quinta-feira, 2 de junho de 2022

Será que deveria ter ficado em Jaca?

Monastério Real de San Juan de la Peña

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

2ª etapa - Villanúa a San Juan de la Peña (41,1 km)

Sábado – 02/06/2012

Sempre terei a dúvida se deveria ter encerrado em Jaca a segunda etapa de meu Caminho Aragonês! Capital do Reino de Aragão até 1097, hoje integrante da Província de Huesca, da Comunidade Autônoma de Aragão, Jaca está estrategicamente localizada no sopé dos Pirineus; e naquele sábado, 2 de junho, seria uma excelente opção para descansar e me preparar para o que seria o desafio seguinte, de me afastar da rota tradicional do Caminho Aragonês e conhecer o fantástico Monastério de San Juan de la Peña, que fascina com sua história e lendas. Confiante, decidi continuar caminhando...

Diz a placa que sinaliza a chegada a Jaca: “Es precisamente en Jaca donde el Camino de Santiago cambia bruscamente su dirección norte-sur, impuesta por la hidrografia para tomar definitivamente rumbo oeste, Camino de Compostela”. E acrescenta: “Aqui, en esta ciudad restaurada a fines del siglo XI y a la que el rey Sancho Ramirez dotó de sede diocesana y fueros atractivos, descansaban de la dura etapa pirenaica los viajeros procedentes del centro y sur de Europa”.

Até seria o mais lógico ficar em Jaca, pois vinha de Villanúa e já havia caminhado cerca de 14 quilômetros. Mas, efetivamente, esta não foi minha escolha; e, com absoluta certeza, não me arrependo do desafio aceito, da decisão tomada – que alinhavei desde minha preparação ao Caminho, reforcei durante o primeiro dia da peregrinação, iniciada em Somport, e consolidei na noite anterior, ao descansar em Villanúa. Assim, ao iniciar a caminhada naquela manhã já estava certo que terminaria em San Juan de la Peña. Só não sabia o quão difícil seria o Caminho...

Saí do albergue de Villanúa por volta das 8 horas e 40 minutos, pela variante da esquerda do pueblo. Iniciei esta segunda etapa junto com o espanhol Manolo; e, talvez, entretidos com o bom papo ou devido à sinalização de várias trilhas, acabamos indo para a estrada (N330). Discordei em retomar a variante da esquerda e, acelerando o passo, continuei pela estrada – o que foi uma decisão correta, pois em dois ou três quilômetros cheguei ao desvio, à direita, que indicava San Adrián, Aratorés y Borau; e avisei Manolo, que vinha atrás, acenando com o lenço verde e amarelo que estava em meu bordão... e que viria a perdê-lo minutos depois... Segui por uma trilha bem arborizada até alcançar o pueblo de Castelo de Jaca, onde tomei um café com leite, pago pelo amigo Manolo.

Tempo excelente, belas paisagens, em alguns trechos o Caminho reencontra o rio Aragão, muitas fotos, momentos de reflexão; e, após cerca de duas horas de caminhada, cheguei a Jaca. Passava um pouco do meio dia. Como estava me sentindo muito bem, em vez de procurar albergue, localizei uma tenda de frutas, o que no Brasil chamamos de quitanda, e comprei duas laranjas, uma pera, uma maçã e, como a única banana estava machucada, a dona não me cobrou a fruta. No supermercado próximo, comprei água e Aquarius, e parei para fazer um lanche na pequena praça em frente às muralhas medievais da Cidadela – a fortaleza em formato pentagonal, rodeada por um fosso, que foi construída no século XV para proteger Jaca das invasões francesas; e que hoje abriga um Regimento de Montanha.

Aproveitei para conferir o quanto teria de caminhar para chegar ao Monastério San Juan de la Peña e, apesar das informações pouco esclarecedoras dos guias – afinal, o monastério parece não fazer parte do Caminho! –, conclui que, após sair de Jaca (segundo o guia Rother), deveria caminhar cerca de 5 ou 6 quilômetros e, na altura da “fábrica de pretensados”, literalmente, protendido, ou pré-moldados, entrar à esquerda, em direção a Atarés – me desligando do Caminho.

Pela ilustração desse guia – relativamente mais preciso que o guia de El País/Aguilar –, o trecho seguinte seria um pouco maior, ou seja, entre 8 a 10 quilômetros. E, pela mesma ilustração, de Atarés até San Juan de la Peña, o percurso seria ainda maior, em torno de 10 a 12 quilômetros... Ou seja, para concluir meu segundo dia de peregrinação ainda faltavam de 23 a 28 quilômetros?!?!?

Se eu fosse considerar os 14 quilômetros de Villanúa a Jaca, totalizaria neste dia de 37 a 42 quilômetros, uma maratona!!! “Tudo bem”, admiti. Outra opção seria seguir pelo Caminho Aragonês até o Hotel Aragón, entrar à esquerda em direção a Santa Cruz de la Serós. Aparentemente, seria a mesma distância; mas me incomodava o fato de ter que usar este percurso para ir a San Juan de la Peña e depois utilizá-lo novamente para retornar ao Caminho.

Alimentado, segui para a Catedral de San Pedro de Jaca, apontada como hito, ou sinal, nº 2, no programa Hitos del Camino de Santiago (num total de 25) – o hito nº 1 é o Monastério Hospital de Santa Cristina de Somport, destacado no post anterior, sobre a primeira etapa do Caminho Aragonês.

A Catedral é reconhecida como uma joia do românico espanhol, fruto de várias etapas construtivas ao longo de mais de um século, com início no final do século XI, 1077, por iniciativa do rei Sancho Ramírez, e apontada como peça chave do Camino Aragonês. Até às duas horas da tarde percorri os ambientes da igreja, seu rico museu, o claustro. Ao final, retomei o Caminho, buscando como referência a fábrica de pretensados.

No blog e nos dois primeiros volumes de “Pedras do Caminho” comentei que, durante a caminhada, o peregrino recebe sinais; daí a importância de estar sempre atento às pedras do caminho, às árvores, aos bichos, outros peregrinos, enfim a todos os signos que o cercam, pois são muitos – embora em número muito menor do que os que proliferam na confusão urbana. Daí, também, a importância, pelo menos para mim, de caminhar só, concentrado, forte, preparado para... qualquer eventualidade. Foi com este ânimo que avistei, naquele sábado, do outro lado da pista, a fábrica fechada, e, ao mesmo tempo, no meu lado da pista, um homem... Passei por ele, continuei a caminhar e parei em frente a um pequeno poste de madeira, meio inclinado, com quatro placas: “Atarés, San Juan de la Peña”, “Santa Cília”, “Jaca” e “Puente la Reina”.

“Cheguei ao ponto”, pensei. Fiz a foto e, ao olhar para trás, o homem estava parado, me observando. Vestia roupas de peregrino, trazia uma pequena mochila às costas e, nas mãos, em vez de um bordão, carregava uma lata de tinta amarela e um pincel... Seu nome, Melchior. Instintivamente, nos aproximamos. Identificou-se como membro da Associação dos Amigos de Peregrinos de Jaca e disse que cumpria a missão de sinalizar o Caminho. Contou que acabara de chegar de San Juan de la Peña, o que significava que todo o percurso que eu iria fazer estava perfeitamente identificado com flechas amarelas, um dos símbolos do Caminho de Santiago. Considerei um bom sinal e nos despedimos. Ele, em direção a Jaca, me desejou “buen camino”; eu, com destino a Atarés, agradeci “muchas gracias”.

A síntese das dificuldades desse trecho de 18 a 22 quilômetros do Caminho Aragonês, quando durante quase três horas lutei pela minha sobrevivência, contei no post do dia 3 de junho passado, “Sonhando com o Santo Graal”, escrito ainda sob a forte emoção da experiência. Mas vale a pena fazer outros registros...

O primeiro trecho, de 8 a 10 quilômetros, é exuberante. Repleto de subidas e descidas, mas incrivelmente belo, como deve ser o paraíso. Enfrentei momentos de extremo cansaço, e numa das vezes tirei a mochila de minhas costas, me estiquei no chão e registrei numa foto... Começava a entender a trilha solitária e aos poucos ia me convencendo que não encontraria mais ninguém.

Depois de muita expectativa cheguei a Atarés. Tinha certeza que, se fosse preciso, estava preparado para caminhar outro trecho semelhante – depois, é claro, de tomar uma xícara de café com leite e comer alguma coisa... O pueblo, contudo, se resume a cerca de 30 casas e nenhum estabelecimento comercial. Apenas uma bica pública de água pura, gelada, que usei para encher as duas garrafas de plástico que carregava e que estavam vazias. Ao conversar com alguns moradores que me cercaram enquanto descansava, constatei que não teria qualquer apoio até San Juan de la Peña. A única opção era seguir em frente. E foi o que fiz.

Quando deixei Atarés, às 17 horas e 56 minutos, tirei duas fotos: de frente, congelei o que me esperava, ou o que achava que me esperava; virei de costas, disparei e dei adeus ao pueblo.

Foram mais 10 a 12 quilômetros de subidas e descidas e muita luta, comigo mesmo, para vencer o cansaço, recompor minha respiração, o senso de direção na busca dos sinais que Melchior garantira que havia feito. Muitas subidas íngremes pareciam escadas. E subiam, subiam, subiam... Hoje, recorrendo a mapas e informações sobre o lugar, não está claro como o trecho é difícil. Olhava sempre para o meu relógio, passava das 19 horas: dava passos durante 1 ou 2 minutos, e descansava 3, 4 minutos, até sentir o coração acalmar; sorvia um gole d’água e voltava a caminhar. A mochila não pesava apenas 10 quilos, com certeza não eram apenas 10 quilos... Sem tirá-la, algumas vezes sentei numa pedra e esperei me recuperar; em outras, fiquei em pé, com as pernas abertas, apoiado no bordão... Rezei muito para não perecer ali, sozinho. Pensei em largar tudo e subir... Mas, e aí? Teria que retornar depois... “Eu consigo, eu consigo”, repetia para mim, para me convencer de que, afinal, eu conseguiria.

Ficava aliviado quando a subida se tornava mais suave e podia enfim caminhar um pouco. Ao mesmo tempo, começava a ficar preocupado, pois, embora desde Lourdes os serviços de meteorologia já haviam alertado para a mudança no tempo, eu agora escutava, sim, trovões, anunciando chuva... Até que, por volta das 20 horas e 15 minutos, ainda dia, mas com o céu encoberto por nuvens escuras, a trilha encerrou e cheguei a uma estrada de asfalto.

Livrei-me da mochila, do bordão, deitei no asfalto morno e agradeci muito, a Deus, a Maria, a Santiago, a mim mesmo, minha família, amigos, enfim, todas as pessoas amadas que passavam pela minha cabeça. E raciocinei: “Não preciso mais subir... caminhar no asfalto é muito mais fácil... deve estar perto... estou salvo...” Agradecia e comemorava, pouco me importando com o barulho dos trovões, quando senti as pernas formigarem e tive a certeza de que, se tentasse ficar em pé, não conseguiria... “Sim, caminhar no asfalto é muito mais fácil, mas e se eu não puder caminhar?!??!”.

A batalha era, efetivamente, contra mim, contra meus pensamentos, e precisava resgatar a confiança no meu preparo físico e mental. Lembrei que carregava algumas barras de proteína, peguei uma e, lentamente, passei a mastigá-la. Fui me aquietando e voltei a sentir as pernas... Percebi os pingos da chuva e, antes de voltar a caminhar, coloquei a capa na mochila e a capa sobre o meu corpo. Caminhei pelo asfalto, devagar, pelo menos mais uns 30 minutos, sem se importar com a chuva que, rapidamente, parou. Mesmo assim permaneci de capa...

Revendo agora os arquivos de fotos, constatei que não tenho imagens desse trecho, entre Atarés a San Juan de la Peña... Sei que este texto poderá auxiliar o leitor a ter uma ideia do que passei, mas dificilmente mostrará o que aconteceu. Quem sabe um dia, como fizeram os antigos, tentarei desenhar como me pareceram aqueles momentos...

Finalmente, avistei o Monastério Novo de San Juan de la Peña: eram 20 horas e 50 minutos, e começava a escurecer. Peguei então a máquina, fiz duas fotos e um pequeno filme... Para quem havia dado os primeiros passos às 8 horas e 40 minutos, meu segundo dia de peregrinação estava terminando, após mais de 12 horas...

Bosque de Villanúa
Cidadela de Jaca, a fortaleza construída no século XV em formato pentagonal

Interior da Catedral de San Pedro de Jaca

Monastério Novo de San Juan de la Peña

Agnus Dei

A peregrinação a Santiago de Compostela é demonstrada, ao chegar à Catedral de Santiago, com apresentação da credencial do peregrino. É neste documento que deverão ser impressos, dia após dia, os selos dos albergues, templos, enfim, dos locais por onde o peregrino passou e que comprovarão a efetiva peregrinação, o que garantirá que o escritório de peregrinações da Catedral emita a Compostelana – o diploma que assegura a veracidade de sua peregrinação, a pé, de bicicleta ou a cavalo, e por um trecho de pelo menos os últimos 100 quilômetros até Santiago de Compostela...

Em outros tempos, conforme revela o escritor Bizén d’o Rio Martínez, a passagem do peregrino por um templo ou santuário mariano lhe dava o direito de obter um speculae, uma prova no formato de uma medalha de chumbo. Ao contrário do selo, que hoje é impresso na credencial, a speculae era costurada em sua roupa. Afirma Bizén: “Seguindo os exemplares que conhecemos, todos têm uma forma pentagonal, feita pela soma de retângulo e triângulo, dando-lhe na posição vertical o formato de uma capela, tendo nos quatro cantos do retângulo, ou saindo destes, pequenas alças para que pudessem ser costurados na roupa ou colocados juntos para formar um colar”.

O pesquisador detalha que a medalha estampava uma imagem da lenda ou invocação do santuário ao qual pertencia. No caso do monastério, o speculae apresentava a imagem do “Agnus Dei”, o Cordeiro de Deus, e o recebiam os peregrinos que faziam este trecho do Caminho de Santiago, desde o Monastério de Montserrat, ou aqueles que se desviavam do Caminho Aragonês, vindos da França. O simbolismo do Agnus Dei pode ser deduzido das orações usadas em épocas diferentes, que destaca sua natureza protetora contra os perigos das tempestades, doenças, incêndios, inundações, e também das peregrinações. Inclusive, a fabricação de falsificações, e até mesmo a pintura ou decoração de genuínos Agnus Dei, foi proibida por várias Bulas Papais. Hoje, o Agnus Dei está no selo oferecido aos peregrinos que passam pelo Monastério Real de San Juan de la Peña – como o que está na minha credencial.

Salão do Monastério Real de San Juan de la Peña

Na origem do Reino de Aragão

O surgimento do Monastério Velho de San Juan de la Peña continua sendo um grande mistério, em meio a informações que, com maior ou menor precisão, confundem detalhes históricos com relatos impressionantes, como a contada pelos guias oficiais do complexo... Diz a lenda, repetem eles, que um jovem nobre de nome Voto caçava nas cercanias do lugar quando avistou um cervo. Ao correr atrás da presa, despencou com seu cavalo no precipício, mas, milagrosamente, o animal caiu suavemente na terra. São e salvo no fundo do barranco, viu uma pequena cova na qual descobriu uma ermida dedicada a São João Batista e, no interior, o cadáver de um ermitão chamado João de Atarés. Voto retornou a Zaragoza, vendeu todos os seus bens e, juntamente com o irmão Félix, voltaram à cova e iniciaram uma vida eremítica.

A lenda é interpretada pelo escritor Bizén d’o Rio Martínez, em texto publicado no informativo da Hermandad de San Juan de la Peña, em dezembro de 2007: “El encuentro del cuerpo incorrupto de Juan de Atarés debe de ser interpretado como muestra de que la cueva está impregnada de inmortalidad, y como lugar de inmortalidad será transmitido a través de los siglos, mediante ese museo de la muerte que son sus panteones, compuestos por el Real, de Nobles, monjes y de toda clase de personas que hacen donaciones, voto, promesas y entregas para ser enterrados en este sagrado recinto”.

No contexto da origem do Reino de Aragão, o Monastério tem importância fundamental. Teria ocorrido no local uma reunião entre guerreiros cristãos e os ermitães Voto e Félix, que decidem por aclamação nomear como seu líder Garcí Ximénez, que os conduziria à batalha para reconquistar as terras de Jaca e Aínsa, ocupadas pelos muçulmanos, um episódio que ficou conhecido como o milagre da aparição da Cruz del Sobrarbe, no alto de um carvalho.

Reinando em Pamplona, García Íñiguez e Galindo Aznarez I, conde de Aragão, passaram então a favorecer o Monastério. O rei Garcia Sanches I concedeu aos monges direito de jurisdição, e seus sucessores, até Sancho, o Grande, continuaram esta política de proteção. Ali passou seus primeiros anos San Íñigo. É no reinado de Sancho I que o Monastério se torna panteão dos reis de Aragão.

Esse Panteão Real está no piso superior do Monastério, onde durante cinco séculos foram enterrados monarcas navarros que reinaram em Aragão, os primeiros condes aragoneses e os três primeiros reis da dinastia ramirense, Ramiro I, Sancho Ramires e Pedro I, juntamente com suas esposas. O panteão ocupa as dependências da antiga sacristia da igreja alta, que data do século XI, e foi reformado por Carlos III, em 1770, seguindo as indicações de Dom José Nicolás de Azara e do conde de Aranda, que quis ser enterrado no átrio. A reforma só afetou a decoração, permanecendo os sepulcros no mesmo lugar. Levantou-se diante deles uma parede na qual se colocaram lâminas de bronze com as inscrições correspondentes, distribuiu-se pela sala uma profusão de estuques e mármores, colocando na parede fronteira uns medalhões com relevos que representam cenas de lendárias batalhas.

O Monastério é cenário da lenda do Santo Graal, que ali teria permanecido de 1071 a 1399, depois de passar por diversas localidades, como a cova de Yebra de Basa, San Pedro de Siresa, igreja de San Adrián de Sásabe, San Pedro de la Sede Real de Bailo, a Catedral de Jaca. A necessidade de atrair os peregrinos a Santiago de Compostela, que passavam por Jaca, teria sido o motivo para que nele ficasse a relíquia. Depois de um breve período em Barcelona, em 1399, o rei Martim I levou o cálice sagrado ao Palácio da Aljafería, em Zaragoza, onde permaneceu por mais de 20 anos. Posteriormente, foi levado à Catedral de Valência, onde está até hoje (*).

(*) Em abril de 2014, cientistas espanhóis divulgaram estudos que garantem que o verdadeiro Santo Graal foi localizado na Basílica de São Isidoro, em León.

Réplica do Santo Graal no Monastério Real de San Juan de la Peña

Histórias, lendas, mistérios em San Juan de la Peña

O cansaço de mais de 12 horas de peregrinação no sábado, 2 de junho, me obrigou a permanecer mais um dia no hotel do Monastério Novo de San Juan de la Peña, só retomando o Caminho Aragonês na segunda-feira, 4 de junho. Afinal, cheguei à planície de São Indalécio quando as atividades do conjunto histórico-artístico estavam encerrando, ou seja, só (e como é muito...) havia visto a bela fachada da Igreja do Monastério, que fica a mais de um quilômetro distante do Monastério Velho ou Real, e conhecer detalhes das preciosidades levaria (e continua levando...) muito tempo, tamanha é a riqueza do patrimônio.

Sim, a decisão de permanecer mais um dia descansando era acertada, pois, da mesma forma que o caminho de ida havia sido penoso, não tinha dúvidas de que o retorno à rota tradicional, via Santa Cruz de la Serós, exigiria ânimo, força, fé – virtudes cultivadas e disseminadas por séculos por San Juan de la Peña, que tem o Grifo como um de seus símbolos; este animal fantástico, criatura lendária com cabeça e asas de águia e corpo de leão: juntos, o Rei do Céu e o Rei da Terra! Além disso, refletia (e continuo refletindo...) sobre os motivos que teriam me conduzido com segurança a San Juan de la Peña... Pesquisando sobre o que se convencionou chamar de rotas tangenciais, li textos que projetam algumas reflexões.

Afirma o escritor espanhol Bizén d’o Rio Martínez: “A crença na eficácia da intercessão dos santos para o perdão dos pecados foi algo generalizado que se arraigou lentamente, fazendo que, imperceptivelmente, à peregrinação com um objetivo específico, ou seja, Santiago de Compostela, fosse adicionada uma rota tangencial, que levava o peregrino a visitar, às vezes por devoção e outras por obrigação, como no caso dos prisioneiros, um famoso monastério ou santuário, buscando a distância e a dificuldade de acesso...”.

O autor cita, como exemplos mais conhecidos no Alto Aragão, que alguns peregrinos continuam a se desviar da rota tradicional para venerar relíquias, uma Virgem, como Nossa Senhora de la Peña, em Aniés; as relíquias de São Demétrio, em Loarre; Virgem de Casbas de Ayerbe; São Martin, em Riglos; o Santo Graal e o corpo de São Indalécio, em San Juan de la Peña; relíquias de São Valero e São Vicente, em Roda; Virgem de Fabana e Santuário de São Cosme e São Damião, em Panzano; Monastério de São Martinho de Corazas, em Rodellar; São Martin de la Val d’Onsera, na Serra de Guara; São Caprasio, em Alcubierre; Santa Marina, em Boltaña; São Vitoriano, em Los Molinos; a arca santa com os restos de São Urbez, em Nocito; os santuários de Santa Maria la Bella, de Castejón; Santa Maria, em Podium de Barbastro; ou Santa María la Blanca, de Berbegal...

Ops! Eu nada sabia sobre São Indalécio (seria mais um motivo, oculto, de estar ali?). É o mesmo Bizén d’o Rio Martínez quem explica sobre o discípulo de Santiago... Para compreender a conexão desta lenda, ele recorda que Santiago, filho de Zebedeu e irmão de João, foi enviado à Espanha para pregar o Evangelho. Nessa tarefa, Maria teria aparecido a Santiago sobre uma coluna de mármore apoiada por anjos. Este pilar ficaria em Zaragoza e em torno dele Santiago teria construído uma capela dedicada à Mãe de Deus. Esta antiga devoção mariana e sua conexão com Santiago é confirmada na lenda de Santa Engrácia e as perseguições de Décio e Diocleciano, ocorridas na segunda metade do século III, citadas por Prudêncio em seu “Peristephanon”, um livro sobre as coroas de mártires. A lenda apresenta Santiago, depois de ter percorrido o Norte e Centro de Espanha, descansando uma noite junto ao rio Ebro, em companhia de sete discípulos que o acompanhavam e posteriormente se encarregaram de pregar na Espanha, chamados os Sete Varões Apostólicos: Teodoro, Tesifonte, Cecílio, Eufrásio, Hesíquio, Torcuato e Indalécio.

Conta-se que durante o reinado de Sancho Ramirez, em Aragão, o abade de San Juan de la Peña, D. Sancho, viaja a Roma em nome do monarca, e nesta cidade Gregório VII se refere a São Indalécio e aos Varões Apostólicos, expressando sua preocupação e interesse pelo lugar onde se encontram os restos mortais do discípulo de Santiago, na antiga cidade de Urci, em local desconhecido. Ao retornar a sua abadia nos Pirineus, D. Sancho passa a buscar pelos restos do santo e sua transferência para o Monastério.

Sobre a translação do corpo deste discípulo de Santiago, Bizén d’o Rio Martínez cita frei Bernardino A. Echeverz, que se baseia em texto de 1084, escrito em latim, pelo monge Ebretmo, da Ordem de Cluny (considerada sucessora da Ordem de São Bento...), preservado nos arquivos de San Juan de la Peña, que conta como os restos de São Indalécio chegaram ao Monastério, em 28 de março de 1084, na festa de Quinta-Feira Santa, sendo recebidos na planície que teria o nome de São Indalécio, pelo rei Sancho Ramirez, seu filho Pedro, o abade D. Sancho, comunidade religiosa, nobres e pessoas dos pueblos vizinhos. Sob o canto do “Te Deum”, houve uma procissão até o Monastério, acontecendo o primeiro milagre com a cura do braço lesionado do abade.

O corpo foi colocado na igreja do monastério e trancado numa urna forrada de prata e cravejada com pedras, que seria destruída pelas chamas no incêndio de 1494, permanecendo intactos os restos sagrados, que foram colocados numa urna simples. Até que, em 15 de julho de 1735, foram transferidos para uma arca de prata esmaltada em ouro, que se encontra no altar-mor da Catedral de Jaca – onde também estive...

No meu caso, até aquele momento sonhava apenas com o Santo Graal – como escrevi na ocasião... Dormi e acordei descansado, com disposição para explorar San Juan de la Peña; e, claro, constatei que tinha bolhas nos pés. Tratá-las, contudo, foi como polir troféus e agradecer cada passo dado no dia anterior. Contabilizava que a estadia não seria econômica e pensava como seria bom se fossem construídas instalações mais adequadas ao modo peregrino, pela importância em passar por este ponto – ainda que naquele momento fosse impossível compreender tudo o que estava acontecendo, ou pudesse refletir sobre toda a simbologia que envolve San Juan de la Peña. Com muita paz, apenas agradecia, e agradecia, e contemplava, e agradecia... como a me preparar para uma magnífica iniciação, sem data para terminar, sobre um aprendizado enorme, comparável à rocha sob a qual foi edificado o Monastério Real e que mistura história, lendas, mistérios... sobre os quais continuo a me aprofundar e, ao mesmo tempo, passo a compartilhar.

O Monastério de San Juan de la Peña está localizado numa região protegida dos Pirineus, na Comunidade Autônoma de Aragão, Província de Huesca, e que envolve o Monte Oroel, a emblemática montanha que se destaca na geografia e rica biodiversidade de Jaca – que foi capital do Antigo Reino de Aragão.

O conjunto histórico-artístico inclui o Velho e o Novo Monastério de San Juan de la Peña, duas edificações que foram restauradas e que são apenas parte das que existiram e que testemunham as sucessivas expressões artísticas de diversas épocas, em especial do românico (séculos XI ao XIII), mostrado na arquitetura, pintura e escultura; e se completa com as igrejas de São Caprásio e de Santa Maria, num pueblo próximo, em Santa Cruz de la Serós, ambas do período românico.

O Monastério Velho de San Juan de la Peña é coberto pela enorme rocha que lhe dá o nome e foi construído em etapas, a partir do século X, servindo a princípio como refúgio de eremitas, até a criação de pequeno centro monástico dedicado a São João Batista. Arruinado ao fim daquele século, foi reaberto no início do século seguinte com o nome de San Juan de la Peña, por Sancho, o Grande, de Navarra.

Ao longo do século XI o centro se ampliou com novas construções e se converteu em panteão de reis e monastério predileto da monarquia aragonesa, que o dotou com inúmeros bens.

A construção de maior importância tem início no ano 1026 por iniciativa de Sancho, o Grande. Em 1071 o rei Sancho Ramírez cede o conjunto aos monges da Ordem de Cluny e favorece sua reforma. Uma data significativa é 22 de março de 1071, quando o Monastério assistiu à introdução na Península Ibérica do rito litúrgico romano, seguido em toda a igreja do Ocidente, que pôs fim ao antigo rito hispano-visigótico. Neste período levanta-se o conjunto que hoje existe.

A reforma beneditina de Cluny não paralisou a construção de um claustro que se finalizaria no começo do século XII.

No seu interior, conforme tive a oportunidade de conhecer, se destacam a igreja pré-românica, as pinturas de São Cosme e São Damião, do século XII, o Panteão dos Nobres, a igreja superior, consagrada em 1094, a capela gótica de São Victoriano, o magnífico claustro românico, o Panteão Real, de estilo neoclássico, erguido no final do século XVIII.

Uma das atrações do claustro românico são os capitéis das colunas, elaborados no final do século XI por um autor anônimo, que desenvolveu um conjunto de cenas bíblicas, onde aparecem, entre outras, o Anúncio aos pastores, a Natividade, a Anunciação, a Epifânia, o Batismo e a Circuncisão de Jesus, a Última Ceia, episódios sobre Caim e Abel, a Criação de Adão e Eva, assim como sua Reprovação e posterior condenação ao trabalho. Também há motivos geométricos e vegetais, com pergaminhos.

O mestre anônimo só teria elaborado os capitéis para duas alas do claustro, já que na segunda metade do século XII o monastério entrou em decadência, acentuada no período seguinte e se estendendo no século XIV.

As dificuldades financeiras, aliadas à perda do poder religioso, deterioraram as construções, que também sofreram incêndios devastadores. O último deles, em 1675, durou três dias e inviabilizou seu funcionamento, exigindo a construção do Monastério Novo, em lugar próximo, sobre uma grande rocha, conhecido como planície de São Indalécio.

A implantação do novo monastério teve início em 1676 e, ao longo das obras, até os primeiros anos do século XIX, os monges tiveram assessoria de muitos profissionais, como o arquiteto de Zaragoza, Miguel Ximenez, que fez do conjunto exemplo da evolução da arquitetura monástica na Idade Média, pela simetria, multiplicação dos claustros e organização, apesar de o projeto original nunca ter sido realizado em sua totalidade.

A fachada da igreja é um dos aspectos mais interessantes do monastério barroco. Destaca uma exuberante decoração vegetal, com diferentes tipos de flores, folhas e caules, e formas figuradas, como cabeças de puttis e de anjos, com escudo de armas na parte superior. Na porta central está representado São João Batista; à esquerda, São Indalécio, que foi discípulo de Santiago e que deu nome à planície onde está o Monastério; e à direita, São Bento, fundador da ordem monástica que se professava em San Juan de la Peña.

As dependências foram abandonadas em 1835 e desde então o edifício passou a deteriorar-se progressivamente.

Foi preciso chegar a um lamentável estado de ruína para, em nosso século, o Governo de Aragão iniciar uma profunda restauração, com investimento de 25 milhões de euros, recuperando o edifício principal e criando o Centro de Interpretação do Reino de Aragão, o Centro de Interpretação do Monastério de San Juan de la Peña e um hotel quatro estrelas, pertencente à Red de Hospederías de Aragão.

Sistema hidráulico em pedra no Monastério Novo

Pinhas e folhas na área dos Monastérios de San Juan de la Peña

Nenhum comentário:

Postar um comentário