quarta-feira, 8 de junho de 2022

Meu reencontro com o Caminho Francês

Ponte junto ao Cruzeiro de San Blas, deixando Monreal

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

7ª etapa – Monreal a Puente la Reina (31,2 km)

Sexta-feira – 08/06/2012

Dormi ouvindo as badaladas do sino da Igreja da Natividade de Nossa Senhora de Monreal e exatamente às seis horas fui acordado pelo primeiro dos seis badalos; e me lembrei da alcadesa do pueblo. Levantei disposto naquela manhã de 8 de junho, ansioso em fazer a última etapa de minha peregrinação pelo Caminho Aragonês a Santiago de Compostela.

Pela janela conferi que não estava chovendo e confiei que o tempo abriria, como viria a acontecer, e poderia desfrutar da bela etapa, que desde Monreal atravessa inúmeros pueblos de Navarra e, pouco antes de chegar a Puente la Reina (em euskera, Gares), oferece ao peregrino a fantástica Ermita Santa Maria de Eunate – uma construção em formato octogonal, envolta em lendas e mistérios –, que, no meu caso, marcaria um reencontro, pois estive lá em 2009, quando peregrinei o Caminho Francês, desde Saint Jean Pied de Port. Naquela ocasião, curioso pelos segredos do Caminho, fazia a etapa de Pamplona a Puente la Reina, quando, em vez de seguir direto de Muruzábal a Puente la Reina – cerca de 4,1 quilômetros –, sai do Caminho Francês e peguei outra estrada, de 4 quilômetros, que me levaria à Eunate. Além de reencontrar Santa Maria de Eunate, aquele dia seria marcado, enfim, pelo reencontro com o meu primeiro Caminho a Santiago de Compostela.

Ao deixar Monreal uma placa sinaliza a extensão de 30,4 quilômetros até Puente la Reina. Um caminho que resgata o antigo traçado jacobeo e passa por Yárnoz, Otano, Ezperun, Guerendiáin, Tiebas, Campanas, Muruarte de Reta, Olcoz, Enériz, Santa Maria de Eunate e Obanos – pueblo que também recepciona os peregrinos que chegam pelo Caminho Francês e que, na verdade, é onde os dois importantes Caminhos de Santiago, os dois Caminhos que atravessam os Pirineus, o Francês e o Aragonês, se encontram... Hoje, esse marketing é aproveitado por Puente la Reina.

Não muito distante outra placa indica o Cruzeiro de San Bras, a 120 metros, de estilo gótico renascentista, e alerta que faltam os braços da cruz, que talvez sinalizasse o cruzamento do Caminho de Santiago com o Caminho de Labiano.

O primeiro pueblo do Valle de Elorz é Yárnoz, posicionado na ladeira Norte da Serra de Alaiz. Yárnoz é citado em documentos medievais do século XII e conserva a Igreja da Natividade, do século XIII, que sofreu grande reforma no século XVI, para suportar uma nova abóboda. Com retábulo barroco do século XVII, destaca a imagem da Virgem com o filho, românica, de princípio do século XIII. Ao lado, uma torre medieval é o único vestígio de um palácio construído no século XIV ou XV, cuja função, além de moradia, foi vigiar e defender. A torre tem uma planta quadrada e apresenta mudança de sillar (pedra polida), o que indica que sua construção foi feita em etapas. A ela estiveram vinculadas personagens importantes, como Lope de Yárnoz, escudeiro de honra do rei Carlos III, o Nobre, de Navarra, que morreu no começo do século XV a serviço do rei da Sicília.

A passagem por Otano se faz por uma porteira, na encosta da Serra da Alaiz. Em seguida, está Ezperun; e 5,1 km depois, Guerendiáin, onde sou recepcionado por um cachorro alegre e barulhento. Na saída do pueblo uma placa indica que Tiebas está a 3,8 km e Puente la Reina, a 21,2 km. Por trilhas que sobem e descem a encosta da Serra, avisto ao longe, à minha direita Pamplona, a capital da Comunidade Foral de Navarra.

A entrada em Tieblas é marcada pelas ruínas do castelo medieval, reconhecido como bem de interesse cultural, mas que há muito tempo espera restauração. A princípio minha ideia era fotografar as ruínas e seguir o Caminho, mas o encontro com um morador do pueblo me deteve no local. Ele insistiu para que conhecesse a bodega: “Vir até aqui e não conhecer a bodega, não é possível!”, disse o simpático senhor, que me apontou o acesso para a bodega subterrânea com abóboda de pedra.

O castelo foi construído por Teobaldo II, de Champaña, rei de Navarra (1253-1270), em meados do século XIII. Em estilo gótico francês, tem planta retangular, com dois pisos organizados em torno de um pátio central, e serviu de residência a vários monarcas navarros, como o próprio Teobaldo II, Enrique I e Carlos II. Foi também arquivo real, sede da tesouraria, prisão da Coroa e, em algumas ocasiões, lugar de execução.

O castelo foi destruído em 1378 durante a guerra com Castilla e esteve abandonado até meados do século XV, quando foi doado à nobre e poderosa família de los Beaumont, sendo reconstruído por Juan de Beaumont. Depois passou à Casa Ducal de Alba, em cujo poder permaneceu até o século XIX.

Ainda em Tiebas, entro no albergue, junto à Igreja de Santa Eufêmia, românica, para selar minha credencial. No bar, aproveito para tomar um café com leite e comer um bocadilho, reencontrando o grupo de peregrinos espanhóis que conheci em Arrés, o casal Fernando e Rosa, Jesus e Pedro. Eles saem primeiro e, antes que eu retome o Caminho, entra o casal Pache e Sara, também do histórico encontro de Arrés.

Sigo minha peregrinação e, vendo nuvens negras no céu, penso que o tempo mudará, mas isso não acontece. Após 3,8 km de caminhada, passo por Muruarte de Reta, e logo chego a Olcoz, cuja marca é a torre medieval quadrada. Diz a placa que a torre é do começo do século XVI e foi construída pela família Ozta. No século XVIII foi ocupada pelo Marquês de Fortegollano. Hoje, não possui telhado ou qualquer divisão interior, devido aos saques e ao incêndio provocado por Francisco Espoz y Mina, na Guerra da Independência, quando estava ocupada por tropas polonesas às ordens de Napoleão.

Peregrino alemão subindo a Otano

Em Obanos, sim!

Sigo meu Caminho Aragonês a Santiago de Compostela e apreciando, de longe, Añorbe, cruzo com a placa que indica a Ermita Santa Maria de Eunate a 5,2 km e o pueblo Puente la Reina a 10,1 km. Atravesso Enériz, que possui uma igreja do século XVIII e uma praça com um curioso monólito; estou muito perto da Ermita Santa Maria de Eunate.

Começa a passar um filme em minha cabeça e lembro a peregrinação pelo Caminho Francês, em 2009, quando fiz o desvio em Muruzábal, rumo ao Caminho Aragonês, indo ao encontro de uma das construções mais emblemáticas do Caminho de Santiago. Para saber detalhes dessa primeira vez, leia “Minha terra tem palmeiras...”, no primeiro volume da trilogia “Pedras do Caminho”.

Enfim, reencontro a Ermita Santa Maria de Eunate.

Eunate, em euskera, significa 100 portas, ou pode derivar de “bem nascido”. Cercada de mistérios, românica, do século XII, a origem da ermita não é muito clara, podendo ter sido construída pela Soberana Ordem dos Cavaleiros do Templo de Jerusalém, os cavaleiros templários – tal a sua semelhança com a Mesquita da Rocha de Jerusalém –, ou pela ordem hospitaleira de San Juan de Jerusalém, ou ainda pela Confraria de Santa Maria de Eunate..., com a finalidade de ser uma igreja, hospital de peregrinos, igreja funerária, poço de acesso às catacumbas romanas.

A originalidade da ermita se deve a sua estrutura octogonal, tanto na planta como no pórtico que a rodeia, com capitéis que destacam figuras humanas, seres fantásticos... É coberta por uma cúpula chanfrada de oito nervos em estilo muçulmano. Possui uma única porta de ingresso e no lado oriental uma cabeceira semicircular, no interior, e pentagonal, no exterior.

Quando cheguei estava fechada. Dirigi-me ao prédio vizinho, onde funciona um albergue de peregrinos, e o hospitaleiro, após selar minha credencial, a abriu especialmente para mim, deixando-me só no templo.

Ao sair de Eunate, cada vez mais me lembrava da primeira peregrinação. Após 2,4 km cheguei a Obanos e revi a placa que sinaliza o pueblo. Parei num bar para comprar água e ao retomar a caminhada cheguei à Plaza de Los Fueros, onde está a Igreja de São João Batista de Obanos, que neste ano comemora seu centenário... Olhando cada ponto da praça percebi, do outro lado de onde estava, a chegada de peregrinos... um, em seguida um casal, mais dois... realmente, a famosa solidão do Caminho Aragonês ficara para trás; havia me reencontrado com o Caminho Francês e assistia ao fabuloso movimento de peregrinos pela tradicional via.

A partir dali, com absoluta certeza, os dois Caminhos se tornavam um..., apesar de que, só após 3 km, já em Puente la Reina, em frente ao Albergue Jakue, antes de chegar ao pueblo, a estátua em homenagem ao peregrino, exibe a seguinte inscrição: “Y desde aqui todos los Caminos a Santiago se hacen uno solo”.

Puente la Reina é um pueblo atraente e exibe um dos ícones do Caminho de Santiago, a ponte românica sobre o Rio Arga, com sete arcos, 110 metros, construída no século XI para facilitar a passagem dos peregrinos que vinham da França e outros países da Europa. Seu nome presta homenagem a uma rainha que teria tido a iniciativa de construir a ponte: Muniadona Sánchez, esposa de Sancho III, o Mayor, ou a nora Estefanía de Foix, casada com García Sánchez III.

Outras joias arquitetônicas de Puente la Reina merecem ser visitadas, como a Igreja de Santiago, do final do século XII; a Igreja do Crucifixo, românica do século XII, ao lado do atual albergue e do antigo hospital de peregrinos, hoje Colégio dos Padres Reparadores; e o Convento dos Trinitários, do século XIII, ampliado no XVI e reformado no XVIII, localizado em frente à Igreja de Santiago. E ao longo da Calle Mayor existem inúmeras casas com portas medievais e renascentistas e fachadas barrocas. Uma coleção de casas em formato de palácio que fazem da Calle Mayor um cenário magnífico.

Na manhã do dia seguinte, peguei o ônibus até Pamplona e, em seguida, fui de trem para Santiago de Compostela.

Ruínas do Castelo de Tiebas
Ermita de Santa María de Eunate, um dos hits do Caminho Aragonês

Portal ao lado da Igreja São João Batista em Obanos sendo cruzado por peregrinos do Caminho Francês
Igreja do Crucifixo, século XII, em Puente la Reina

A famosa ponte que dá nome ao pueblo de Puente la Reina sobre o rio Arga

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