam sedentos e famintos. Falei com alguns deles e, para provocar, perguntei se eram turistas. O líder não se ofendeu e corrigiu:
– Somos peregrinos de final de semana! – inovou.
Pois é, esse é o espírito. Se fazem o Caminho, são peregrinos. No caso, o grupo se reúne uma vez por mês, num domingo, e fazem um trecho. Assim, pretendem um dia chegar a Santiago de Compostela. Mas, pela condição, dormem de sábado para domingo num hotel e quando terminam a etapa se confraternizam e retornam numa van de apoio aos seus lares.
O que deve ser considerado, finalmente, é que essas adequações do Caminho de Santiago são sinais do tempo. Conversando com empresários do setor de serviços sobre o assunto, de modo geral, eles estão tranquilos. No fundo sabem que há mercado para as várias faixas de renda e, no caso de uma classe ser incrementada, naturalmente a outra terá benefícios.
César, de Calzadilla de la Cueza, está otimista com as perspectivas deste Verão. O pequeno povoado está estrategicamente localizado a 17,2 quilômetros de Carrión de Los Condes, após uma planície fatigante! Se quiser evitá-lo, o melhor é que durma em Carrión e o atravesse em direção a Lédigos (6,2 quilômetros após) ou Terradillos de Templarios (mais 3,3 quilômetros).
Agora, se você vem de Frómista, parar em Carrión, depois de 19,2 quilômetros é pouco; e inevitavelmente você terá que dormir em Calzadilla de la Cueza. Lá, a única opção é o empreendedor César. Ou você vai para o hostal dele, o Camino Real, na faixa dos 20 euros em quarto individual, ou fica no albergue, também dele, a 6 euros – e terá como hospitaleiro o baiano Sidney, que veio para estudar na Espanha e foi ficando, ficando, ficando. Diz que nunca mais voltará ao Brasil...
Negócios do Caminho...

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Missionários do Caminho...


Pepe e Jésus, do Refúgio de Castrojeriz: a serviço de Santiago!

Inspirado pela missão do hospitaleiro, após a experiência fantástica em Castrojeriz, escrevi em Frómista um texto em homenagem a este personagem fundamental do Caminho de Santiago. Foi ao final do 14º dia de peregrinação pelo Caminho Francês, desde Castrojeriz (25,9 quilômetros), que completei nesta data, há 10 anos...
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

SOBRE OS HOSPITALEIROS

Sem considerar a infraestrutura do albergue, que é extremamente variável, especialmente se é mantido pela igreja, ou por alguma associação de amigos de peregrinos, comumente mediante parceria com o poder público, ou particular, uma figura fundamental no funcionamento do albergue é o hospitaleiro.
É ele, ou eles, dependendo do tamanho do albergue – enquanto o de Roncesvalles adota uma equipe de quatro por período o de Tardajos tem apenas um 24 horas! –, que marca o ritmo da, digamos assim, hospitalidade do local. Desde a recepção aos peregrinos, com a explicação das regras, especialmente para controlar os abusados, o carimbo na credencial, e o atendimento a qualquer necessidade.
E quando se diz qualquer necessidade é qualquer mesmo, pois será a ele que sempre o peregrino irá se dirigir.
Por isso não é fácil ser hospitaleiro. Para facilitar – e ser um facilitador faz parte da hospitalidade –, não basta que fale apenas o castelhano – embora a grande maioria dos peregrinos seja espanhol.
Circulam pelo Caminho pessoas de diferentes nacionalidades, o que exige do hospitaleiro conhecimentos básicos de outras línguas, principalmente, francês, inglês, alemão, português – e não devido a brasileiros, cujo trânsito é incipiente –, mas dos irmãos de Portugal.
Por isso, entre as equipes de hospitaleiros que se revezam, no caso de serem voluntários (sim, porque no caso de serem empregados, serão sempre os mesmos...), há homens e mulheres de várias nacionalidades.
Mas, se além da língua pátria, arranha outra, ponto para o hospitaleiro! Será mais solicitado e terá a oportunidade de mais facilitar. Somando um ponto aqui, descontando outro ali, é que, naturalmente, vai se formando um ranking entre os hospitaleiros do Caminho. Claro que neste momento, percorrido um terço do Caminho Francês, pode parecer prematuro arriscar um 10, por exemplo, numa classificação de 0 a 10 – faltando, como se deduz, dois terços do trajeto.
Mas Jesus, sim Jesus – o segundo que já encontrei no Caminho – está muito perto da nota máxima. Ele é hospitaleiro no albergue mantido pela Confradia de Santo Domingo de la Calzada, em Santo Domingo de la Calzada, onde fiquei de 14 para 15 de junho, mediante a doação de 3 euros. Sempre bem disposto, me atendeu e acompanhei o atendimento a outros peregrinos com muita dedicação, dando quase sempre retorno às solicitações, sugerindo dicas e procurando colaborar. Foi ele quem me recepcionou e quem se despediu de mim, às 6h30 da manhã do dia seguinte, ainda com cara de sono... Os outros da equipe também foram gentis, mas Jesus superou.
Claro que com a super infraestrutura existente no albergue – o que indica que é bem provável que seja funcionário... – fica tudo mais fácil. Talvez seja o único albergue dotado inclusive de elevador, com acesso para dois pisos. Tudo é novo, os estofados são de couro, o sistema hidráulico inteligente, muito limpo... Sua recente reforma foi inaugurada no início do ano e contou inclusive com a presença do presidente da Província La Rioja.
Outros que estão com muitos pontos no meu ranking parcial são as equipes que me atenderam nos albergues de Pamplona e em Roncesvalles. Atenciosos, objetivos, prestativos... mas não um Jesus!
Na lanterna do ranking, pelo menos até agora, está o hospitaleiro do albergue de Logroño. Comigo, de cara, foi duro quando pedi para substituir o número ímpar, que indica a cama de cima do beliche, por um par. “Peregrino não pede”, avisou. De cara, descontei alguns pontos. Como não protestei, minutos depois, talvez arrependido, me deu o número par.
Ficou com minha credencial. Avisou que só iria devolver no dia seguinte, após às 6h30! Achei, como todos acharam, esquisito. A credencial é do peregrino, não tem essa de retê-la. Carimba, anota o que tiver que anotar no livro de registro e devolve. Além disso, e seu eu quiser sair antes das 6h30? – o que muitos fazem para evitar o sol forte do dia...
Assim, em meio a regras arbitrárias, talvez nem culpa do hospitaleiro, mas da forma como ele as impõe – talvez culpa sim, como aceita tais regras?!?!?!? –, no dia seguinte pela manhã aconteceu a maior confusão exatamente por causa de um catalão (sempre eles...) que queria sua credencial para sair mais cedo. Houve troca de insultos (“ditadura, ditadura!”, dizia o catalão) e o clima quase esquentou. No final das contas, o catalão ficou de castigo e foi o último a receber sua credencial de volta...
Levanto minha própria suspeição, contudo, para falar de alguns hospitaleiros. Afinal, há algumas pessoas – e já comentei isso antes – que é só falar que é do Brasil que se derretem. Foi o caso do hospitaleiro voluntário Jorge, de Tardajos.
O albergue é mantido por uma associação de amigos do Caminho, com sede em Madri. Adotou parceria com a Prefeitura local e instalou o albergue numa antiga casa de professores.
Como em Tardajos o único estabelecimento comercial próximo só abre às 17 horas, o que me impediu de fazer compras, estava eu no mesão em frente ao albergue, comendo frutas e o que restou do bocadilho da peregrinação, quando fui observado pelo Jorge. Bem-humorado foi até sua sala e me trouxe uma garrafa de vinho e uma gasosa, sugerindo a mistura para acompanhar o bocadilho...
Sentou-se comigo e contou uma situação em que estava no Caminho, meio desolado, quando um religioso brasileiro se aproximou e disse palavras que levantaram seu astral. Um momento que mudou seu dia e nunca mais esqueceu. Ajudar um brasileiro, pois, no caso eu, foi uma forma de retribuir. Só por ser brasileiro! Tomei quase tudo o que ele me deu – e, depois, quando abriu o comércio, comprei uma garrafa de vinho e o presenteei.
Ah! E o que falar do terceiro Jesus do Caminho e seu amigo Pepe. Nesse caso, eu sou suspeitíssimo. No dia 18, os dois estavam como hospitaleiros voluntários do Refúgio de Castrojeriz, mantido pela Asociación de Amigos de los Refugios del Camino de Santiago.
Fui lá para conhecer o albergue onde o santista José Roberto Lisbôa Júnior, o Juca, é hospitaleiro diplomado – e em julho cumprirá sua escala anual. Ou seja, já estava super indicado!
A mordomia foi total. Primeiro, Jesús (sim, com acento) me levou para conhecer sala por sala do albergue e explicar o seu funcionamento. Ao mostrar o espaço dos hospitaleiros, fez questão de mostrar onde Juca dorme, onde Juca se senta – e até a janela onde Juca se pendura para fumar, após a ceia e o café...
Depois, ele recepcionou jovens da comunidade, para dar aulas de reforço em Matemática, Inglês e Francês, e aproveitei para conhecer um pouco a cidade.
Voltei por volta das 21h30 – o albergue fecha as portas às 22 horas – e cumprimentei Jesús e Pepe e fui me preparar para dormir. O dia havia sido duro, já havia feito minha refeição principal do dia, por volta das 15 horas, no La Taberna, e ia dormir daquele jeito...
Ia, pois já estava deitado quando Jesús veio me buscar: “Vamos, Luiz, vamos cear...”. O quê?!?!?!
Subimos ao refeitório e lá já estava Pepe, que havia preparado uma salada caprichada, com aspargos, azeitonas, atum, tomate, alface, que foi acompanhada de queijo, tortilha etc. e, claro, vinho, com iogurte de sobremesa. Pois é, comi como um hospitaleiro! Fiz questão de lavar os pratos...

terça-feira, 18 de junho de 2019

Amor ao Brasil


Toño me prepara um bocadilho: o melhor do Caminho de Santiago

Você não vai acreditar: os donos do bar La Taberna, em Castrojeriz, têm a bandeira do Brasil na fachada do estabelecimento! Lá permaneci algum tempo, ao final do 13º dia de peregrinação pelo Caminho Francês, desde Tardajos (32 quilômetros), que completei nesta data, há 10 anos...
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

EMBAIXADA DO BRASIL EM CASTROJERIZ

O casal José Antonio, ou simplesmente Toño, e Maria de Jesus, é fanático. Eles conhecem o Brasil mais do que muitos brasileiros. Já visitaram o país várias vezes e pretendem voltar qualquer hora dessas...
No Sul, estiveram em Porto Alegre, cidades da Serra Gaúcha, como Gramado e Canela (“uma avenida de hortências...”, lembra Maria de Jesus), Foz de Iguaçu, conheceram Salvador (contam que estão até hoje esperam uma caipirinha, zombando da lerdeza do baiano...), Porto de Galinhas, Fortaleza, Natal...
Eles são donos do bar La Taberna, em Castrojeriz, e, você não vai acreditar: eles têm a bandeira do Brasil na fachada do estabelecimento! O La Taberna funciona na rua principal da medieval Castrojeriz e é passagem obrigatória de todos os peregrinos do Caminho de Santiago. Não tem como não ver; não tem como não ter vontade de entrar e conhecer o que tem lá dentro.
E mais surpresas. O casal coleciona cédulas de dinheiro brasileiro, de várias épocas, que decoram a parede do bar, atrás do balcão – inclusive uma de 100 reais, que Toño garante ser verdadeira.
Em outras paredes também têm bandeiras do Brasil, recortes de reportagens em publicações brasileiras que já focaram esse amor e fotos de brasileiros – o mais famoso, o hit do Caminho, ele mesmo, e quem mais?, Paulo Coelho! O escritor, aliás, já esteve lá mais de uma vez, “a última delas com uma italiana...”, confidenciou Maria de Jesus.
Uma história que sensibiliza o casal é o cachorro que tinham e faleceu há alguns anos. O pastor alemão Bernie tinha o espírito peregrino. Toño conta as inúmeras vezes em que o “perro” acompanhava os peregrinos até a cidade seguinte e depois retornava. Quando morreu foi tema de reportagem na imprensa espanhola, conforme atestam os recortes guardados. Até hoje o casal sente a falta do animal...
Foi no La Taberna que instalei o escritório peregrino da Titan Comunicação durante minha passagem em Castrojeriz. Afinal, é um dos poucos, senão o único lugar da cidade que possui wifi. Além disso, o menu peregrino oferece a opção de uma sopa de lentilhas com morcilla...
Tanta cordialidade, contratei o bocadilho de jamón e queijo para o dia seguinte. “Vais comer o melhor bocadilho da Espanha”, exagerava Toño, enquanto esparramava generosamente azeite sobre o sanduíche.
O La Taberna já se intitula a Embaixada do Brasil em Castrojeriz, mass Toño e Maria de Jesus querem o título oficial.
Eles têm o meu voto. Eles merecem!

La Taberna, em Castrojeriz: bandeira do Brasil na fachada

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Fé!


Celebração de Corpus Christi em Santo Domingo de la Calzada

Alguns trechos das ruas apertadas de Santo Domingo de la Calzada foram decorados com tapetes de pétalas de rosa, destacando os 900 anos de história da cidade... Final do nono dia de peregrinação pelo Caminho Francês, desde Nájera, que completei nesta data, há 10 anos...
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

SANTOS, IGREJAS, MILAGRES...

A presença católica marca as cidades do Caminho de Santiago com seus templos e edificações, alguns mais simples, outros majestosos – e culminará na Catedral de Santiago de Compostela. Dedicada ao apóstolo Santiago Maior, ela data de 1128 e tem estilo românico, com elementos posteriores, renascentistas e barrocos.
É a nova igreja em homenagem a Santiago, pois a primeira, do século IX, foi construída pelo rei Alfonso II, o Casto de Astúrias, e o bispo Teodomiro. Depois, no final do mesmo século, Alfonso III, o Grande, construiu uma basílica muito mais bela, destruída em 997 por Mohammed ben Abdelah Abuamie, o Almansor, vizir muçulmano de Al-Andalus.
Após Fernando III vencer os muçulmanos em 1236, a catedral fui reconstruída por Alfonso V. Uma parte da igreja foi consagrada em 1105 e o restante em 1211. Não que a presença católica seja uma novidade, muito pelo contrário, pois é o grande mote do Caminho e serve para consolidar a fé como forte elemento de motivação à grande maioria dos peregrinos.
Tal presença, pois – ao lado das belas paisagens, povo alegre e peregrinos bem dispostos – é a grande característica do Caminho, pelo menos até agora, neste domingo 14, dia de Corpus Christi, ao chegar a Santo Domingo de la Calzada, Província de La Rioja, e completar minha nona etapa, desde que sai sábado, 6 de junho, de Saint Jean Pied de Port, na França – acumulando 209,1 quilômetros a pé...
No domingo passado, ao chegar a Zubiri (completando a segunda etapa, vindo de Roncevalles), fui surpreendido com uma procissão que anunciava a semana de Corpus Christi na pequena comunidade navarra. A saída foi da praça da cidade, tendo à frente meninas vestidas de branco angelical, jogando pétalas de rosas, seguidas pelo padre e fiéis.
Já em Santo Domingo de la Calzada, em alguns trechos das ruas apertadas da cidade foram confeccionados tapetes de pétalas de rosa, entre outros elementos, destacando os 900 anos de história da cidade – de 1109 a 2009 – e já projetando, em banners distribuídos em pontos estratégicos, as comemorações do ano jubilar em 2010. Ou seja, quando o dia do apóstolo Tiago Maior, 25 de junho, cai no domingo, e a Igreja Católica espera levar algo em torno de 6 milhões de fiéis à Santiago de Compostela – muitos deles peregrinos! Às 12 horas teve início a missa festiva com a catedral lotada, mas nenhum fiel deixou de ver a celebração, fosse diretamente, ou por meio de telas de LCD espalhadas pelo templo. O edifício é exemplo de transição entre o românico e o gótico e teve sua condição de catedral celebrada em 1232, quando a cidade foi nomeada sede episcopal.
A igreja românica começou a ser construída em 1158 e atualmente conserva grande parte da antiga planta. No século XVI, parte do cruzeiro sofreu importante reforma com a ampliação do lado esquerdo para abrigar o sepulcro de Santo Domingo.
O sepulcro foi desenhado por Vigarny e realizado em 1513 por Juan de Rasines, com vários estilos: românico, gótico e pós-gótico. A igreja está organizada como uma típica igreja de peregrinação (como a maioria dos modelos ao longo do Caminho), com várias capelas e a existência de passagem próxima ao altar, o que permite a circulação.
Entre outros detalhes, destaca um nicho em lembrança ao peregrino enforcado injustamente e mantêm vivos numa gaiola um galo e uma galinha para celebrar a tradição e o milagre da “ressuscitação” para manifestar a inocência do peregrino.
Conta-se que a filha do dono da hospedaria do pueblo enamorou-se de um peregrino alemão, que estava acompanhado dos pais. Porém, como ele a desprezou, a jovem mentiu ao corregedor, acusando-o de furtar um cálice de prata. O peregrino foi condenado e enforcado (mas, Santiago o teria suspenso para não morrer sufocado). Ao ver o filho, os pais constataram que ele estava vivo, o que se devia à pronta ajuda do famoso hospitaleiro do lugar, Domingo, que cuidava de peregrinos. Os pais foram então ao corregedor contar a novidade e a autoridade, que estava numa mesa saboreando penosas assadas, zombou, dizendo que o peregrino estava tão vivo quanto elas. Não é que, embora assadas, as galinhas voltaram à vida!!!
Pois é esse milagre, ou mera lenda, que a cidade propaga com seriedade e o utiliza para atrair fiéis, turistas e peregrinos. A marca do santo com a galinha e o galo está no artesanato, na divulgação oficial etc. Além disso, é muito curioso ouvir o galo cantar dentro da igreja, especialmente durante as missas.
No domingo, logo após a celebração de Corpus Christi, houve uma concorrida procissão, tendo à frente crianças, meninos e meninas, senhores e senhores da sociedade calceatense e o pároco, que num determinado ponto da rua, sobre um dos tapetes, fez uma homilia.
Além de seus 900 anos de história, com riquíssimo patrimônio arquitetônico preservado e ainda a preservar, Santo Domingo de la Calzada explora com toda fé possível o santo de seu nome.
Nesse caldeirão de religiosidade católica e valioso patrimônio arquitetônico, lamenta-se o reduzido vestígio dos 800 anos de dominação árabe na Península Ibérica, ainda mais quando se sabe que a maioria das igrejas e catedrais de hoje teria sido erguida sobre mesquitas destruídas...

terça-feira, 11 de junho de 2019

Encontro fantástico!


Jesus, o peregrino, e o cão Xisto: barrados no albergue

Helena, 84 anos, Jesus... Sim, Jesus! No sexto dia de peregrinação pelo Caminho Francês, de Estella a Los Arcos, que completei nesta data, há 10 anos, fui surpreendido com encontros inusitados...
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

MEU ENCONTRO COM JESUS

Na quinta-feira, 11 de junho, deixei a “Fonda San Andrés”, em Estella, revigorado, com um banho de banheira, um sono sem sinfonia de roncos e toda a privacidade que um quarto exclusivo pode proporcionar, ainda que tenha compartilhado o banheiro. Mas, nas vezes em que fui utilizá-lo esteve sempre à disposição. Até na hora da banheira os eventuais hóspedes do andar também não me perturbaram. Vinte euros bem empregados. Acho que com 60 mangos, em Santos, garantiria reserva numa pensão fuleira do José Menino... Mas sempre haverá gente esperta para ponderar que a Europa é cara, é impossível fazer turismo na Espanha, Portugal etc. Como não estou fazendo exatamente turismo, procuro me apropriar da farta hospitalidade e da rica gastronomia. E aqui, pelo menos no Caminho, há opções.
Como estava no hotel resolvi não exagerar no menu de final de dia, o que aumentaria mais uns 12 euros – diferente da noite anterior em Puente La Reina, que, apesar do albergue classe “a” a 10 euros, inclui mais 10 do menu, com buffet de saladas, dois pratos quentes, no primeiro escolhi um bacalhau com molho de ervas e batatas e no segundo me servi de um espaguete com frutos do mar, matando a vontade da sobremesa com sorvete de creme e chocolate – no qual misturei vinho. Aliás, nem consegui tomar toda a garrafa Navarra à minha disposição, ganhando mais um amigo, o peregrino da mesa ao lado, quando o presenteei com a bebida. “Muy amable”, me agradeceu.
Em Estella também tive sorte. Estava à procura de algum lugar para comer quando encontrei duas peregrinas que na cidade ficariam na casa de parentes. Estavam em frente a uma carniceria. Pedi sugestão de restaurante e uma delas chamou a parente que me indicou um local onde serviam combinados. Era do outro lado da ponte. Agradeci e com aquele passinho-de-peregrino-depois-de-um-dia-de-peregrinação cheguei ao lugar.
Primeiro uma cerveja (dá muita sede peregrinar...). E entre as opções, escolhi a que levava um fruto do mar que desconhecia, sepia. Tudo uma delícia. Junto com uma Coca. E basta pedir Coca que a bebida é servida no copão com gelo e limão. Este é o padrão. Pois é, bem dormido, peguei o Caminho em direção a Los Arcos e a 2,1 quilômetros, em Ayegui, após tomar um gole de vinho da Fonte do Vinho, um belo investimento de marketing da vinícola Irache, encontrei ele em frente ao Monastério de Irache, considerado um dos monastérios mais famosos da Província de Navarra. Consta que no ano 859 já existia uma comunidade beneditina no lugar, até que o rei de Nájera o dotou em 1054 de um hospital de peregrinos. No local funcionou, no século XVII, a primeira universidade da Navarra. Informa ainda o guia do El País/Aguilar que o edifício tem detalhes medievais, renascentistas e barrocos e sua grande torre, inspirada nas de San Lorenzo de El Escorial, de Madri, é de estilo herreriano e se destaca num conjunto de três claustros e uma igreja do século XII.
Ao vê-lo, perguntei seu nome e me disse chamar Jesus. Natural de Bilbao, iniciou sua segunda peregrinação em 10 de maio, de Barcelona, acompanhado de um amigo e o cachorro do amigo, com destino a Santiago de Compostela. Logo no início do caminho encontrou um cachorro perdido, que batizou Xisto. E vinham os quatro até que no meio do caminho se desentendeu com o amigo. Agora, peregrina com o cachorro, mas tem esperança de encontrar os dois em Finisterre. Acredita que já andou mais de 900 quilômetros. Na porta do monastério esperavam que os hospitaleiros arrumassem o local, após a saída dos peregrinos. Queriam comer alguma coisa e descansar... Depois reencontrei a dupla em Los Arcos e Jesus me contou que não admitiram o cachorro. Só se fosse de caça, teria justificado o hospitaleiro. Ele foi dizer a verdade, que era um “perro” perdido, e foram barrados.
Outro encontro curioso neste dia foi com a norte-americana Helena. Caminhava bem, mas muito devagar no trecho final dessa etapa – cerca de 12,3 quilômetros, entre Villamayor de Monjardín e Los Arcos –, carregando uma mochila e uma garrafa de água. Me disse ter 84 anos e que havia iniciado o Caminho em Roncesvalles, curiosamente, também em maio. Viúva, contou que nasceu na Califórnia, na região dos vinhos, mas por algum motivo não conseguiu lembrar exatamente a cidade... Por enquanto, acho que é a pessoa com mais idade que cruzei. Que disposição. Após falarmos, voltei ao Caminho e a olhei para trás. Estava detida abrindo sua garrafa de água. O papo deu sede... No final da tarde a reencontrei em Los Arcos. Claro que chegou! Procurava um lugar para comer um menu peregrino!

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Saudades do Brasil


Ermida de Santa María de Eunate: legado dos Templários...

As quarta e quinta etapas de minha peregrinação pelo Caminho Francês, há 10 anos, corresponderam ao trecho de Pamplona até Estella, com cerca de 45 km – friso “cerca de” pois essas marcas não têm e possivelmente nunca terão um consenso nos diferentes guias e sites sobre o Caminho de Santiago... Enfim, ao chegar a Estella refleti sobre os dois dias anteriores, quando experimentei uma rota tangencial do Caminho de Santiago para alcançar o Caminho Aragonês e visitar a ermida de Santa María de Eunate: fantástica!!!
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

MINHA TERRA TEM PALMEIRAS

Na quarta-feira, 10 de junho, completei a minha quinta etapa do Caminho, no qual em algum momento ultrapassei os primeiros 100 quilômetros – só para lembrar, serão mais de 800 quilômetros até a Catedral de Santiago de Compostela...
Afinal, a primeira etapa, de Saint Jean Pied de Port, na França, até Roncesvalles, na Espanha, tem 25,7 km. A segunda, de Roncesvalles até Zubiri, 21,5 km. A terceira, de Zubiri até Pamplona, 20,4 km. A quarta, de Pamplona até Puente la Reina, 24 km. E a quinta, de Puente la Reina até Estella, 22 km, totalizando 113,6 km. Mais teve uns quilômetros a mais, que vou detalhar...
Se quiser ser um pouco mais exato e tirar esses 13,6 km da marca, creio que os 100 quilômetros foram completados em algum momento em que pisava em resquícios da calçada romana, entre Cirauqui e Lorca.
A calçada, possível ver em vários trechos, é uma das atrações históricas de todo o Caminho e junto com as pontes românicas e medievais, com suas estruturas arcadas, fazem uma composição muito bonita com a natureza.
Pois é, merecem destaque os aspectos arquitetônicos e naturais do Caminho, embora na postagem anterior foi enfatizado que o melhor do Caminho se encontra nos peregrinos, gente de toda parte do planeta, e no povo, francês e espanhol, dos “pueblos”, que vive diuturnamente o fenômeno da peregrinação. Não se trata de uma contradição, muito menos fazer uma mea culpa, mas sim deixar claro que tantas são as atrações do Caminho para quem se dispõe a fazê-lo, que vale a pena inclui-lo no roteiro de viagem de algum ano – ainda que seja por alguns dias.
Quem tem tempo reserva 30 dias, ou mais, para percorrê-lo na sua forma tradicional, de Saint Jean Pied de Port, no caso do Caminho Francês, ou de Somport, no caso do Aragonês, até Santiago de Compostela. Quem tem mais dias, começa de outros pontos da França. Ouvi casos de pessoas que vieram de Jerusalém, outras da Holanda, sempre a pé.
Mas, quem não tem tempo, e conheci muitos com essa limitação, fazem um ou mais trechos, 10 ou 30 quilômetros, apenas para sentir o espírito do Caminho, conversar com os peregrinos, o povo, ver os monumentos, refletir, se aventurar, fazer amigos etc. No ano seguinte, faz mais um pedaço. E aí continua se divertindo, aprendendo, se machucando...
E como dói...
Mas como vim de longe, não desisto fácil... Depois das duas primeiras etapas, completei a terceira, de Zubiri a Pamplona, com alguma dificuldade... Em termos, pois ao chegar e atravessar a ponte elevadiça das muralhas restauradas de Pamplona fui de tênis percorrer a cidade, até a Plaza de Toros, e também as famosas ruas que em julho sediarão a tradicional Festa de São Firmino, quando os touros são soltos e sai da frente... No centro da cidade tem uma escultura sobre a festa...
Não é a minha combalida coluna que dói, mas os joelhos, de tanta subida e, principalmente, descida. Acho que teve gente que parou aqui e desistiu... O José Avelino, aquele brasileiro de Ribeirão Preto, não vi mais... De repente, em alguma etapa volte a encontrá-lo. Mas da última vez que falei com ele, em Pamplona (e olha que iniciou em Roncesvalles e não fez o trecho mais difícil, saindo de Saint Jean!) estava desolado.
Eu mesmo cheguei a arquitetar uma paradinha. Ou seja, em vez de fazer a quarta etapa completa, de Pamplona a Puente la Reina, iria parar em Cizur Menor, a 5,1 quilômetros, um passeio, que tem uma boa estrutura, tiraria o dia para descansar, ou mesmo voltar a Pamplona e curtir mais a cidade. Fui dormir na dúvida. Seguir e me arriscar ou parar logo mais e recarregar energias? É aquele negócio que só você decide, não dá para pedir ajudar a outro peregrino, às cartas, aos universitários, como naquele programa de televisão... Afinal, quem deve saber do seu limite é você, e mais ninguém!
(PS.: Tremenda bobagem. Agora entendo que nem mesmo você, muitos menos os outros sabem o seu limite, eis que, absolutamente imponderável!)
O que sei é que no dia seguinte a ideia de jerico havia desaparecido. Acordei recuperado e, em vez dos 5,1 km negociados, fiz os 24 km (na verdade um pouco mais, vou detalhar...) até Puente la Reina. Foi fácil? Claro que não. Mas o trajeto me reservou situações emocionantes.
Ao chegar em Muruzábal, faltando apenas 4,1 km para Puente la Reina, avistei o templo da igreja de San Esteban e na porta, faltando 15 minutos para fechar, conheci mais uma Maria. Atenciosa, começamos a conversar e como demonstrei interesse entramos e ela deu detalhes do templo, com partes bem diferenciadas. A primeira, gótica, do século XIV. A segunda, renascentista, do século XVII.
Entre tantos aspectos interessantes, está na Capela de São José os restos mortais do bispo de Calahorra, Don Juan Juaniz de Echalaz, nascido em Muruzábal, que conquistou o espaço pois ajudou a financiar uma ampliação da igreja...
Aí surgiu a reiteração (outras pessoas também me deram essa dica...) de que deveria conhecer a ermida de Santa María de Eunate, que está no Caminho Aragonês, exatamente no momento em que se encontra com o Francês para seguir até Santiago. Apontou o percurso, com sinalização precária e lá fui eu conhecer a famosa ermida. Para quem estava a ponto de parar para embromar um dia, dar uma esticada de mais uns 4 a 5 quilômetros parece coisa de louco...
Pois é, caminhei com disposição. Um pouco antes de chegar dei uma parada para tomar uma água e notei a aproximação de uma pessoa. Vestia camisa e calça na cor marrom, trazia um crucifixo no peito e puxava uma mala de rodinhas. Não pode ser peregrino, pensei. Mas já havia ouvido falar de peregrino que leva suas coisas em mala de rodinhas, em vez da mochila...
Ah!, sobre isso e sobre as pessoas que fazem um pedaço do Caminho, é cada vez mais normal peregrinar levando uma mochilinha básica, enquanto as roupas da noite, para o passeio para saborear a gastronomia e outras diversões da parada, vão de carro, por meio de serviços prestados por empresas, em conjunto com hotéis de classe.
Não era o caso. Tratava-se de Lázaro, um ermitanho, em espanhol, ou ermitão (não aquele de caverna...), ou seja, quem vive em ermida, orando, aprendendo a Bíblia, orando... Era o primeiro ermitão que estava conhecendo no dia. Primeiro, porque logo em seguida iria conhecer João, o ermitão de Santa María de Eunate.
Abordei Lázaro e caminhamos juntos. Me contou que Lázaro não era seu nome de batismo, mas o que escolheu quando fez seus votos e passou a se dedicar à Igreja Católica. Lázaro, aquele que Deus ressuscitou. Estava em visita ao ermitão de Eunate e ficaria lá uns dias.
A ermida é do século XII, tem forma octogonal e é cercada por um muro também octogonal. Ela teria sido construída pelos Templários, mas não há provas consistentes. Mas tem tudo a ver, pois é da época em que foi forte a influência dos Templários em toda a Península Ibérica. Ela foi recuperada, como a grande maioria dos templos e monumentos do Caminho – uma preocupação com o patrimônio histórico e cultural que deveria ser mais efetiva no Brasil.
Conheci a ermida enquanto Lázaro foi ao encontro de João, nome de batismo. Ao me despedir, conheci o segundo ermitão. Ao saber que eu era brasileiro – como faz a grande parte dos espanhóis que tenho conhecido nos últimos dias – ficou tão alegre que recitou versos de Gonçalves Dias e eu, claro, o acompanhei: “Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá. As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá...” Sem lembrar todas as estrofes acrescentei a última: “Não permita Deus que eu morra, sem que eu volte para lá!”
Lázaro não estava entendendo nada e João passou a explicar os significados dos versos.
Sobre o final, contei que, pelo que eu sabia, ao retornar ao Brasil o navio que trazia o desterrado Gonçalves Dias naufragou na costa.
Vai chorar?

sábado, 8 de junho de 2019

O que estou fazendo aqui?!?!?!


Em Pamplona: a síndrome do terceiro dia...

Hoje, há 10 anos, completei a terceira etapa de minha peregrinação pelo Caminho Francês, de Zubiri até Pamplona, algo em torno de 21,1 quilômetros. Foi um momento crucial, a síndrome do terceiro dia, quando me perguntava e me perguntava: “o que estou fazendo aqui?!?!?!”
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DOMINGOS E OS AMANTES DO BRASIL

No primeiro domingo no Caminho conheci Domingos, natural de Benin, na África – que, orgulhoso, diz ser a terra do vodú... –, e que reside em Versalhes. Entre as coisas que pude entender na sua língua enrolada, contou sobre famílias de seu país que foram morar na Bahia, e relacionou o vodú, candomblé e o escambau. Lembrar de Domingos me fez recordar muitas das pessoas, provavelmente inesquecíveis, que estou encontrando no Caminho. Antes mesmo de iniciar o Caminho coloquei em minha cabeça que, muito mais do que paisagens, monumentos, cultura, o Caminho são as pessoas, sejam peregrinos, sejam os que convivem com essa rotina de muitos séculos.
Sempre que posso, fotografo... Maria Camino me abrigou em Sain Jean Pied de Port – duas diárias, cada 25 euros, e mais 5 euros de um bocadilho que me salvou na primeira etapa... Ela mesma duas vezes peregrina até Santiago. O negócio deu tanto certo que possibilitou a compra de um pequeno sítio nas cercanias de Saint Jean, onde planta verduras e frutas – a banana que me serviu, contudo, era das Ilhas Canárias.
Domingos encontrei na segunda etapa, na saída de Roncesvalles. Ele já vinha do trecho francês, não lembro exatamente, mas após Le Puy, e tinha um pique muito forte. Acabamos tomando café da manhã juntos no primeiro bar do trajeto e trocamos ideias, ele falando um francês, misturado com inglês e espanhol, e eu com meu portunhol e alguma coisa em inglês. Se não nos entendemos completamente, pelo menos não discutimos e o papo rolou fácil, animando a caminhada.
Sua motivação – aliás, como a da grande maioria com quem tenho falado e indagado – é a aventura, aliada à fé numa energia superior. Quase sempre esses peregrinos não revelam a religiosidade, mas todos, pelos menos os que confessaram, eram católicos. Acho que essa discrição é fruto do desgaste da Igreja, alvo de tantas denúncias, e de seu eventual afastamento do rebanho – mas que investe forte na peregrinação, pelo menos na Espanha. Para a qual, tanto quanto, a peregrinação é um negócio.
O português Pedro, que está fazendo o Caminho de bicicleta, peregrina por aventura e aproveita as férias. A bicicleta veio de trem, não é uma “Brastemp” e pesa 13,5 quilos. Na primeira etapa, com muitas subidas, em muitos trechos Pedro a empurrou. Contei que a bicicleta especial de um amigo, de carbono, que fará a travessia da Califórnia, nos Estados Unidos, pesa 3,5 quilos e ele delirou... Católico e louco por aventura, Pedro – que estava fazendo 47 anos naquele sábado (dei-lhe um pedaço do Lindt que comprei no freeshop) – levava um altímetro e, apesar de sua incredulidade na capacidade da máquina, confirmou o ponto mais alto dos Pirineus a 1.430 metros.
Outro figuraça acabou de passar agora por aqui – estou escrevendo sentado na cama (desta vez na parte de cima do beliche), cama número 33 (ainda falta muito para alcançar...), no novo e grande albergue municipal de Pamplona. Tem capacidade de 112 camas, mas é muito mais moderno que o de Roncesvalles – aquele casarão medieval a que já me referi. É um belga – que não me lembro o nome, mas que sempre que me vê diz “Olá, Luiz!!!!”. Sentamos na mesma mesa para comer um menu do peregrino em Roncesvalles. Acho que já falei da sopa de batatas, truta frita com batatas e iogurte de sobremesa (ele me deu o dele, o que me ajudou na manhã seguinte até tomar o café da manhã no Caminho com o Domingos...), regado a vinho de Navarra e água.
Ah! E de outros três brasileiros que ainda não tenho fotos. Um é o..., como é mesmo o nome dele? De Ribeirão Preto, vendeu a sociedade que tinha numa universidade, uma dezena de cursos, negocião, jogou tudo para o espaço para viver a vida. Diz que vai comprar uns boizinhos para colocar na fazenda dos pais... Tem 50 anos, mas os cabelos brancos aparentam mais.
Nos conhecemos na minha segunda etapa, mas a primeira dele, pois iniciou em Roncesvalles. Ele leva fraldas de pano para se enxugar, porque sua pele é sensível. Sei disso, pois em Pamplona colocamos as roupas molhadas na mesma máquina para secar. Ele pagou uma rodada da máquina, eu paguei um chocolate na máquina que tem na lavanderia. Ao final, vai se encontrar com a esposa em Madri... Era o que eu queria... com a minha, claro! Foi ele que, coincidentemente, providenciou o meu reencontro com meus óculos, que havia perdido quando fotografava a medieval “Puente de la Rabia”, em Zubiri. Uma peregrina achou, ele estava junto; ambos seguiram para Larrasoaña, mas no local que os óculos caíram no chão, junto ao rio, outro peregrino também tomou conhecimento. Ao refazer o percurso desde a hora em que havia trocado de óculos, pelo escuro, acabei localizando o peregrino, que ficou de conversar com a dupla, pois sabia exatamente quem era, e deixar com algum hospitaleiro em Larrasoaña.
Pois não é que no dia seguinte, com o compromisso de parar no albergue de Larrasoaña para pegar os óculos (naturalmente levei um reserva e estava tudo bem...), encontrei o... Ribeirão e a peregrina exatamente no ponto onde sairia do Caminho para ir até o albergue – que fica a uns 200 metros. Eles estavam escrevendo um bilhete para mim num mural do Caminho. Demais, né? Agradeci aos dois e fui até o albergue...
Mas haviam escrito que estava em cima de um móvel na entrada principal e a porta estava fechada. Bati e ninguém apareceu...
Vi um senhor numa casa em frente e fui ao seu encontro. Santiago – mais uma figura. Adora o Brasil e os brasileiros – Ih! Lembrei de outros dois espanhóis que encontrei e que também amam as coisas do Brasil. Aliás, aproveitando a sequência de parênteses, o que tem de espanhol que gosta do Brasil não é brincadeira. O Lisbôa já havia me advertido disso. Aí, eu aproveito!!! Nesta segunda-feira, no café da manhã, que acabei tomando em Larrasoaña, logo depois de conhecer Santiago – que mantém um Museu do Peregrino, com coisas que ganha de peregrinos. Ele tem um cantinho com bandeiras do Brasil, camisa do Ronaldo Fenômeno, foto do Ayrton Senna... O que me deu de presentes e cartões, brincadeira! Ele dizia, leva mais alguns, divulga lá no Brasil. Em minutos, me dava mais um montinho...
Mas... e o responsável pelo albergue? Afinal foi para isso que busquei informações com ele. “Daqui a pouco chega o pessoal da limpeza...”, me tentava tranquilizar. E depois de um papo com Santiago – que me indicou o café onde conheci outro espanhol amante do Brasil – fiquei alguns minutos na praça ajeitando minha mochila, quando vi uma senhora entrando no prédio. Não era da faxina, mas uma hospitaleira, que me entregou os óculos.
Resolvida a questão, aceitei a sugestão do Santiago e fui tomar o café da manhã no bar indicado. Esse outro espanhol foi muito engraçado. Tinha outros estrangeiros no bar, mas quando disse que era do Brasil, da terra do Santos Futebol Clube, do Rei do Futebol – e quem no mundo não conhece essa dupla!!!, coisa de deixar qualquer santista com muito orgulho, rolando de rir de outros times, que nem vou citar, que não tem história, não tem cultura, lamentável... O papo foi se prolongando até que versou sobre música e eu pedi para ele colocar uma brasileira. Não é que o bonachão abandonou o balcão, veio se sentar na mesa comigo, trazendo junto um grande livro com nomes de cantores e músicas e ia falando... Eram CDs que ele dizia ter. Várias coleções... sertanejo, Roberta Miranda, Chitãozinho & Chororó (claro que com sotaque navarro..., o que ficava mais engraçado), Caetano, Chico Buarque, Tom Jobim... Ele falava alto... e eu acrescentava... “É um especialista, é um especialista!!!”. Ele não parava. Percebi pelo vidro da janela que vinham uns quatro peregrinos e avisei. Ele não deu pelota (“eles esperam...”) e continuou recitando os grupos musicais e cantores brasileiros.
Um dos peregrinos que entrou, aproveitou o clima e brincou, sem saber de quem ele estava falando...
– São peregrinos?
Outro espanhol que revelou seu amor pelo Brasil foi o que me preparou um tremendo bocadilho em Zubiri, logo após reservar a vaga no refúgio e ter localizado o paradeiro dos óculos...
Ao saber que eu era brasileiro colocou um CD com músicas de um show ao vivo de Roberta Miranda. Ele estava encerrando o expediente, mas ficou tão alegre, que cantava a guarânia de Roberta, enquanto tomava uma mistura com Campari preparada pelo funcionário – que também arriscava um trago. Ao perguntar se ele tinha comprado ou ganho o CD ele resumiu: “Internet!”
E ainda me avisou: “Você precisa conhecer o Pepe... Ele sim, adora o Brasil”. Os outros dois brasileiros são um casal, Graciliano, de São Luis, do Maranhão, e a esposa. De 2003 até agora fez o Caminho seis vezes. As duas últimas com a esposa – juntos fazem o terceiro.
Eles estão andando desde Le Puy, na França. Ao chegar a Saint Jean Pied de Port – eu os conheci na sede da Associação – eles já tinham caminhado cerca de 700 quilômetros. Contam com entusiasmo que o lado francês é demais e diz que preciso fazê-lo. Aliás, não é a primeira pessoa que diz isso.
Quem sabe, um dia.