segunda-feira, 6 de junho de 2022

“Yesa no”, uma luta do peregrino

Represa de Yesa assombra o Caminho Aragonês

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

5ª etapa – Ruesta a Sangüesa (22,6 km)

Quarta-feira – 06/06/2012

O Caminho Aragonês a Santiago de Compostela guarda uma surpresa ao peregrino a partir de Ruesta. Embora seja possível ter a prévia dimensão do estrago causado pelo reservatório de Yesa – o que, infelizmente, não era o meu caso –, é exatamente neste trecho do Caminho que o peregrino terá noção do impacto gerado pela obra, que represou o Rio Aragão, inundou uma área de mais de 2.400 hectares, destruiu plantações, expulsou moradores e sepultou vestígios da presença romana na Península e trechos do Caminho de Santiago.

Apesar do trágico contexto imposto pelo reservatório Yesa, minha passagem por Ruesta é repleta de doces lembranças. Cheguei muito bem ao albergue, que funciona no complexo medieval do castelo e da igreja de Santa María de Ruesta, hoje em ruínas, e tive uma recepção calorosa do casal de hospitaleiros e a presença de seus cães. Colocaram tudo a minha disposição, incluindo a ceia da noite e o café da manhã do dia seguinte, e aceitei o pacote completo, praticamente adivinhando o pueblo inexistente, hoje talvez resignado, praticamente dizimado por Yesa, sobre o qual não ouvi referência... nem dos hospitaleiros, nem durante a farta ceia, no reencontro com muitos peregrinos que estavam em Arrés, muito menos no café da manhã.

Se os peregrinos já estão sensibilizados ao problema, especialmente os espanhóis, nada foi comentado – o que lamento. Ao voltar ao Brasil, após pesquisar mais profundamente, tenho absoluta convicção de que o movimento “Yesa no”, cujos efeitos se alastram por toda a Espanha, é uma luta também do peregrino – e muitos, aliás, já se manifestaram solidários. Uma luta não apenas para remediar o estrago que já fez – e que, caso seja aprovada sua ampliação, haverá mais prejuízos ao traçado original do Caminho de Santiago, pois inundará, por exemplo, o atual trecho de Artieda a Ruesta... –, mas especialmente pelos danos que continua provocando ao meio ambiente.

Após o café no albergue, iniciei naquela manhã de 6 de junho a quinta etapa do meu Caminho Aragonês a Santiago de Compostela, programado para chegar a Sangüesa, distante cerca de 22,6 quilômetros, prevendo apenas uma parada, em Undués de Lerda, após 12 quilômetros. Antes de partir, fiz uma sequência de fotos nas ruínas... e iniciei a peregrinação por uma descida, da qual se captura outro ângulo do belo cenário arquitetônico e sua harmonia com a natureza. Muito perto, em meio ao bosque, está a Ermita de Santiago, românica, do século XI.

Pouco antes de ser surpreendido pela grandiosidade do reservatório Yesa, vi e fotografei a placa do Ministério do Meio Ambiente e Meio Rural e Marinho, do Governo da Espanha...

Continuei e, após uma breve subida, avistei Yesa – ainda sem compreender o tamanho da encrenca que ela representa para o meio ambiente e para o patrimônio da Humanidade. Um novelo que comecei a desenrolar ao pesquisar ainda mais os pontos pelos quais havia passado e rever as fotos que fiz, como a placa citada, que é dirigida aos velejadores, com um alerta sobre o mexilhão-zebra, e os cuidados exigidos para navegar no reservatório da bacia do Ebro:

“Informar-se sobre o tipo de navegação permitido; realizar o registro e autorização pertinente em cada caso; acessar a água por pontos habilitados; desinfetar e limpar o seu barco de acordo com o protocolo estabelecido”. E mais: “Quando sair do reservatório aos rios da bacia é proibido navegar a motor desde o nascimento do Ebro até Escatrón. Você poderá navegar a remo, mas sempre limpando e desinfetando o seu barco”. Ao final, ameaça: “O cumprimento destas normas é obrigatório (BOE nº 146, 19 de junho de 2007), sob sanção”.

Coisas do progresso..., em troca da energia, uma série de estragos ao patrimônio artístico, cultural... e, como prêmio extra, a invasão do mexilhão-zebra (Dreissena polymorpha), um molusco de água doce e salobra, que se alimenta de plâncton e matéria orgânica em suspensão e está incluído na lista da União Internacional para a Conservação da Natureza, a International Union for Conservation of Nature (IUCN), entre as 100 piores espécies exóticas invasoras no mundo.

A batalha tem sido intensa, mas, pela forma como o molusco de espalha por diversos rios de Espanha, está longe de terminar.

Dados sobre a invasão no Ebro, de setembro de 2001, projetam cerca de 500 mexilhões-zebra por metro quadrado, com alta reprodutibilidade (cada adulto pode gerar 1,5 milhões por temporada), o que faz dele agente radical de mudança ecológica, pois reduz a concentração de fitoplâncton na água e altera a cadeia alimentar dos rios. Evitar a sua propagação para outros rios ibéricos é prioridade.

Se hoje posso assegurar que o reservatório Yesa me preocupa, ele não me atormentou durante o Caminho Aragonês a Santiago de Compostela – o que, avaliando de outro modo, teve o seu lado positivo, pois permitiu que realizasse minha peregrinação focado nas questões mais íntimas do meu encontro comigo mesmo, reflexões que só o deserto..., o Caminho de Santiago é capaz de proporcionar. Reflexões sobre cada passo, as dificuldades, o suor, o esforço, a energia sendo trocada com a natureza, a expectativa, a gratidão. Caminhando, gravei um vídeo e deixei registrado o epílogo: “pode cortar e saborear...”

Acho mesmo que a frase sintetiza, ou pelo menos sintetizou naquele momento, minha terceira peregrinação pelo Caminho de Santiago... A primeira, em 2009, pelo Caminho Francês, a partir de Saint Jean Pied de Port, foi a descoberta. Mostrou a novidade, a busca e a conquista da superação – afinal, são 800 quilômetros! –, muita alegria, muita disposição... Já a segunda, em 2010, pelo Caminho Português, me revelou a oportunidade de enfrentar dificuldades, a necessidade de cultivar a paciência, o sentido de perdão – 240 quilômetros, com muitos desafios.

Agora, em meio à terceira peregrinação, o Caminho Aragonês me transforma numa posição de tranquilidade comigo; não tenho a veleidade de ter alcançado a perfeição, pois sei que não sou perfeito, mas a conquista de algum ponto de equilíbrio, ou achar que estou perto, ah... isso sim..., ao adquirir mais experiência e amadurecimento físico e sobretudo espiritual. Daí, o epílogo: pode cortar e saborear.

Continuo andando e, após cerca de duas horas e meia, avisto minha primeira (e única) parada: Undués de Lerda. De longe, o pueblo é belo, incrustado em meio a campos agrícolas. As referências indicam que lá, em 1214, Francisco descansou durante sua peregrinação a Santiago (*).

De perto, Undués de Lerda fascina... e observo cada detalhe, ouvindo os sinos da Igreja de San Martín de Tours. A construção de pedra é de final do século XVI e destaca uma grande torre, aparentemente desproporcional para a dimensão da Igreja, o que sugere uma função militar, tendo sido construída antes do templo.

Parei na praça, dois gatos vieram circular entre meus apetrechos, espalhados para secar, e passei a cuidar dos pés, conferi o estado da unha do dedão, roxa, as bolhas... Comi as frutas que trazia, fui ao bar do albergue e saciei minha fome com um bocadilho e café com leite.

Ao deixar o pueblo, que possui cerca de 60 moradores, intrigado com o nome Undués de Lerda, perguntei a um morador como ele teria surgido. Disse-me que na região havia dois pueblos que desapareceram, um se chamava Undués, e o outro, Lerda. Com a criação do novo pueblo, a população decidiu colocar o nome Undués de Lerda. “E o que significa?”, insisti. E ouvi: “Ora, nada. Como Sevilha, ou qualquer outro nome!”.

Segui meu Caminho pela fronteira da Província de Zaragoza, uma das três da Comunidade Autônoma de Aragão (as outras são Huesca e Teruel), e entrei na Província de Navarra. Quase duas horas depois estava em Sangüesa.

(*) Em 2014, a marca dos oitocentos anos da peregrinação de Francisco, de Assis a Santiago de Compostela, foi amplamente comemorada com vários eventos em diferentes pontos do Caminho de Santiago.

Avistando Undués de Lerda, vestígios da presença de Francisco na célebre peregrinação de 1214


O rico patrimônio de Sangüesa

Detalhe do portal da Igreja Santa María la Real em Sangüesa

Não tive a oportunidade de conhecer a famosa hospitalidade do pequeno albergue do Convento das Filhas da Caridade, em Sangüesa, que estava lotado pelos peregrinos que saíram mais cedo de Ruesta, e me instalei no Hostal JP, cujo proprietário é fã do cantor Roberto Carlos... Está localizado após a ponte sobre o Rio Aragão; aliás, no início da etapa seguinte, a Monreal.

Depois do banho fui comprar protetores para os pés e conhecer Sangüesa, que pode ser considerada um grande pueblo, com mais de 5.000 habitantes, e abriga um rico patrimônio arquitetônico, com vários palácios e mansões, como o Palácio do Príncipe de Viana, de estilo gótico, do século VII, hoje biblioteca, e o Palácio de Vallesantoro, do século XVII, hoje Casa da Cultura.

E muitas igrejas, como a de Santa María la Real, dos séculos XII e XIII, com sua monumental torre octogonal, ícone do pueblo. A igreja foi declarada Monumento Nacional em 1889, e se notabiliza por um magnífico portal em pedra, onde é representado o Juízo Final, e o altar-mor da primeira metade do século XVI, decorado em ouro. É considerada uma das mais importantes obras do estilo românico na Europa, num momento de transição para o gótico.

A Igreja de San Salvador, construída em estilo gótico pelos moradores do Distrito de População, foi fundada por 12 cavaleiros de Sangüesa, no final do século XIII – e está fechada desde 2001, aguardando restauração. No tímpano do portal está representado o Cristo-juiz, com os braços levantados, mostrando as chagas da Paixão. Está rodeado por dois anjos, que carregam os instrumentos do martírio: a cruz, a coroa de espinhos, a lança e um pacote de pregos. As figuras ajoelhadas representam a Virgem e São João, defensores da humanidade. Nos relevos do umbral estão esculpidos episódios da ressurreição dos mortos, que formam um cortejo de suplicantes, e cenas do Castigo dos Ímpios, com o demônio numa fornalha de fogo ardente, que surge a partir da boca de um Leviatã.

O Convento de Nossa Senhora de Carmen é construção dos séculos XIV a XVII e destaca seu claustro gótico. Tem ainda o Convento de São Francisco, que teria sido incentivado por Francisco em sua peregrinação a Santiago de Compostela, em 1214, e seria o primeiro convento franciscano da Espanha. E, claro, a Igreja de Santiago, dos séculos XIII e XIV, com um altar-mor primoroso e uma bela escultura colorida do Apóstolo em seu portal...

Interior da torre octogonal da Igreja Santa María la Real em Sangüesa

Igreja de San Salvador em Sangüesa ainda aguarda restauração

Imagem de Santiago Peregrino no portal da Igreja de Santiago em Sangüesa

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