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5ª etapa –
Ruesta a Sangüesa (22,6 km)
Quarta-feira
– 06/06/2012
O Caminho
Aragonês a Santiago de Compostela guarda uma surpresa ao peregrino a partir de
Ruesta. Embora seja possível ter a prévia dimensão do estrago causado pelo
reservatório de Yesa – o que, infelizmente, não era o meu caso –, é exatamente
neste trecho do Caminho que o peregrino terá noção do impacto gerado pela obra,
que represou o Rio Aragão, inundou uma área de mais de 2.400 hectares, destruiu
plantações, expulsou moradores e sepultou vestígios da presença romana na
Península e trechos do Caminho de Santiago.
Apesar do
trágico contexto imposto pelo reservatório Yesa, minha passagem por Ruesta é
repleta de doces lembranças. Cheguei muito bem ao albergue, que funciona no
complexo medieval do castelo e da igreja de Santa María de Ruesta, hoje em
ruínas, e tive uma recepção calorosa do casal de hospitaleiros e a presença de
seus cães. Colocaram tudo a minha disposição, incluindo a ceia da noite e o
café da manhã do dia seguinte, e aceitei o pacote completo, praticamente
adivinhando o pueblo inexistente, hoje talvez resignado, praticamente dizimado
por Yesa, sobre o qual não ouvi referência... nem dos hospitaleiros, nem
durante a farta ceia, no reencontro com muitos peregrinos que estavam em Arrés,
muito menos no café da manhã.
Se os
peregrinos já estão sensibilizados ao problema, especialmente os espanhóis,
nada foi comentado – o que lamento. Ao voltar ao Brasil, após pesquisar mais
profundamente, tenho absoluta convicção de que o movimento “Yesa no”, cujos
efeitos se alastram por toda a Espanha, é uma luta também do peregrino – e
muitos, aliás, já se manifestaram solidários. Uma luta não apenas para remediar
o estrago que já fez – e que, caso seja aprovada sua ampliação, haverá mais
prejuízos ao traçado original do Caminho de Santiago, pois inundará, por
exemplo, o atual trecho de Artieda a Ruesta... –, mas especialmente pelos danos
que continua provocando ao meio ambiente.
Após o café
no albergue, iniciei naquela manhã de 6 de junho a quinta etapa do meu Caminho
Aragonês a Santiago de Compostela, programado para chegar a Sangüesa, distante
cerca de 22,6 quilômetros, prevendo apenas uma parada, em Undués de Lerda, após
12 quilômetros. Antes de partir, fiz uma sequência de fotos nas ruínas... e
iniciei a peregrinação por uma descida, da qual se captura outro ângulo do belo
cenário arquitetônico e sua harmonia com a natureza. Muito perto, em meio ao
bosque, está a Ermita de Santiago, românica, do século XI.
Pouco antes
de ser surpreendido pela grandiosidade do reservatório Yesa, vi e fotografei a
placa do Ministério do Meio Ambiente e Meio Rural e Marinho, do Governo da
Espanha...
Continuei e,
após uma breve subida, avistei Yesa – ainda sem compreender o tamanho da
encrenca que ela representa para o meio ambiente e para o patrimônio da
Humanidade. Um novelo que comecei a desenrolar ao pesquisar ainda mais os
pontos pelos quais havia passado e rever as fotos que fiz, como a placa citada,
que é dirigida aos velejadores, com um alerta sobre o mexilhão-zebra, e os
cuidados exigidos para navegar no reservatório da bacia do Ebro:
“Informar-se
sobre o tipo de navegação permitido; realizar o registro e autorização
pertinente em cada caso; acessar a água por pontos habilitados; desinfetar e
limpar o seu barco de acordo com o protocolo estabelecido”. E mais: “Quando
sair do reservatório aos rios da bacia é proibido navegar a motor desde o nascimento
do Ebro até Escatrón. Você poderá navegar a remo, mas sempre limpando e
desinfetando o seu barco”. Ao final, ameaça: “O cumprimento destas normas é
obrigatório (BOE nº 146, 19 de junho de 2007), sob sanção”.
Coisas do
progresso..., em troca da energia, uma série de estragos ao patrimônio
artístico, cultural... e, como prêmio extra, a invasão do mexilhão-zebra
(Dreissena polymorpha), um molusco de água doce e salobra, que se alimenta de
plâncton e matéria orgânica em suspensão e está incluído na lista da União
Internacional para a Conservação da Natureza, a International Union for
Conservation of Nature (IUCN), entre as 100 piores espécies exóticas invasoras
no mundo.
A batalha
tem sido intensa, mas, pela forma como o molusco de espalha por diversos rios
de Espanha, está longe de terminar.
Dados sobre
a invasão no Ebro, de setembro de 2001, projetam cerca de 500 mexilhões-zebra
por metro quadrado, com alta reprodutibilidade (cada adulto pode gerar 1,5
milhões por temporada), o que faz dele agente radical de mudança ecológica,
pois reduz a concentração de fitoplâncton na água e altera a cadeia alimentar
dos rios. Evitar a sua propagação para outros rios ibéricos é prioridade.
Se hoje
posso assegurar que o reservatório Yesa me preocupa, ele não me atormentou
durante o Caminho Aragonês a Santiago de Compostela – o que, avaliando de outro
modo, teve o seu lado positivo, pois permitiu que realizasse minha peregrinação
focado nas questões mais íntimas do meu encontro comigo mesmo, reflexões que só
o deserto..., o Caminho de Santiago é capaz de proporcionar. Reflexões sobre
cada passo, as dificuldades, o suor, o esforço, a energia sendo trocada com a
natureza, a expectativa, a gratidão. Caminhando, gravei um vídeo e deixei
registrado o epílogo: “pode cortar e saborear...”
Acho mesmo
que a frase sintetiza, ou pelo menos sintetizou naquele momento, minha terceira
peregrinação pelo Caminho de Santiago... A primeira, em 2009, pelo Caminho
Francês, a partir de Saint Jean Pied de Port, foi a descoberta. Mostrou a novidade,
a busca e a conquista da superação – afinal, são 800 quilômetros! –, muita
alegria, muita disposição... Já a segunda, em 2010, pelo Caminho Português, me
revelou a oportunidade de enfrentar dificuldades, a necessidade de cultivar a
paciência, o sentido de perdão – 240 quilômetros, com muitos desafios.
Agora, em
meio à terceira peregrinação, o Caminho Aragonês me transforma numa posição de
tranquilidade comigo; não tenho a veleidade de ter alcançado a perfeição, pois
sei que não sou perfeito, mas a conquista de algum ponto de equilíbrio, ou
achar que estou perto, ah... isso sim..., ao adquirir mais experiência e
amadurecimento físico e sobretudo espiritual. Daí, o epílogo: pode cortar e
saborear.
Continuo
andando e, após cerca de duas horas e meia, avisto minha primeira (e única)
parada: Undués de Lerda. De longe, o pueblo é belo, incrustado em meio a campos
agrícolas. As referências indicam que lá, em 1214, Francisco descansou durante
sua peregrinação a Santiago (*).
De perto,
Undués de Lerda fascina... e observo cada detalhe, ouvindo os sinos da Igreja
de San Martín de Tours. A construção de pedra é de final do século XVI e
destaca uma grande torre, aparentemente desproporcional para a dimensão da
Igreja, o que sugere uma função militar, tendo sido construída antes do templo.
Parei na
praça, dois gatos vieram circular entre meus apetrechos, espalhados para secar,
e passei a cuidar dos pés, conferi o estado da unha do dedão, roxa, as
bolhas... Comi as frutas que trazia, fui ao bar do albergue e saciei minha fome
com um bocadilho e café com leite.
Ao deixar o
pueblo, que possui cerca de 60 moradores, intrigado com o nome Undués de Lerda,
perguntei a um morador como ele teria surgido. Disse-me que na região havia
dois pueblos que desapareceram, um se chamava Undués, e o outro, Lerda. Com a
criação do novo pueblo, a população decidiu colocar o nome Undués de Lerda. “E
o que significa?”, insisti. E ouvi: “Ora, nada. Como Sevilha, ou qualquer outro
nome!”.
Segui meu
Caminho pela fronteira da Província de Zaragoza, uma das três da Comunidade
Autônoma de Aragão (as outras são Huesca e Teruel), e entrei na Província de
Navarra. Quase duas horas depois estava em Sangüesa.
(*) Em 2014, a marca dos oitocentos anos da peregrinação de Francisco, de Assis a Santiago de Compostela, foi amplamente comemorada com vários eventos em diferentes pontos do Caminho de Santiago.
O rico patrimônio de Sangüesa
Depois do
banho fui comprar protetores para os pés e conhecer Sangüesa, que pode ser considerada
um grande pueblo, com mais de 5.000 habitantes, e abriga um rico
patrimônio arquitetônico, com vários palácios e mansões, como o Palácio do
Príncipe de Viana, de estilo gótico, do século VII, hoje biblioteca, e o
Palácio de Vallesantoro, do século XVII, hoje Casa da Cultura.
E muitas
igrejas, como a de Santa María la Real, dos séculos XII e XIII, com sua
monumental torre octogonal, ícone do pueblo. A igreja foi declarada
Monumento Nacional em 1889, e se notabiliza por um magnífico portal em pedra,
onde é representado o Juízo Final, e o altar-mor da primeira metade do século
XVI, decorado em ouro. É considerada uma das mais importantes obras do estilo
românico na Europa, num momento de transição para o gótico.
A Igreja de
San Salvador, construída em estilo gótico pelos moradores do Distrito de
População, foi fundada por 12 cavaleiros de Sangüesa, no final do século XIII –
e está fechada desde 2001, aguardando restauração. No tímpano do portal está
representado o Cristo-juiz, com os braços levantados, mostrando as chagas da
Paixão. Está rodeado por dois anjos, que carregam os instrumentos do martírio:
a cruz, a coroa de espinhos, a lança e um pacote de pregos. As figuras
ajoelhadas representam a Virgem e São João, defensores da humanidade. Nos relevos
do umbral estão esculpidos episódios da ressurreição dos mortos, que formam um
cortejo de suplicantes, e cenas do Castigo dos Ímpios, com o demônio numa
fornalha de fogo ardente, que surge a partir da boca de um Leviatã.
O Convento
de Nossa Senhora de Carmen é construção dos séculos XIV a XVII e destaca seu
claustro gótico. Tem ainda o Convento de São Francisco, que teria sido
incentivado por Francisco em sua peregrinação a Santiago de Compostela, em
1214, e seria o primeiro convento franciscano da Espanha. E, claro, a Igreja de
Santiago, dos séculos XIII e XIV, com um altar-mor primoroso e uma bela
escultura colorida do Apóstolo em seu portal...
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