quarta-feira, 10 de junho de 2020

Adeus, Manoel! Ops... Adeus, Portugal!


Belos bosques e regatos no Caminho Português

Perdão

“(...) 36. Qualquer cristão que está verdadeiramente contrito tem remissão plena tanto da pena como da culpa, que são suas dívidas, mesmo sem uma carta de indulgência.
37. Qualquer cristão verdadeiro, vivo ou morto, participa de todos os benefícios de Cristo e da Igreja, que são dons de Deus, mesmo sem carta de indulgência.
38. Contudo, o perdão distribuído pelo Papa não deve ser desprezado, pois – como disse – é uma declaração da remissão divina. (...)”.
Trecho da “Disputação do Doutor Martinho Lutero sobre o Poder e Eficácia das Indulgências”, conhecida como as 95 Teses, marco da Reforma Protestante.

Saudade

Nesta data, há 10 anos, despedi-me de Portugal com uma palavra que nos é peculiar: saudade. Saí cedo de Rubiães rumo a Tui, na Espanha, para percorrer mais 19,5 quilômetros do Caminho Português a Santiago de Compostela. Garoava fino e tudo indicava que o tempo iria melhorar, como melhorou e o sol chegou até a brilhar... Atravessei a ponte romana sobre o rio Coura e me surpreendi com a sequência de réplicas de miliários, que deixam claro que este trecho do Caminho é a famosa Via Romana XIX, que ligava Braga a Astorga.
O trajeto é marcado por uma subida curta até o santuário de São Bento da Porta Aberta para em seguida despencar de 270 metros de altitude para o vale do rio Minho, que faz a divisa entre Portugal e Espanha. É sem dúvida um dos cenários mais bonitos do Caminho Português, com bosques verdejantes, pequenas cachoeiras, córregos – talvez ainda mais belo devido ao tempo chuvoso.
Após atravessar as aldeias de Fontoura e Paços e cruzar a ponte romano-medieval de A Pedreira sobre o arroio Fervença, o Caminho segue por mais seis quilômetros até alcançar Valença do Minho, a última cidade portuguesa. É considerada a cidade amuralhada mais interessante do Norte de Portugal e, junto ao rio Minho, é possível admirar as muralhas da antiga cidadela.
A passagem para Tui é feita pela ponte de ferro sobre o Minho. Como Valença, Tui foi uma cidade amuralhada e teve importância estratégica de defesa no período medieval, sendo também sede episcopal desde o século V. O acesso ao centro da cidade é feito por uma rua que conserva seu traçado medieval, com destaque para o edifício da Carcél Vieja, datado de 1584, uma antiga prisão civil e que hoje abriga aulas de interpretação do conjunto histórico de Tui. Não muito distante está a majestosa Catedral de Santa María, com arquitetura românico-gótica, e aparência de fortaleza, construída a partir de 1.120 no reinado de Alfonso IX.
Continuei caminhando e sem conseguir localizar o albergue de peregrinos acabei ficando no hostel Generosa. Depois de instalado, percorri a cidade e encontrei finalmente o albergue, onde conheci a hospitaleira e reencontrei peregrinos.

Ponte românica, da Via Romana XIX, sobre o rio Coura

Réplica de miliário da Via Romana XIX: milha XXXIV Maximino Daia

Pequenas cachoeiras emolduram o Caminho Português

Bosques molhados criam cenário ainda mais bonito

Peregrino solitário...

Ponte romano-medieval de A Pedreira

Muralha da cidadela de Valença

Antiga ponte internacional liga Portugal e Espanha

Ponte sobre o rio Minho, inaugurada em 1886

Tui, da ponte velha, que separa Portugal de Espanha

Tui, província de Pontevedra, Comunidade de Galícia

Rua de Tui conserva traçado medieval

Catedral de Santa María: arquitetura românico-gótica, aparência de fortaleza

Portal da Catedral de Santa María, do século XII

Altar da Catedral de Santa María

Santiago Matamouros na Catedral de Santa María

Hospitaleira e peregrinos na porta do albergue

Postado em 10.06.10, 16h51 >>>>
Adeus, Manoel! Ops... Adeus, Portugal!

Hoje, Dia de Portugal, ou Dia de Camões, feriado com jeitão de dia comum, mesmo porque parar de trabalhar em época de crise nem passa pela ideia do português. Ainda mais quando não se trata de data santificada, como Corpus Christi, por exemplo, quando aí sim Portugal para.
Sentindo no coração a energia dos aldeões e na pele a frente fria que chegou no início da semana, que baixou a temperatura e trouxe chuva, despedi-me de Portugal atravessando a ponte que une Valença do Minho a Tui, na Galícia, em minha peregrinação pelo Caminho Português, no trecho do Oporto até Santiago de Compostela.
Após tantas dúvidas levantadas antes de embarcar para o desafio – o que gerou um post e muitas sugestões dos amigos peregrinos portugueses Pedro Monteiro e Isabel Lage Duarte, leitura dos guias da Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago e de El País/Aguilar, observações de outros peregrinos, como José Roberto Lisbôa Júnior, o Juca, e dicas dos que torcem, como o Fernando Martins Braga, para que tudo dê certo –, venci os cerca de 120 km em solo português em cinco etapas.
Rememorando... Domingo 6 saí de Oporto, do local mais emblemático para iniciar a jornada, exatamente em frente à Sé. Fiz os 37,1 quilômetros até São Pedro de Rates, num trecho muito urbanizado e que, da mesma forma que traz consigo o perigo, favorece o momento... Que fique claro que não tenho dúvida de que o Caminho de Santiago é oportunidade de reflexão, aquele encontro com o “eu” interior, para apresentar questionamentos, tirar dúvidas, buscar soluções, renovar-se, reiterar-se ou mesmo mudar-se; enfim, há muitas facetas que se envolvem e submetem o peregrino que decide enfrentar o Caminho de Santiago.
No meu caso foi, antes, um reencontro comigo, considerando que no ano passado, em 2009, fiz a peregrinação do Caminho Francês, iniciando em Saint Jean Pied de Port, na França – friso Saint Jean Pied de Port (800 quilômetros de percurso) porque é diferente fazer o Caminho iniciando em Roncesvalles (abrindo mão da travessia dos Pirineus como primeira etapa), ou Pamplona, León, Astorga, ou Sarria, já próximo aos últimos 100 quilômetros, com o fito apenas de conquistar e exibir a Compostela.
O Caminho, creia ou não, tem começo, meio e fim. Ou ao menos o imaginário proporciona essa evolução ao se avaliar, e se fazer, os vários Caminhos que chegam a Santiago. Essa é a minha perspectiva, não muito diferente da de inúmeros peregrinos com quem já tive e continuo tendo a oportunidade de manter contato.
Há exceções. Caso de uma peregrina francesa que encontrei na segunda-feira 7, na minha segunda etapa, entre São Pedro de Rates e Barcelos. Disse-me que iniciou de um ponto da França, entre Le Puy e Saint Jean Pied de Port, ou seja, antes de chegar a Saint Jean já teria caminhado uns 400 quilômetros... Fez várias etapas do Caminho Francês, mas não foi até Santiago. Parou em Léon, ou por ali, onde pegou um trem até Pontevedra, já no Caminho Português, e começou a fazer a peregrinação inversa, ou seja, em direção a Fátima, seguindo as setas azuis... mas, confessou-me que não tinha a pretensão de chegar lá. Ao ser questionada sobre o destino, simplesmente me disse que não tinha objetivo de atingir uma determinada meta, queria apenas peregrinar...
Quero dizer, apesar de aparentes contradições – e estas, deixa estar, fazem parte de todos nós –, que cada qual faz o seu Caminho, escolhendo, claro, aquele que tem coração (como ensinou Dom Juan, em “A erva do Diabo”...), o que não destrói a mística de que determinados pontos dos diferentes Caminhos proporcionam um clima e uma transfusão de energia difíceis de explicar – mas facilmente perceptíveis àqueles que se dispõem a segui-los, o que se observa facilmente nas estatísticas sobre o fluxo de peregrinos.
Percorridos os 37,1 quilômetros da minha primeira etapa – e aí destaco que vou adotar as quilometragens que constam no guia El País/Aguilar, que não considero as mais corretas, mas, afinal, servem de parâmetro –, a segunda, entre Rates e Barcelos, com 15,5 quilômetros, me deu tempo para cuidar da primeira bolha, que me atingiu o pé direito. E aí, que me desculpe o dr. João Francisco Rodrigues de Abreu Faria, Kiko, que me indicou uma meia Nike de alta performance para corredores. Pode até dar certo para os atletas, mas o produto não passou no teste da peregrinação...
Culpa da bota. Ok, vou reclamar com a Timberland. Afinal, também tive bolhas usando a mesma bota em 2009. Culpa dos meus pés, talvez? Então, culpem-se papai Ormínio Toledo Ferraz e mamãe Maria Cecília Arruda Ferraz. Ou, coincidência ou não, como foi no pé direito e o dr. Claudino Guerra Zenaide disse que tenho problema no joelho direito, uma plica sinuvial, e que esse problema não tem cura, dá em 80% dos humanos, tanto que ele não faz mais cirurgia para corrigir, pois volta, e orienta seus pacientes a fazer alongamentos. Ele me explicou que isso se deve ao fato da nossa evolução, de passar a andar de quatro para dois pés... Culpa de Darwin! E não se fala mais nisso.
De Barcelos, minha terceira etapa foi até Ponte de Lima, totalizando 33 quilômetros; a quarta, de Ponte de Lima a Rubiães, mais 18,2 quilômetros; e a quinta, esta que me fez entrar na Espanha, de Rubiães a Tui, 19,5 quilômetros. Ou seja, as cinco etapas em solo português somaram exatos, ou não tão exatos assim, 123,3 quilômetros.
Aí, retomando o fio da meada... apenas para sublinhar que as duas últimas etapas, apesar da chuva, cruzando o solo úmido dos bosques do Minho, no Norte de Portugal, atingindo o ponto mais alto do Caminho Português, no Alto da Portela Grande de Labruja, foram ideais para proporcionar momentos mágicos – que, talvez, não os teria atingido caso minha peregrinação tivesse iniciado em Barcelos, por exemplo – sem aqueles 37,1 quilômetros iniciais e outros 15,5 quilômetros do segundo dia. Ou ainda como fez um experiente peregrino, que traz na mochila mais de seis peregrinações em vários Caminhos, que começou em Rubiães – exatamente para evitar o trecho considerado mais difícil do Caminho Português, a temida Labruja, ainda mais debaixo de chuva!
Sou mais peregrino que ele??? Não é sobre isso que estou falando... Mas, simplesmente, anotando, refletindo, exultando, com a oportunidade de ter tido uma experiência que levarei por toda a minha vida. Tive sorte, agradeço. Foi coincidência, também agradeço.
Você vai fazer o Caminho Francês? Comece em Saint Jean Pied de Port! O Português? Faça desde o Oporto e saia da Sé! (Quem sabe, inicie em Lisboa...) Ou faça o que achar melhor. “Depois você se acerta com o Apóstolo!” – aliás, esta frase é de um hospitaleiro, que ouvi ao final do terceiro trecho deste Caminho, no albergue de Ponte de Lima, proferida logo após recepcionar no albergue um casal de peregrinos que flagrou chegando de táxi...
Ah! O título deste texto foi uma homenagem aos muitos Manoéis do Brasil e aos mais autênticos, daqui da Terrinha, sempre tão atenciosos e gentis com os brasileiros ou, quem sabe, com os peregrinos, como tive a felicidade de sentir.
Buen Camino!
#pedrasdocaminho
#10yearchallenge

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