quarta-feira, 8 de junho de 2022

Meu reencontro com o Caminho Francês

Ponte junto ao Cruzeiro de San Blas, deixando Monreal

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

7ª etapa – Monreal a Puente la Reina (31,2 km)

Sexta-feira – 08/06/2012

Dormi ouvindo as badaladas do sino da Igreja da Natividade de Nossa Senhora de Monreal e exatamente às seis horas fui acordado pelo primeiro dos seis badalos; e me lembrei da alcadesa do pueblo. Levantei disposto naquela manhã de 8 de junho, ansioso em fazer a última etapa de minha peregrinação pelo Caminho Aragonês a Santiago de Compostela.

Pela janela conferi que não estava chovendo e confiei que o tempo abriria, como viria a acontecer, e poderia desfrutar da bela etapa, que desde Monreal atravessa inúmeros pueblos de Navarra e, pouco antes de chegar a Puente la Reina (em euskera, Gares), oferece ao peregrino a fantástica Ermita Santa Maria de Eunate – uma construção em formato octogonal, envolta em lendas e mistérios –, que, no meu caso, marcaria um reencontro, pois estive lá em 2009, quando peregrinei o Caminho Francês, desde Saint Jean Pied de Port. Naquela ocasião, curioso pelos segredos do Caminho, fazia a etapa de Pamplona a Puente la Reina, quando, em vez de seguir direto de Muruzábal a Puente la Reina – cerca de 4,1 quilômetros –, sai do Caminho Francês e peguei outra estrada, de 4 quilômetros, que me levaria à Eunate. Além de reencontrar Santa Maria de Eunate, aquele dia seria marcado, enfim, pelo reencontro com o meu primeiro Caminho a Santiago de Compostela.

Ao deixar Monreal uma placa sinaliza a extensão de 30,4 quilômetros até Puente la Reina. Um caminho que resgata o antigo traçado jacobeo e passa por Yárnoz, Otano, Ezperun, Guerendiáin, Tiebas, Campanas, Muruarte de Reta, Olcoz, Enériz, Santa Maria de Eunate e Obanos – pueblo que também recepciona os peregrinos que chegam pelo Caminho Francês e que, na verdade, é onde os dois importantes Caminhos de Santiago, os dois Caminhos que atravessam os Pirineus, o Francês e o Aragonês, se encontram... Hoje, esse marketing é aproveitado por Puente la Reina.

Não muito distante outra placa indica o Cruzeiro de San Bras, a 120 metros, de estilo gótico renascentista, e alerta que faltam os braços da cruz, que talvez sinalizasse o cruzamento do Caminho de Santiago com o Caminho de Labiano.

O primeiro pueblo do Valle de Elorz é Yárnoz, posicionado na ladeira Norte da Serra de Alaiz. Yárnoz é citado em documentos medievais do século XII e conserva a Igreja da Natividade, do século XIII, que sofreu grande reforma no século XVI, para suportar uma nova abóboda. Com retábulo barroco do século XVII, destaca a imagem da Virgem com o filho, românica, de princípio do século XIII. Ao lado, uma torre medieval é o único vestígio de um palácio construído no século XIV ou XV, cuja função, além de moradia, foi vigiar e defender. A torre tem uma planta quadrada e apresenta mudança de sillar (pedra polida), o que indica que sua construção foi feita em etapas. A ela estiveram vinculadas personagens importantes, como Lope de Yárnoz, escudeiro de honra do rei Carlos III, o Nobre, de Navarra, que morreu no começo do século XV a serviço do rei da Sicília.

A passagem por Otano se faz por uma porteira, na encosta da Serra da Alaiz. Em seguida, está Ezperun; e 5,1 km depois, Guerendiáin, onde sou recepcionado por um cachorro alegre e barulhento. Na saída do pueblo uma placa indica que Tiebas está a 3,8 km e Puente la Reina, a 21,2 km. Por trilhas que sobem e descem a encosta da Serra, avisto ao longe, à minha direita Pamplona, a capital da Comunidade Foral de Navarra.

A entrada em Tieblas é marcada pelas ruínas do castelo medieval, reconhecido como bem de interesse cultural, mas que há muito tempo espera restauração. A princípio minha ideia era fotografar as ruínas e seguir o Caminho, mas o encontro com um morador do pueblo me deteve no local. Ele insistiu para que conhecesse a bodega: “Vir até aqui e não conhecer a bodega, não é possível!”, disse o simpático senhor, que me apontou o acesso para a bodega subterrânea com abóboda de pedra.

O castelo foi construído por Teobaldo II, de Champaña, rei de Navarra (1253-1270), em meados do século XIII. Em estilo gótico francês, tem planta retangular, com dois pisos organizados em torno de um pátio central, e serviu de residência a vários monarcas navarros, como o próprio Teobaldo II, Enrique I e Carlos II. Foi também arquivo real, sede da tesouraria, prisão da Coroa e, em algumas ocasiões, lugar de execução.

O castelo foi destruído em 1378 durante a guerra com Castilla e esteve abandonado até meados do século XV, quando foi doado à nobre e poderosa família de los Beaumont, sendo reconstruído por Juan de Beaumont. Depois passou à Casa Ducal de Alba, em cujo poder permaneceu até o século XIX.

Ainda em Tiebas, entro no albergue, junto à Igreja de Santa Eufêmia, românica, para selar minha credencial. No bar, aproveito para tomar um café com leite e comer um bocadilho, reencontrando o grupo de peregrinos espanhóis que conheci em Arrés, o casal Fernando e Rosa, Jesus e Pedro. Eles saem primeiro e, antes que eu retome o Caminho, entra o casal Pache e Sara, também do histórico encontro de Arrés.

Sigo minha peregrinação e, vendo nuvens negras no céu, penso que o tempo mudará, mas isso não acontece. Após 3,8 km de caminhada, passo por Muruarte de Reta, e logo chego a Olcoz, cuja marca é a torre medieval quadrada. Diz a placa que a torre é do começo do século XVI e foi construída pela família Ozta. No século XVIII foi ocupada pelo Marquês de Fortegollano. Hoje, não possui telhado ou qualquer divisão interior, devido aos saques e ao incêndio provocado por Francisco Espoz y Mina, na Guerra da Independência, quando estava ocupada por tropas polonesas às ordens de Napoleão.

Peregrino alemão subindo a Otano

Em Obanos, sim!

Sigo meu Caminho Aragonês a Santiago de Compostela e apreciando, de longe, Añorbe, cruzo com a placa que indica a Ermita Santa Maria de Eunate a 5,2 km e o pueblo Puente la Reina a 10,1 km. Atravesso Enériz, que possui uma igreja do século XVIII e uma praça com um curioso monólito; estou muito perto da Ermita Santa Maria de Eunate.

Começa a passar um filme em minha cabeça e lembro a peregrinação pelo Caminho Francês, em 2009, quando fiz o desvio em Muruzábal, rumo ao Caminho Aragonês, indo ao encontro de uma das construções mais emblemáticas do Caminho de Santiago. Para saber detalhes dessa primeira vez, leia “Minha terra tem palmeiras...”, no primeiro volume da trilogia “Pedras do Caminho”.

Enfim, reencontro a Ermita Santa Maria de Eunate.

Eunate, em euskera, significa 100 portas, ou pode derivar de “bem nascido”. Cercada de mistérios, românica, do século XII, a origem da ermita não é muito clara, podendo ter sido construída pela Soberana Ordem dos Cavaleiros do Templo de Jerusalém, os cavaleiros templários – tal a sua semelhança com a Mesquita da Rocha de Jerusalém –, ou pela ordem hospitaleira de San Juan de Jerusalém, ou ainda pela Confraria de Santa Maria de Eunate..., com a finalidade de ser uma igreja, hospital de peregrinos, igreja funerária, poço de acesso às catacumbas romanas.

A originalidade da ermita se deve a sua estrutura octogonal, tanto na planta como no pórtico que a rodeia, com capitéis que destacam figuras humanas, seres fantásticos... É coberta por uma cúpula chanfrada de oito nervos em estilo muçulmano. Possui uma única porta de ingresso e no lado oriental uma cabeceira semicircular, no interior, e pentagonal, no exterior.

Quando cheguei estava fechada. Dirigi-me ao prédio vizinho, onde funciona um albergue de peregrinos, e o hospitaleiro, após selar minha credencial, a abriu especialmente para mim, deixando-me só no templo.

Ao sair de Eunate, cada vez mais me lembrava da primeira peregrinação. Após 2,4 km cheguei a Obanos e revi a placa que sinaliza o pueblo. Parei num bar para comprar água e ao retomar a caminhada cheguei à Plaza de Los Fueros, onde está a Igreja de São João Batista de Obanos, que neste ano comemora seu centenário... Olhando cada ponto da praça percebi, do outro lado de onde estava, a chegada de peregrinos... um, em seguida um casal, mais dois... realmente, a famosa solidão do Caminho Aragonês ficara para trás; havia me reencontrado com o Caminho Francês e assistia ao fabuloso movimento de peregrinos pela tradicional via.

A partir dali, com absoluta certeza, os dois Caminhos se tornavam um..., apesar de que, só após 3 km, já em Puente la Reina, em frente ao Albergue Jakue, antes de chegar ao pueblo, a estátua em homenagem ao peregrino, exibe a seguinte inscrição: “Y desde aqui todos los Caminos a Santiago se hacen uno solo”.

Puente la Reina é um pueblo atraente e exibe um dos ícones do Caminho de Santiago, a ponte românica sobre o Rio Arga, com sete arcos, 110 metros, construída no século XI para facilitar a passagem dos peregrinos que vinham da França e outros países da Europa. Seu nome presta homenagem a uma rainha que teria tido a iniciativa de construir a ponte: Muniadona Sánchez, esposa de Sancho III, o Mayor, ou a nora Estefanía de Foix, casada com García Sánchez III.

Outras joias arquitetônicas de Puente la Reina merecem ser visitadas, como a Igreja de Santiago, do final do século XII; a Igreja do Crucifixo, românica do século XII, ao lado do atual albergue e do antigo hospital de peregrinos, hoje Colégio dos Padres Reparadores; e o Convento dos Trinitários, do século XIII, ampliado no XVI e reformado no XVIII, localizado em frente à Igreja de Santiago. E ao longo da Calle Mayor existem inúmeras casas com portas medievais e renascentistas e fachadas barrocas. Uma coleção de casas em formato de palácio que fazem da Calle Mayor um cenário magnífico.

Na manhã do dia seguinte, peguei o ônibus até Pamplona e, em seguida, fui de trem para Santiago de Compostela.

Ruínas do Castelo de Tiebas
Ermita de Santa María de Eunate, um dos hits do Caminho Aragonês

Portal ao lado da Igreja São João Batista em Obanos sendo cruzado por peregrinos do Caminho Francês
Igreja do Crucifixo, século XII, em Puente la Reina

A famosa ponte que dá nome ao pueblo de Puente la Reina sobre o rio Arga

terça-feira, 7 de junho de 2022

Fui levado pelo vento

Início do sexto dia de peregrinação, avistando Rocaforte

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

6ª etapa – Sangüesa a Monreal (27 km)

Quinta-feira – 07/06/2012

Vinte e sete quilômetros, segundo o guia El País/Aguilar, ou 30 quilômetros, para o guia Rother, pouco me importou a extensão desta sexta etapa do meu Caminho Aragonês a Santiago de Compostela, entre Sangüesa e Monreal. Apesar da distância considerável, que exigiu cerca de sete horas de peregrinação, as características desta etapa – com belas paisagens, pueblos pequenos, aparentemente perdidos no tempo, e a extrema solidão... em sintonia com tudo o que se espera do Caminho de Santiago – as tornaram leve, doce, um autêntico passeio nas nuvens... Diria que fui levado pelo vento, o mesmo vento que impulsiona as hélices dos muitos parques eólicos que predominam nessa região da Comunidade Foral de Navarra.

Peregrinando a penúltima etapa de meu Caminho Aragonês, de Sangüesa a Monreal, embora com uma vontade impossível de continuar o Caminho, já sabia que deveria me contentar em finalizar a peregrinação deste ano em Puente la Reina, o que representava apenas mais um dia de caminhada, quando o Caminho Aragonês se integra ao Caminho Francês. Diante desse impasse comigo – aliás, um pensamento que me perseguiu durante todo o dia –, fiquei na dúvida em manifestar qualquer tipo de comemoração. Mas, claro, chegar são e salvo a Monreal foi motivo de festa!

Acordei cedo, talvez com o alarme do celular, ou quem sabe com as vozes em frente ao hostal onde descansei em Sangüesa. Abri a janela e vi apenas o peregrino Jesus, que estava no grupo com o casal Fernando e Rosa e Pedro, que conheci em Arrés..., atravessando a ponte sobre o Rio Aragão, em direção ao centro do pueblo, no sentido inverso ao caminho para Monreal... Ao final do dia viria a saber que, com dores no joelho, Jesus não teve condições de fazer esta etapa a pé... E na noite anterior, Xavi já havia abandonado a peregrinação.

Comparando os episódios a dois raios no mesmo lugar, redobrei minha cautela e me preparei para mais esta etapa como se fosse a primeira. Ou a última... Ainda no quarto, tomei o café da manhã com frutas, chá energético e o bocadilho que havia comprado no dia anterior. Disposto e confiante, iniciei o Caminho em direção a Rocaforte, ou Sangüesa la Vieja... onde Francisco, ao peregrinar a Santiago de Compostela, em 1214, fundou o primeiro convento franciscano da Espanha. Ele teria entrado na Espanha pelo Caminho Aragonês e, segundo a tradição, dormiu em Undués de Lerda e de lá seguiu até Sangüesa. Em 2014, quando se completam 800 anos da peregrinação de Francisco, é grande a expectativa no Caminho de Santiago.

A partir de Rocaforte já é possível avistar as hélices de um grande parque eólico da região, que produz a energia limpa através do vento – uma imagem que me acompanhará em vários outros pontos dessa etapa. Perto, uma placa sinaliza a fonte de São Francisco, que data do século XVIII, hoje área de lazer, equipada com churrasqueiras.

O Caminho começa a subir ao Alto de Aibar, entre campos de cereais, e segue num constante sobe e desce pelo Vale de Ibargoiti, que ocupa uma zona de transição entre as montanhas pirenáicas e a Navarra meridional, com vários bosques e pequenos pueblos, como Abínzano, Celigüeta, Equísoain, Idocin, Izco, Lecáun, Salinas, Sengáriz e Vesolla, formado por “gente acolhedora, acostumada pela passagem de viajantes e peregrinos”, como anuncia uma placa turística.

Pouco mais de 16 quilômetros desde Rocaforte e encontro Izco, com sua população de 50 habitantes..., e logo em seguida, Abínzano, com 20 habitantes..., que exibe uma igreja dedicada a São Pedro Apóstolo, de estilo barroco. Assim como os demais pequenos pueblos do Vale de Ibargoiti, Abínzano tem sua economia baseada na agricultura do trigo, da cevada, entre outros cereais.

Continuo a peregrinação deslumbrado com a paisagem... e após cerca de cinco quilômetros avisto a torre da Igreja de São Miguel, românica, do pueblo de Salinas de Ibargoiti, em cuja entrada existe uma bela ponte medieval – que, aliás, cheguei a pensar que estaria chegando a Monreal. Uma confusão que deixei registrada num vídeo que resume esta etapa, e que pode ser visto no Youtube, em www.youtube.com/watch?v=I0g5C1MtwyY

Dois quilômetros depois, após um pequeno bosque, aí sim, encontro a placa que indica Monreal – ou Elo, em euskera, o idioma basco –, e próximo à famosa ponte medieval.

Monreal está localizado a 18 km de Pamplona, a capital da Comunidade Foral de Navarra, e possui cerca de 500 habitantes. Documentos medievais do século XII já citam o pueblo de Monreal, ora como Mone Real, ou Mont Real, Monte Real, Monte Realle, Monte Regale, ou ainda Montis Reyalis; nome que teria sido dado pelo rei de Navarra, Garcia Ramirez, o Restaurador.

Entre outros registros históricos, sabe-se que abrigou importante colônia de judeus e teve o direito, por um tempo, de cunhar moeda própria. Teve um castelo que serviu de residência de caça dos reis de Navarra, cuja derrubada foi decidida pelos monarcas em 1521.

Hoje, seu monumento mais precioso é a Igreja da Natividade de Nossa Senhora de Monreal, dos séculos XVI a XVIII, que possui uma arquitetura diferenciada, conforme destaca folheto do Arcebispado de Pamplona e Tudela. O templo é marcado por uma parte mais antiga, gótica, e outra moderna, fruto de sua ampliação. As esculturas mais significativas são as de Jesus Crucificado, da primeira metade do século XVII, e o grupo renascentista de Santa Ana, localizado no altar de São Francisco Xavier... Vale a pena fazer uma visita guiada e conhecer o museu da Igreja.

Em Monreal não fiquei no albergue de peregrinos. Cheguei a me inscrever, selar minha credencial, pagar, tomar banho, arrumar a cama... aliás, pela primeira vez no Caminho Aragonês usaria o saco de dormir sobre o colchão... mas, aproveitando que a conexão wifi estava falha, tive motivo para juntar tudo de novo e mudar meu plano de permanecer no albergue. Instalei-me na Casa Rural, a menos de 50 metros de distância, em frente à praça. Fui recepcionado por um atencioso proprietário/hospitaleiro que, junto com a senha de acesso rápido à internet, contou histórias hilárias sobre peregrinos brasileiros, indicou-me o guia da igreja, o restaurante..., e colaborou para que minha passagem por Monreal fosse perfeita. Afinal, no dia seguinte estava determinado a fazer a última etapa do meu Caminho Aragonês.

Rumo ao Alto de Aibar, a caminho de Monreal

Plantações no Alto de Aibar
Muito perto de Izco, antes de chegar a Monreal

segunda-feira, 6 de junho de 2022

“Yesa no”, uma luta do peregrino

Represa de Yesa assombra o Caminho Aragonês

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

5ª etapa – Ruesta a Sangüesa (22,6 km)

Quarta-feira – 06/06/2012

O Caminho Aragonês a Santiago de Compostela guarda uma surpresa ao peregrino a partir de Ruesta. Embora seja possível ter a prévia dimensão do estrago causado pelo reservatório de Yesa – o que, infelizmente, não era o meu caso –, é exatamente neste trecho do Caminho que o peregrino terá noção do impacto gerado pela obra, que represou o Rio Aragão, inundou uma área de mais de 2.400 hectares, destruiu plantações, expulsou moradores e sepultou vestígios da presença romana na Península e trechos do Caminho de Santiago.

Apesar do trágico contexto imposto pelo reservatório Yesa, minha passagem por Ruesta é repleta de doces lembranças. Cheguei muito bem ao albergue, que funciona no complexo medieval do castelo e da igreja de Santa María de Ruesta, hoje em ruínas, e tive uma recepção calorosa do casal de hospitaleiros e a presença de seus cães. Colocaram tudo a minha disposição, incluindo a ceia da noite e o café da manhã do dia seguinte, e aceitei o pacote completo, praticamente adivinhando o pueblo inexistente, hoje talvez resignado, praticamente dizimado por Yesa, sobre o qual não ouvi referência... nem dos hospitaleiros, nem durante a farta ceia, no reencontro com muitos peregrinos que estavam em Arrés, muito menos no café da manhã.

Se os peregrinos já estão sensibilizados ao problema, especialmente os espanhóis, nada foi comentado – o que lamento. Ao voltar ao Brasil, após pesquisar mais profundamente, tenho absoluta convicção de que o movimento “Yesa no”, cujos efeitos se alastram por toda a Espanha, é uma luta também do peregrino – e muitos, aliás, já se manifestaram solidários. Uma luta não apenas para remediar o estrago que já fez – e que, caso seja aprovada sua ampliação, haverá mais prejuízos ao traçado original do Caminho de Santiago, pois inundará, por exemplo, o atual trecho de Artieda a Ruesta... –, mas especialmente pelos danos que continua provocando ao meio ambiente.

Após o café no albergue, iniciei naquela manhã de 6 de junho a quinta etapa do meu Caminho Aragonês a Santiago de Compostela, programado para chegar a Sangüesa, distante cerca de 22,6 quilômetros, prevendo apenas uma parada, em Undués de Lerda, após 12 quilômetros. Antes de partir, fiz uma sequência de fotos nas ruínas... e iniciei a peregrinação por uma descida, da qual se captura outro ângulo do belo cenário arquitetônico e sua harmonia com a natureza. Muito perto, em meio ao bosque, está a Ermita de Santiago, românica, do século XI.

Pouco antes de ser surpreendido pela grandiosidade do reservatório Yesa, vi e fotografei a placa do Ministério do Meio Ambiente e Meio Rural e Marinho, do Governo da Espanha...

Continuei e, após uma breve subida, avistei Yesa – ainda sem compreender o tamanho da encrenca que ela representa para o meio ambiente e para o patrimônio da Humanidade. Um novelo que comecei a desenrolar ao pesquisar ainda mais os pontos pelos quais havia passado e rever as fotos que fiz, como a placa citada, que é dirigida aos velejadores, com um alerta sobre o mexilhão-zebra, e os cuidados exigidos para navegar no reservatório da bacia do Ebro:

“Informar-se sobre o tipo de navegação permitido; realizar o registro e autorização pertinente em cada caso; acessar a água por pontos habilitados; desinfetar e limpar o seu barco de acordo com o protocolo estabelecido”. E mais: “Quando sair do reservatório aos rios da bacia é proibido navegar a motor desde o nascimento do Ebro até Escatrón. Você poderá navegar a remo, mas sempre limpando e desinfetando o seu barco”. Ao final, ameaça: “O cumprimento destas normas é obrigatório (BOE nº 146, 19 de junho de 2007), sob sanção”.

Coisas do progresso..., em troca da energia, uma série de estragos ao patrimônio artístico, cultural... e, como prêmio extra, a invasão do mexilhão-zebra (Dreissena polymorpha), um molusco de água doce e salobra, que se alimenta de plâncton e matéria orgânica em suspensão e está incluído na lista da União Internacional para a Conservação da Natureza, a International Union for Conservation of Nature (IUCN), entre as 100 piores espécies exóticas invasoras no mundo.

A batalha tem sido intensa, mas, pela forma como o molusco de espalha por diversos rios de Espanha, está longe de terminar.

Dados sobre a invasão no Ebro, de setembro de 2001, projetam cerca de 500 mexilhões-zebra por metro quadrado, com alta reprodutibilidade (cada adulto pode gerar 1,5 milhões por temporada), o que faz dele agente radical de mudança ecológica, pois reduz a concentração de fitoplâncton na água e altera a cadeia alimentar dos rios. Evitar a sua propagação para outros rios ibéricos é prioridade.

Se hoje posso assegurar que o reservatório Yesa me preocupa, ele não me atormentou durante o Caminho Aragonês a Santiago de Compostela – o que, avaliando de outro modo, teve o seu lado positivo, pois permitiu que realizasse minha peregrinação focado nas questões mais íntimas do meu encontro comigo mesmo, reflexões que só o deserto..., o Caminho de Santiago é capaz de proporcionar. Reflexões sobre cada passo, as dificuldades, o suor, o esforço, a energia sendo trocada com a natureza, a expectativa, a gratidão. Caminhando, gravei um vídeo e deixei registrado o epílogo: “pode cortar e saborear...”

Acho mesmo que a frase sintetiza, ou pelo menos sintetizou naquele momento, minha terceira peregrinação pelo Caminho de Santiago... A primeira, em 2009, pelo Caminho Francês, a partir de Saint Jean Pied de Port, foi a descoberta. Mostrou a novidade, a busca e a conquista da superação – afinal, são 800 quilômetros! –, muita alegria, muita disposição... Já a segunda, em 2010, pelo Caminho Português, me revelou a oportunidade de enfrentar dificuldades, a necessidade de cultivar a paciência, o sentido de perdão – 240 quilômetros, com muitos desafios.

Agora, em meio à terceira peregrinação, o Caminho Aragonês me transforma numa posição de tranquilidade comigo; não tenho a veleidade de ter alcançado a perfeição, pois sei que não sou perfeito, mas a conquista de algum ponto de equilíbrio, ou achar que estou perto, ah... isso sim..., ao adquirir mais experiência e amadurecimento físico e sobretudo espiritual. Daí, o epílogo: pode cortar e saborear.

Continuo andando e, após cerca de duas horas e meia, avisto minha primeira (e única) parada: Undués de Lerda. De longe, o pueblo é belo, incrustado em meio a campos agrícolas. As referências indicam que lá, em 1214, Francisco descansou durante sua peregrinação a Santiago (*).

De perto, Undués de Lerda fascina... e observo cada detalhe, ouvindo os sinos da Igreja de San Martín de Tours. A construção de pedra é de final do século XVI e destaca uma grande torre, aparentemente desproporcional para a dimensão da Igreja, o que sugere uma função militar, tendo sido construída antes do templo.

Parei na praça, dois gatos vieram circular entre meus apetrechos, espalhados para secar, e passei a cuidar dos pés, conferi o estado da unha do dedão, roxa, as bolhas... Comi as frutas que trazia, fui ao bar do albergue e saciei minha fome com um bocadilho e café com leite.

Ao deixar o pueblo, que possui cerca de 60 moradores, intrigado com o nome Undués de Lerda, perguntei a um morador como ele teria surgido. Disse-me que na região havia dois pueblos que desapareceram, um se chamava Undués, e o outro, Lerda. Com a criação do novo pueblo, a população decidiu colocar o nome Undués de Lerda. “E o que significa?”, insisti. E ouvi: “Ora, nada. Como Sevilha, ou qualquer outro nome!”.

Segui meu Caminho pela fronteira da Província de Zaragoza, uma das três da Comunidade Autônoma de Aragão (as outras são Huesca e Teruel), e entrei na Província de Navarra. Quase duas horas depois estava em Sangüesa.

(*) Em 2014, a marca dos oitocentos anos da peregrinação de Francisco, de Assis a Santiago de Compostela, foi amplamente comemorada com vários eventos em diferentes pontos do Caminho de Santiago.

Avistando Undués de Lerda, vestígios da presença de Francisco na célebre peregrinação de 1214


O rico patrimônio de Sangüesa

Detalhe do portal da Igreja Santa María la Real em Sangüesa

Não tive a oportunidade de conhecer a famosa hospitalidade do pequeno albergue do Convento das Filhas da Caridade, em Sangüesa, que estava lotado pelos peregrinos que saíram mais cedo de Ruesta, e me instalei no Hostal JP, cujo proprietário é fã do cantor Roberto Carlos... Está localizado após a ponte sobre o Rio Aragão; aliás, no início da etapa seguinte, a Monreal.

Depois do banho fui comprar protetores para os pés e conhecer Sangüesa, que pode ser considerada um grande pueblo, com mais de 5.000 habitantes, e abriga um rico patrimônio arquitetônico, com vários palácios e mansões, como o Palácio do Príncipe de Viana, de estilo gótico, do século VII, hoje biblioteca, e o Palácio de Vallesantoro, do século XVII, hoje Casa da Cultura.

E muitas igrejas, como a de Santa María la Real, dos séculos XII e XIII, com sua monumental torre octogonal, ícone do pueblo. A igreja foi declarada Monumento Nacional em 1889, e se notabiliza por um magnífico portal em pedra, onde é representado o Juízo Final, e o altar-mor da primeira metade do século XVI, decorado em ouro. É considerada uma das mais importantes obras do estilo românico na Europa, num momento de transição para o gótico.

A Igreja de San Salvador, construída em estilo gótico pelos moradores do Distrito de População, foi fundada por 12 cavaleiros de Sangüesa, no final do século XIII – e está fechada desde 2001, aguardando restauração. No tímpano do portal está representado o Cristo-juiz, com os braços levantados, mostrando as chagas da Paixão. Está rodeado por dois anjos, que carregam os instrumentos do martírio: a cruz, a coroa de espinhos, a lança e um pacote de pregos. As figuras ajoelhadas representam a Virgem e São João, defensores da humanidade. Nos relevos do umbral estão esculpidos episódios da ressurreição dos mortos, que formam um cortejo de suplicantes, e cenas do Castigo dos Ímpios, com o demônio numa fornalha de fogo ardente, que surge a partir da boca de um Leviatã.

O Convento de Nossa Senhora de Carmen é construção dos séculos XIV a XVII e destaca seu claustro gótico. Tem ainda o Convento de São Francisco, que teria sido incentivado por Francisco em sua peregrinação a Santiago de Compostela, em 1214, e seria o primeiro convento franciscano da Espanha. E, claro, a Igreja de Santiago, dos séculos XIII e XIV, com um altar-mor primoroso e uma bela escultura colorida do Apóstolo em seu portal...

Interior da torre octogonal da Igreja Santa María la Real em Sangüesa

Igreja de San Salvador em Sangüesa ainda aguarda restauração

Imagem de Santiago Peregrino no portal da Igreja de Santiago em Sangüesa

domingo, 5 de junho de 2022

Reflexões até Ruesta

Plantações de cereais marcam o Caminho

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

4ª etapa – Arrés a Ruesta (28,7 km)

Terça-feira – 05/06/2012

Por Caminhos de Santiago, até 2012, peregrinei cerca de 1.250 quilômetros, em três situações: pelo Francês, desde Saint Jean Pied de Port; pelo Português, a partir de Oporto; e pelo Aragonês, de Somport a Puente la Reina. Mas, embora tenha frequentado perto de 40 albergues, ao deixar o de Arrés, na manhã de 5 de junho, tive a emoção de, pela segunda vez, o hospitaleiro se despedir de mim... A primeira vez foi ao deixar o albergue em Santo Antonio de la Calzada, quando Jesus, o hospitaleiro, me acompanhou até a porta e desejou “buen camino”. Desta vez, o momento mágico foi proporcionado pela hospitaleira Piedad. Com certeza, seus votos foram importantes para aumentar minha determinação no quarto dia de peregrinação pelo Caminho Aragonês, de Arrés a Ruesta, um percurso com mais de 31 quilômetros de distância.

O trecho de Arrés a Ruesta é um convite à reflexão. O silêncio pela ausência de árvores..., ou melhor, de pássaros, acompanha o peregrino a partir da descida do Monte Samitier em direção ao vale do Rio Aragão, atravessando ora campos de cereais, ora terras áridas..., o céu azul; passando ao largo de alguns pueblos, como Martes (Província de Huesca) e Mianos (já na Província de Zaragoza), até a entrada em Artieda. Fiz alguns vídeos, que confirmam o clima e o som, apenas, dos meus passos. Foi uma excelente oportunidade de, mais uma vez, promover o reencontro comigo – o deserto de Marcos, compartilhado por Santiago...; pensar na minha querida família; nos estimados amigos; agradecer, agradecer... e ainda impactado pela atenção da hospitaleira Piedad.

Já havia sido alertado pelos guias Rother e El País/Aguilar que seria uma etapa sem muitas opções (El País/Aguilar a intitula como “maratón de desamparo”), com praticamente apenas uma parada, Artieda, após cerca de 21,5 quilômetros sem sombras, ou apenas a sua. E foi lá que cheguei, após 4 horas e meia de caminhada, a 655 metros de altitude. O pueblo tem área de 14 km2 e população de pouco mais de 50 habitantes.

Pelo que informa uma placa antes da subida, Artieda concentrou, em sua extensão, um conjunto impressionante de assentamentos romanos. “En tan sólo 4 km de ribera se conocen varios yacimientos de interés, entre los que destaca La Cantera de Gimeno, que ofreció magníficos mosaicos trasladados a Zaragoza”. O marco oficial explica que o disperso assentamento romano foi reduzido aos núcleos medievais de Rienda, Artieda e Viasués, restando apenas Artieda, com clara vocação de defesa, em virtude de sua localização junto à fronteira entre as Províncias de Aragão e Navarra.

Sua ligação com o Caminho de Santiago é enfatizada pela tradição assistencial: “Se cita en 1124 un refugio (albergaria) em Viasués, en medio del camino (in media via); y en Artieda, el famoso Hospital de Santa Cristina de Somport, mantuvo un hospício con dos sacerdotes y cinco donados donde se atendia a pobre e peregrinos”.

Uma joia de Artieda é a Igreja de San Martín, cujo templo original foi construído no final do século XII e consistia em uma nave fechada com ábside de forma semicircular. Mais tarde, entre o XVI e XVI, foram adicionados vários edifícios, a sacristia, a capela de Nossa Senhora do Rosário, o pórtico que abriga a porta clássica e a torre quadrada de pedra, com uma escada em espiral anexa.

Quando passei por Artieda a igreja estava fechada. Mas, pelos relatos, estão na capela de Nossa Senhora do Rosário as duas obras mais valiosas do templo, o altar e a imagem de Cristo, cuja qualidade artística revela a influência das oficinas de escultura da vizinha cidade de Sangüesa, já em Navarra.

Uma preocupação latente do pueblo é com o projeto de ampliação da represa de Yesa, aos seus pés, que nos anos 1960 já inundou uma extensão 2.400 hectares, sendo mais da metade de terras agrícolas, a partir do estrangulamento das águas do Rio Aragão. Em meio ao rico patrimônio submerso, as termas romanas de Tiermas e o traçado original do Caminho de Santiago, entre Ruesta e Tiermas, e deste pueblo até o Monastério de Leyre. A transformação ambiental provocou a transferência de muitas famílias e continua perturbando o sono das autoridades locais. Irritados, os ambientalistas criaram o movimento “Yesa no!”; uma bandeira, aliás, que é encampada por peregrinos de todo o mundo, já que, se a capacidade da represa for mesmo triplicada, como se pretende, desaparecerá o trecho do Caminho de Santiago entre Artieda e Ruesta!

A parada em Artieda foi providencial. Tirei as botas e meias e, junto com a mochila, deixei tudo no sol para secar o suor..., coloquei os chinelos e fui comer um bocadilho de jamón com queijo no bar do albergue de peregrinos, acompanhado por três, sim, três Aquarius em lata. Revigorado, desci o morro de Artieda e me reencontrei, na estrada, com o espanhol Xavi, um dos 13 peregrinos que estavam em Arrés.

Paramos para fotos e depois seguimos um trecho juntos; falamos sobre vários assuntos, entre os quais, seu triste relato sobre como as bolhas nos pés ameaçavam sua peregrinação – que, aliás, viria a ser suspensa no final do dia seguinte, logo após ser atendido no posto médico em Sangüesa.

De Artieda a Ruesta foram mais 10 quilômetros, em meio a plantações, um pequeno bosque refrescante, com árvores magras, seguindo por um caminho que acompanha o temido reservatório de Yesa. Antes mesmo de chegar a Ruesta é possível avistar as torres e ruínas do castelo medieval, de origem árabe, do final do século X, e da Igreja de Santa Maria, do século XVI. Os edifícios são ícones do pueblo, cuja grande parte do território está submersa pelas águas de Yesa, cuja construção exigiu a desapropriação de campos e casas.

Muitos dos moradores foram embora para sempre ou aceitaram se mudar para núcleos de repovoamento, em zonas irrigadas do Canal de Bardenas, como Bardena, Santa Anastásia e Pinsoro. Conforme apurado, Ruesta ocupa hoje áreas dos pueblos de Sigüés e Urriés, região de Jacetania, distrito judicial de Ejea de los Caballeros.

Nessa movimentação provocada por Yesa, a Confederação Geral do Trabalho de Aragão, em parceria com o Colégio Oficial de Arquitetos de Aragão, fez um trabalho de recuperação de vários edifícios, como a casa Valentín e a casa Alifonso, onde hoje funcionam o albergue de peregrinos, a casa de cultura, biblioteca e o camping.

Duas joias de Ruesta, o Castelo e a Igreja de Santa Maria, junto ao albergue, sobrevivem em meio às ruínas. Registros históricos revelam que Ruesta foi fortificada por Sancho III o Grande, de Navarra, em 915, e até 1055 se constituiu em enclave navarro em Aragão. Em 1050 passou definitivamente ao poder de Aragão e, em 1055, assumiu Sancho Garcés, como primeiro senhor de Ruesta, sob o domínio de Ramiro I. Depois, até 1058, Sancho Galíndez. No tempo de Ramiro II o Monge, desde 1133, Ruesta esteve nas mãos de Cecodín de Navasa; e Frontín, até 1136. Reinando James II, assumiu Dom Pedro de Ayerbe. Situada no outro extremo do castelo, a Igreja de Santa María de Ruesta deve ter sido fundada nos séculos X e XI, mas foi completamente reconstruída no século XVI. Na Idade Média, Ruesta abrigou a comunidade judia mais antiga de Aragão.

Amapola junto ao Caminho Aragonês

Mais um belo dia, muitas cores, céu azul, rumo a Ruesta

Peregrinos miram Artieda

sábado, 4 de junho de 2022

Em Arrés, éramos 15

Placa identifica o Albergue de Peregrinos de Arrés

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

A passagem por Arrés é a marca mais profunda de minha peregrinação pelo Caminho Aragonês a Santiago de Compostela, neste final de Primavera europeia. No tempo, ela aconteceu a partir das 19 horas e 20 minutos da segunda-feira 4 de junho, ainda um final de tarde, com muito sol, quando avistei os telhados das casas do pequeno pueblo, e se prolongou até as 8 horas e 38 minutos do dia seguinte, quando a hospitaleira Piedad se despediu de mim, acenando da porta do albergue Hospital de Peregrinos. Já no coração, a passagem ainda busca palavras e sentimentos que possam traduzir o que representou o encontro fraterno entre 13 peregrinos e duas hospitaleiras.

Arrés está isolada no Caminho Aragonês e, antes de decidir o seu acesso, o peregrino tem a opção de descartá-la, seguindo direto para Artieda. Se estiver cansado, olhará a subida e é possível que a evite. Quem encarar o desafio, contudo, não terá motivo de arrependimento. É mais ou menos o que alerta o guia de El País/Aguilar: “El pueblo queda apartado del Camino, por ló que no tienen que entrar quienes no vayan a hacer noche em él. Los que hayan decidido quedarse encontrarán uma pequeña localidad em la que el refugio de peregrinos abierto por la Federación de Asociaciones del Camino hace buena aquella máxima de ‘pueblo pequeño, hospitalidad grande’”.

Diria, a bem da verdade, que a hospitalidade é enorme! Aliás, é uma hospitalidade pura, irradiante, que contagia os peregrinos e anima todos a buscar uma forma de ajudar, colaborar, enfim, fazer o melhor – e fazer o melhor tem muita importância quando se está entre amigos! –, para que o encontro seja coroado de harmonia, carinho, respeito... ou seja, todas as virtudes que o espírito do Caminho de Santiago é capaz de proporcionar.

Essa energia senti logo ao entrar no pueblo e ver a placa “Hospital de Peregrinos”. Estava procurando albergue, mas precisando mesmo de hospital, pois naquele dia havia retomado a peregrinação... Explico: o início de minha peregrinação foi em 1º de junho, sexta-feira, de Somport a Villanúa, um trecho que apresenta divergências de extensão entre os guias El País/Aguilar, com 15,9 km, e Rother, com 19,2 km. Apesar de compreender o começo da travessia dos Pirineus, para mim o maior o impacto viria no dia seguinte, sábado 2, ao decidir pela segunda etapa do Caminho o trajeto entre Villanúa a San Juan de la Peña, algo em torno de 25 ou 30 km. Seria uma caminhada simples não fossem as dificuldades de dois montes, passando por Atarés, com subidas muito íngremes. O esforço foi tamanho que, tendo concluído a etapa por volta das 9 horas da noite, após 12 horas de peregrinação, seria impossível tentar o retorno ao Caminho – ou mesmo tomar um táxi, como o próprio guia Rother sugere ao peregrino que quer conhecer San Juan de la Peña. Decidi então permanecer no hotel do Monastério Novo e aproveitei todo o domingo 3 para me recuperar e conhecer as duas instalações, do Novo e do Monastério Real.

Assim é que, ao final do meu Caminho Aragonês, contabilizei oito dias no Caminho, sendo sete dias de peregrinação.

Na segunda-feira 4, pois, retomei a caminhada, descendo de San Juan de la Peña a Arrés – uma extensão estimada em mais de 21,6 km. Escolhi o trecho que passa por Santa Cruz de la Serós, com a expectativa de ficar em Santa Cília de Jaca, um percurso de 12 km. Cheguei por volta das 14 horas e no albergue de Santa Cília conheci o francês Igor, que me disse que o hospitaleiro deveria chegar após as 16 horas.

Tomei fôlego e com disposição resolvi continuar – talvez até Puente la Reina de Jaca, ou seja, mais 6,2 km, ampliando a etapa para mais de 18 km. Ao chegar nesse pueblo, como ainda estava com energia suficiente, passei na farmácia para comprar protetores contra as bolhas dos pés e segui adiante, até Arrés, ou mais 3,4 km (totalizando 21,6 km) – sem me importar em subir o morro. Juro que não tinha observado a convite velado do guia! Aliás, o acesso apavora, tanto que, ao me reencontrar com Igor no final do dia seguinte, em Ruesta, ele confessou que, ao sair de Santa Cília, preferiu não subir até Arrés.

Para mim, contudo, depois da solidão dos primeiros dias, a escolha por Arrés foi um dos grandes acertos de minha peregrinação pelo Caminho Aragonês.

Vi a placa “Hospital de Peregrinos” e, como não tinha certeza de que era ali mesmo, continuei a caminhar, sendo chamado por um peregrino, o espanhol Fernando, que viria a conhecer melhor e reencontrá-lo sempre. Disse-lhe que procurava um albergue e ele me apontou o “hospital”. Em tom de brincadeira, respondi que precisava de um albergue... Ao me dirigir para a porta conheci a hospitaleira Cintia, sul-africana, que estava escalada com a espanhola Piedad. Quando me dei conta já tinha sido levado para dentro do albergue, entregue meu passaporte e minha credencial de peregrino e, após meu cadastro, aceito o convite para conhecer a Igreja da Imaculada Conceição.

A joia de Arrés foi construída no século XVI e sofreu importantes reformas posteriores. Sua planta é retangular com apenas uma nave e quatro capelas, duas de cada lado. No altar-mor está o retábulo rococó da Imaculada Conceição.

Após a visita voltei ao albergue porque lembrei que, embora registrado, nada havia pago. Encontrei com Piedad, que me explicou que o albergue funciona mediante doação do peregrino; me convidou para a ceia, a partir das 21 horas, também sem custo; e me avisou que a estadia também incluía café da manhã no dia seguinte. Descontraído, respondi que ficaria para sempre no albergue. Ela sorriu e voltou para a cozinha para continuar a preparar a ceia, sendo ajudada por outros peregrinos...

Ao formar a mesa, não houve dúvidas: éramos 15. Treze peregrinos e duas hospitaleiras. O menu foi iniciado com uma salada variada, seguida de pasta e frutas de sobremesa. Antes, porém, Piedad e Cíntia falaram palavras de ânimo aos peregrinos, da alegria de estarmos compartilhando aquele momento – oportunidade em que solicitei a Piedad que fizesse fotos com minha máquina. Imagens históricas que registram todos os presentes naquela noite.

Final da ceia, fiz questão de lavar os pratos, copos e talheres, no que fui auxiliado por Rosa, esposa de Fernando, que os enxugou. Ao final, a convite de Piedad, caminhamos até outro ponto do pueblo, próximo ao café, para vermos o pôr do sol. Era por volta das 10 horas e 15 minutos da noite.

Entre os muitos ensinamentos na passagem por Arrés, pude ter a certeza de que as escolhas pessoais fazem as grandes diferenças na peregrinação a Santiago de Compostela, reforçando as máximas de que cada Caminho é um Caminho e cada peregrinação, uma peregrinação. Até, evidentemente, por todas as opções que se colocam a cada peregrino, jamais um Caminho será igual ao outro; poderá ser até muito parecido, mas, ao mesmo tempo, será muito diferente.

O meu Caminho Aragonês – uma das rotas a Santiago de Compostela, que compreende de Somport a Puente la Reina, ou melhor, a Obanos, quando se une ao Caminho Francês (que tive a oportunidade de peregrinar em 2009, desde Saint Jean Pied de Port) – foi absolutamente especial.

Continuo fazendo reflexões sobre a profundidade dessas diferenças, já em Santiago de Compostela, para onde segui de trem, desde Pamplona, visando cumprir o ritual de final de jornada (e prossigo nessa busca de compreensão em Santander, onde descanso na casa do amigo Soto Rojas, o pioneiro das competições de 100 quilômetros na Espanha, e sua doce Luz Mari) –, com a quase certeza de que esta terceira peregrinação me marcará pela maturidade da experiência, do equilíbrio e do conhecimento.

Cada vez mais percebo as diferenças em relação as minhas outras duas peregrinações; pois não faço comparações, naturalmente, em relação à peregrinação de outros amigos peregrinos. Afinal, nada posso saber sobre a peregrinação de outra pessoa para uma eventual comparação; só mesmo esta pessoa saberá avaliá-la, a partir de sua visão de mundo, e do que representa para ela o Caminho de Santiago.

Assim, recordo que minha primeira peregrinação a Santiago de Compostela, pelo Caminho Francês, em 2009, representou uma grande novidade, uma liberação de energia, meia que desenfreada, explosiva, e a alegria do meu encontro comigo mesmo. Foi um desafio e uma conquista caminhar 800 quilômetros em 29 dias, me conhecer e conhecer um mundo completamente distinto, de hospitaleiros e peregrinos, de lendas e histórias sobre pessoas com algo muito em comum – embora cada um faça questão de explicar do seu jeito.

A segunda peregrinação a Santiago de Compostela foi pelo Caminho Português, em 2010, Ano Santo, frise-se, e teve outro significado. Como, aliás, não poderia ser diferente. E não apenas pela extensão; afinal, o Caminho Português, desde Oporto, tem cerca de 240 quilômetros e foi peregrinado em apenas 10 dias. Mas, apesar de o Caminho Português ter apenas o tamanho de quase um terço do Caminho Francês, foi uma peregrinação dura, dolorosa – cada Caminho é um Caminho, repito! Marcada pela reflexão, sintetizei esta peregrinação, ao preparar a edição do segundo livro sobre o tema (o primeiro livro, “Pedras do Caminho, meu encontro no Caminho de Santiago”, foi lançado em março de 2013), no sentido do perdão no Caminho de Santiago. Não apenas o perdão pelo que, eventualmente, possamos fazer; mas também por aquilo que não fazemos. Trata-se de um sentimento capaz de mudar o sentido da vida.

Agora, avalio que esta terceira peregrinação se integra ao contexto das anteriores e assinala uma evolução, um amadurecimento no significado da peregrinação a Santiago de Compostela, cristalizado na busca, uma busca sem fim... e, quiçá, na conquista de experiência, equilíbrio e conhecimento.

Depois de Arrés, encontrando aqui a ali os amigos peregrinos conhecidos no pequeno pueblo, o Caminho Aragonês foi mais suave – apesar das distâncias consideráveis entre suas etapas. Afinal, reencontrá-los, concentrados na peregrinação ou comemorando o final de mais etapa, era sempre motivo de alegria e entusiasmo.

Foi assim que na terça-feira 5, peregrinei os 28,7 quilômetros de Arrés a Ruesta; na quarta-feira 6, os 22,1 quilômetros ou 22,6 quilômetros de Ruesta a Sangüesa; na quinta-feira 7, os 27 quilômetros de Sangüesa a Monreal; e na sexta-feira 8, os 31,2 quilômetros de Monreal a Puente la Reina – totalizando os cerca de 180 km de meu Caminho Aragonês.

Em Puente la Reina aconteceram os últimos momentos com alguns dos 12 amigos peregrinos que conheci em Arrés. Na última etapa, sabia que não veria alguns deles, que desta vez foram vencidos pelo Caminho, mas que tenho certeza retornarão, pois demonstraram ter vontade para isso. Caso do espanhol Xavi Xavier, que parou em Sangüesa, e da austríaca que está na foto da ceia do albergue e que não identifiquei. Apesar de sua visão reduzida, foi impressionante como venceu várias etapas do Caminho Aragonês, abandonando-o em Artieda.

Outros, como os espanhóis Fernando, Rosa, Jesus e Pedro, os também espanhóis Sara e Pache, e o segundo alemão da ceia, não identificado, completaram o Caminho Aragonês até Puente la Reina – mas, diferente de mim, não se dirigiram a Santiago de Compostela. Já o alemão Franz, o polonês Eszec e a francesa Nicole estavam com disposição de peregrinar a pé até Santiago. Espero que tenham feito um Buen Camino!

Hospitaleira Piedad, do albergue de Arrés

O melhor ainda estava por vir

Bela vista dos Pirineus entre os dois Monastérios

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

3ª etapa – San Juan de la Peña a Arrés (21,6 km)

Segunda-feira – 04/06/2012

Se o complexo histórico-artístico de San Juan de la Peña pode ser considerado a maior expressão religiosa do Caminho Aragonês, a percepção que viria a ter em Arrés, na segunda-feira 4 de junho (cujas reflexões detalhei num texto páginas atrás, sob o título “Em Arrés, éramos 15”), pode ser classificada como uma magnífica experiência de minha própria existência. Mais: uma inesquecível lição de solidariedade, amizade, respeito, entre outras virtudes que fazem do Caminho a Santiago de Compostela uma das três mais importantes rotas de peregrinação do planeta, ao lado de Jerusalém e Roma.

Retomei o Caminho Aragonês, iniciado no dia 1º de junho em Somport, após tê-lo suspenso por um dia no Monastério de San Juan de la Peña, onde descansei depois de uma dura segunda etapa, a partir de Villanúa – conforme relatei anteriormente. Já recuperado, este terceiro dia de peregrinação viria a ser encerrado em Arrés.

Afinal, se o peregrino decidiu não incluir em seu Caminho Aragonês o desvio até o Monastério de San Juan de la Peña – especialmente via Atarés, como fiz (pelos ensinamentos que tal esforço pode proporcionar...) –, muito provavelmente deixará de ver o rico patrimônio existente em Santa Cruz de la Serós, pois este pueblo fica exatamente entre o Monastério e a retomada do Caminho tradicional – através da pradaria de São Indalécio, passando por Binacua e chegando a Santa Cília de Jaca. Acredito que, tendo o conhecimento sobre aspectos desse trecho e, claro, a partir do seu interesse pelo Caminho, é possível adequar a sua rota. É aquilo que se costuma chamar de rota tangencial, já detalhada.

Está no simpático pueblo de Santa Cruz de la Serós o que é considerado o hito, ou sinal, nº 3, do programa Hitos del Camino de Santiago (num total de 25) – o hito nº 1 é o Monastério Hospital de Santa Cristina de Somport e o nº 2, a Catedral de San Pedro de Jaca, já citados. Trata-se da Igreja do Monastério de Santa Maria de Santa Cruz de la Serós, do século XI, classificada como monumento histórico-artístico. Outra joia local é a Igreja de São Caprásio, igualmente do século XI.

Os sites www.romanicoaragones.com e www.santacruzdelaseros.org registram que por volta de 1059-1061 o rei Ramiro I fundou o Monastério de Santa Maria de la Serós. Dependente do Monastério de San Juan de la Peña, ele foi ocupado exclusivamente por freiras beneditinas, até ser abandonado no século XVII. Durante seu apogeu, nos séculos XI e XII, abrigou as mulheres da nobreza aragonesa, com destaque para as três filhas do rei Ramiro I, Aresa, Urraca e Sancha. Do complexo, hoje restou a igreja, construída entre os séculos XI e XII, considerada exemplo da arquitetura românica do Alto Aragão. O projeto é inspirado na Catedral de Jaca e suas dimensões projetam seu duplo papel, além do religioso, também defensivo, como se deduz de sua grande torre do campanário.

Informam os sites: “A igreja é construída em alvenaria, o exterior é notável pela sua sobriedade, sendo determinado pelo volume dos corpos da ábside, a câmara e a torre. A entrada principal consiste em duas arquivoltas apoiadas sobre dois pares de colunas com capitéis de folhas e bolas, coberto com uma guarnição de xadrez sobre o arco exterior. O tímpano, datado de 1095, apresenta um crismón, ladeado por dois animais fantásticos e uma inscrição. O conjunto é protegido por mísulas de pedra, decoradas com folhas e cabeças de animais. Outra porta mais simples, também com crismón no tímpano, se comunicava com os edifícios monásticos. A torre é constituída por três corpos, terminando em um volume octogonal que cobre o interior com cúpula hemisférica. Janelas dobradas e geminadas abrem em três seções e quatro frentes bastante elevadas”.

Fiz fotos em seu interior, capelas, colunas, retábulos, imagens da Virgem, e são muitos os detalhes preservados e recuperados. O rico trabalho de escultura, em especial na entrada e nos capitéis da nave, câmera e janelas, revelaria o trabalho de vários artesãos, um deles mais hábil, cujos traços seriam do mesmo autor do sarcófago de Dona Sancha, que hoje está no Real Monastério das Beneditinas de Jaca... Vale a pena ler sobre mais detalhes nos sites citados.

A Igreja de São Caprásio estava fechada e, apesar de pesquisar, não encontrei mais detalhes sobre sua inegável importância no Caminho Aragonês – apenas que sua construção, em estilo lombardo, data do princípio do século XI.

A retomada ao Caminho Aragonês prossegue em sinuosas trilhas pela pradaria de São Indalécio, o discípulo de Santiago, e chega a Binacua, a 761 metros de altitude. O pueblo está integrado ao que se chama de Rota Monumental do Canal de Berdún, possível de avistar de vários pontos, em especial junto à Igreja Paroquial de Los Santos Ángeles Custodios, construída em estilo românico no final do século XII, e que funcionou dependente ao Monastério de Santa Cruz de la Serós.

Infelizmente, estava fechada, mas uma placa explica que consta de nave única e abóboda, combinando as tradições jaquesa e lombarda: “La portada es el elemento más valioso y destacado. Muestra cuatro arquivoltas decoradas de forma diferente. Los capiteles están esculpidos com animales fantásticos y columnas. Em el tímpano se inscriben três círculos tangentes: en el central hay um crismón y em los laterales um grifo y un cervatillo. El crismón de seis rádios nos mustra, em símbolos superpuestos, la cruz, el anagrama griego de Jesuscristo y su representación del alfa y omega como principio y fin. En las enjutas que conforman podemos observar um par de rostros barbados”.

Uma pena não ter fotos!!!

Continuei descendo e cheguei a Santa Cília de Jaca, um pueblo que deve sua existência ao Caminho Aragonês, e possui um albergue bem equipado. Não tive a oportunidade de conhecer o hospitaleiro, mas foi possível perceber sua hospitalidade. A porta do albergue estava aberta, bati e, como ninguém atendeu, entrei e passei a circular pelas dependências. Ouvi barulhos no piso superior e, enquanto utilizava a máquina de água e refrigerantes, desceu um jovem peregrino francês, que chegara de Canfranc e iria permanecer no local. Ele não iria a Arrés... Reencontrá-lo-ia no final do dia seguinte em Ruesta. Após me abastecer e conferir os curativos nos pés, e como ainda era cedo para parar, segui para Puente la Reina de Jaca, distante 6,2 quilômetros.

Precisava comprar protetores para os pés e uma farmácia só mesmo em Puente la Reina... O trecho é muito bonito e marca o reencontro do peregrino com o Rio Aragão. Antes de atravessar a ponte que dá nome ao pueblo, e que também é conhecido como Astorito, a placa informa: “Antigua escala jacobea, como señala Aymeric Picaud en el Libro V del Codex Calixtinus, Astorito (Osturit) fue sede regia durante la época Dora de las peregrinaciones”.

Comprei os protetores para os pés castigados, como a expurgar o pecado, com bolhas, programando colocá-los após o banho, e avaliei a possibilidade de ficar em Puente la Reina. Algo me dizia, contudo, que deveria continuar caminhando; e os guias El País/Aguilar e Rother indicavam que o próximo pueblo, Arrés, estava a 3,4 quilômetros... uma subida, até 520 metros. Ou seja, havia acabado de descer e iria subir outra vez.

Mas valeu cada centímetro e cada segundo caminhado. Em Arrés, depois de tudo o que havia passado para chegar a San Juan de la Peña (os vídeos estão no Youtube e em minha página no Facebook), tive a certeza de que o melhor ainda estava por vir. Sim, em Arrés, éramos 15...

Trecho florido do Caminho Aragonês rumo a Arrés

Abóbada da Igreja do Monastério Real de San Juan de la Peña

Paisagem dos Pirineus, me despedindo dos Monastérios de San Juan de la Peña

Chegando a Santa Cruz de la Serós, a torre da Igreja do Monastério

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Sonhando com o Santo Graal

Monastério Real de San Juan de la Peña

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

Melhor lugar, após um dia exaustivo de peregrinação, não seria possível. Afinal, depois de dormir a primeira noite num albergue particular em Villanúa, hoje aproveito a hospitalidade da Hospederia do Monastério de San Juan de la Peña, em Jaca, nos Pirineus Aragoneses, muito próximo a Santa Cruz de la Serós.

Para quem não sabe, ou não lembra mais, a lenda espanhola sobre o Santo Graal – a expressão medieval que designa o cálice usado por Jesus Cristo na Última Ceia, e no qual José de Arimateia colheu o sangue de Jesus durante a crucificação – conta que a relíquia esteve abrigada no hoje denominado Real Monastério de San Juan de la Peña, que se diferencia de outra construção do complexo, chamada Nuevo Monastério, um prédio magnífico, que também abriga o hotel, e que foi concebido a partir do incêndio de 1675.

A questão é que cheguei ao Monastério após uma terrível peregrinação. Adotando o guia Rother, caminhei os 14,1 quilômetros da etapa Villanúa a Jaca, e sai do que se convencionou chamar Caminho Aragonês, para, na altura de uma fábrica de pré-fabricados (no trecho entre Jaca a Arrés), virar à esquerda na direção de Atarés – um trecho que representou uma esticada de mais uns 12 quilômetros.

Aliás, ainda não entendi como um Monastério tão importante na história do Caminho de Santiago de Compostela não está integrado a uma de suas rotas, no caso o Caminho Aragonês. Aliás, o mesmo me diz o gerente do hotel David, o que, convenhamos, movimentaria ainda mais o turismo.

Em todo caso, o trecho quando se sai do Caminho até Atarés é difícil. Uma subida forte até 1.030 metros, muito forte, quase impossível... para se chegar a um pueblo de pouquíssimas famílias e nenhum comércio. Matei a sede na bica pública e, após conversar com quase todos os moradores..., aproveitei para completar minha garrafinha, algo mística..., com a mais pura água. Afinal, de Atarés até o Monastério são mais uns 15 quilômetros – e muito parecido com o trecho anterior: subida forte (agora até 1.150 metros), muito forte, quase impossível... Ou seja, no total, a peregrinação nesta segunda etapa do Caminho Aragonês foi de cerca de 41,1 quilômetros – quase uma maratona. Seria até pouco, se não se levasse em conta as botas, que pesam uns dois quilos, e os 10 quilos da mochila nas costas.

Sinto dizer, e até surpreender os amigos que me acompanham, mas quase desmaiei de exaustão, cãibras, dores nas pernas; e se tamanha desgraça acontecesse, com certeza não estaria aqui para contar, pois esta rota é muito pouco utilizada (hoje, por exemplo, só esteve por lá o Melchior, da Associação dos Amigos de Peregrinos de Jaca, que foi a trabalho, repintar as setas amarelas de sinalização, aliás, minha sorte, pois é muito fácil se perder...) e, além do mais, como repetiram os serviços de meteorologia, finalmente o tempo mudou por volta das 20 horas, ainda claro, com trovões, raios e chuva...

Com a alegria de respirar, agora vou dormir (ainda com o fuso não adaptado...), preparado para sonhar com o Santo Graal...

Afinal, diz a lenda que ele teria permanecido no Monastério de San Juan de la Penã, de 1071 até 1399, após passar por diversas localidades, como a cova de Yebra de Basa, San Pedro de Siresa, Igreja de San Adrián de Sásabe, San Pedro de la Sede Real de Bailo, Catedral de Jaca...

Teria se fixado neste Monastério com o objetivo de atrair os peregrinos que faziam o Caminho Aragonês a Santiago de Compostela, e passavam próximo, no trecho entre Jaca a Arrés. Se estiver correta esta perspectiva, assim se reforça a tradição quanto a escolha de Francisco ao optar pelo Caminho Aragonês em sua peregrinação, em 1214, de Assis a Santiago de Compostela - já que são contundentes os registros de sua passagem por Undués de Lerda e Sangüesa la Vieja...

Em 1399, o Rei Martim I levou o cálice sagrado ao Palácio da Aljafería, em Zaragoza, onde esteve mais de 20 anos, depois de uma breve passagem por Barcelona, e posteriormente foi levado à Catedral de Valência, onde permanece até hoje – tendo recentemente reforçada sua autenticidade...

Pesquisando sobre o Santo Graal, apurei outras referências. Ele aparece num poema que conta a busca do Rei Arthur e seus cavaleiros por um recipiente mágico, um caldeirão, que poderia dar novo sabor a alimentos, vida e vigor as pessoas. A questão é que, quando esta lenda aparece durante a Idade Média, ela passa por um processo de cristianização, e, nesse contexto, é citado como um caldeirão mágico que traria novamente vida e prosperidade, pondo fim a período de miséria. Ele é citado nas Lendas Arturianas como objetivo dos Cavaleiros da Távola Redonda, sendo considerado o único objeto com capacidade para devolver a paz ao Reino de Arthur.

Outra interpretação afirma que ele designa a descendência de Jesus, ligada à Dinastia Merovíngia. Nesta versão, o Santo Graal significaria Sangreal, ou seja, Sangue Real.

Há ainda quem defenda que é a representação do corpo de Maria Madalena, a seguidora de Jesus – ponto de vista popularizado no best seller “O Código da Vinci”, de Dan Brown.

Exaustão na subida a San Juan de la Peña