Texto abaixo foi escrito há 10 anos...
A passagem
por Arrés é a marca mais profunda de minha peregrinação pelo Caminho Aragonês a
Santiago de Compostela, neste final de Primavera europeia. No tempo, ela
aconteceu a partir das 19 horas e 20 minutos da segunda-feira 4 de junho, ainda
um final de tarde, com muito sol, quando avistei os telhados das casas do
pequeno pueblo, e se prolongou até as 8 horas e 38 minutos do dia seguinte,
quando a hospitaleira Piedad se despediu de mim, acenando da porta do albergue
Hospital de Peregrinos. Já no coração, a passagem ainda busca palavras e
sentimentos que possam traduzir o que representou o encontro fraterno entre 13
peregrinos e duas hospitaleiras.
Arrés está
isolada no Caminho Aragonês e, antes de decidir o seu acesso, o peregrino tem a
opção de descartá-la, seguindo direto para Artieda. Se estiver cansado, olhará
a subida e é possível que a evite. Quem encarar o desafio, contudo, não terá
motivo de arrependimento. É mais ou menos o que alerta o guia de El
País/Aguilar: “El pueblo queda apartado del Camino, por ló que no tienen que
entrar quienes no vayan a hacer noche em él. Los que hayan decidido quedarse
encontrarán uma pequeña localidad em la que el refugio de peregrinos abierto
por la Federación de Asociaciones del Camino hace buena aquella máxima de
‘pueblo pequeño, hospitalidad grande’”.
Diria, a bem
da verdade, que a hospitalidade é enorme! Aliás, é uma hospitalidade pura,
irradiante, que contagia os peregrinos e anima todos a buscar uma forma de
ajudar, colaborar, enfim, fazer o melhor – e fazer o melhor tem muita importância
quando se está entre amigos! –, para que o encontro seja coroado de harmonia,
carinho, respeito... ou seja, todas as virtudes que o espírito do Caminho de
Santiago é capaz de proporcionar.
Essa energia
senti logo ao entrar no pueblo e ver a placa “Hospital de Peregrinos”. Estava
procurando albergue, mas precisando mesmo de hospital, pois naquele dia havia
retomado a peregrinação... Explico: o início de minha peregrinação foi em 1º de
junho, sexta-feira, de Somport a Villanúa, um trecho que apresenta divergências
de extensão entre os guias El País/Aguilar, com 15,9 km, e Rother, com 19,2 km.
Apesar de compreender o começo da travessia dos Pirineus, para mim o maior o
impacto viria no dia seguinte, sábado 2, ao decidir pela segunda etapa do
Caminho o trajeto entre Villanúa a San Juan de la Peña, algo em torno de 25 ou
30 km. Seria uma caminhada simples não fossem as dificuldades de dois montes,
passando por Atarés, com subidas muito íngremes. O esforço foi tamanho que,
tendo concluído a etapa por volta das 9 horas da noite, após 12 horas de
peregrinação, seria impossível tentar o retorno ao Caminho – ou mesmo tomar um
táxi, como o próprio guia Rother sugere ao peregrino que quer conhecer San Juan
de la Peña. Decidi então permanecer no hotel do Monastério Novo e aproveitei
todo o domingo 3 para me recuperar e conhecer as duas instalações, do Novo e do
Monastério Real.
Assim é que,
ao final do meu Caminho Aragonês, contabilizei oito dias no Caminho, sendo sete
dias de peregrinação.
Na
segunda-feira 4, pois, retomei a caminhada, descendo de San Juan de la Peña a
Arrés – uma extensão estimada em mais de 21,6 km. Escolhi o trecho que passa
por Santa Cruz de la Serós, com a expectativa de ficar em Santa Cília de Jaca,
um percurso de 12 km. Cheguei por volta das 14 horas e no albergue de Santa
Cília conheci o francês Igor, que me disse que o hospitaleiro deveria chegar
após as 16 horas.
Tomei fôlego
e com disposição resolvi continuar – talvez até Puente la Reina de Jaca, ou
seja, mais 6,2 km, ampliando a etapa para mais de 18 km. Ao chegar nesse
pueblo, como ainda estava com energia suficiente, passei na farmácia para
comprar protetores contra as bolhas dos pés e segui adiante, até Arrés, ou mais
3,4 km (totalizando 21,6 km) – sem me importar em subir o morro. Juro que não
tinha observado a convite velado do guia! Aliás, o acesso apavora, tanto que,
ao me reencontrar com Igor no final do dia seguinte, em Ruesta, ele confessou
que, ao sair de Santa Cília, preferiu não subir até Arrés.
Para mim,
contudo, depois da solidão dos primeiros dias, a escolha por Arrés foi um dos
grandes acertos de minha peregrinação pelo Caminho Aragonês.
Vi a placa
“Hospital de Peregrinos” e, como não tinha certeza de que era ali mesmo,
continuei a caminhar, sendo chamado por um peregrino, o espanhol Fernando, que
viria a conhecer melhor e reencontrá-lo sempre. Disse-lhe que procurava um
albergue e ele me apontou o “hospital”. Em tom de brincadeira, respondi que
precisava de um albergue... Ao me dirigir para a porta conheci a hospitaleira
Cintia, sul-africana, que estava escalada com a espanhola Piedad. Quando me dei
conta já tinha sido levado para dentro do albergue, entregue meu passaporte e
minha credencial de peregrino e, após meu cadastro, aceito o convite para
conhecer a Igreja da Imaculada Conceição.
A joia de
Arrés foi construída no século XVI e sofreu importantes reformas posteriores.
Sua planta é retangular com apenas uma nave e quatro capelas, duas de cada
lado. No altar-mor está o retábulo rococó da Imaculada Conceição.
Após a
visita voltei ao albergue porque lembrei que, embora registrado, nada havia
pago. Encontrei com Piedad, que me explicou que o albergue funciona mediante
doação do peregrino; me convidou para a ceia, a partir das 21 horas, também sem
custo; e me avisou que a estadia também incluía café da manhã no dia seguinte.
Descontraído, respondi que ficaria para sempre no albergue. Ela sorriu e voltou
para a cozinha para continuar a preparar a ceia, sendo ajudada por outros
peregrinos...
Ao formar a
mesa, não houve dúvidas: éramos 15. Treze peregrinos e duas hospitaleiras. O
menu foi iniciado com uma salada variada, seguida de pasta e frutas de
sobremesa. Antes, porém, Piedad e Cíntia falaram palavras de ânimo aos
peregrinos, da alegria de estarmos compartilhando aquele momento – oportunidade
em que solicitei a Piedad que fizesse fotos com minha máquina. Imagens
históricas que registram todos os presentes naquela noite.
Final da
ceia, fiz questão de lavar os pratos, copos e talheres, no que fui auxiliado
por Rosa, esposa de Fernando, que os enxugou. Ao final, a convite de Piedad,
caminhamos até outro ponto do pueblo, próximo ao café, para vermos o pôr do
sol. Era por volta das 10 horas e 15 minutos da noite.
Entre os
muitos ensinamentos na passagem por Arrés, pude ter a certeza de que as
escolhas pessoais fazem as grandes diferenças na peregrinação a Santiago de
Compostela, reforçando as máximas de que cada Caminho é um Caminho e cada
peregrinação, uma peregrinação. Até, evidentemente, por todas as opções que se
colocam a cada peregrino, jamais um Caminho será igual ao outro; poderá ser até
muito parecido, mas, ao mesmo tempo, será muito diferente.
O meu
Caminho Aragonês – uma das rotas a Santiago de Compostela, que compreende de
Somport a Puente la Reina, ou melhor, a Obanos, quando se une ao Caminho
Francês (que tive a oportunidade de peregrinar em 2009, desde Saint Jean Pied
de Port) – foi absolutamente especial.
Continuo
fazendo reflexões sobre a profundidade dessas diferenças, já em Santiago de
Compostela, para onde segui de trem, desde Pamplona, visando cumprir o ritual
de final de jornada (e prossigo nessa busca de compreensão em Santander, onde
descanso na casa do amigo Soto Rojas, o pioneiro das competições de 100
quilômetros na Espanha, e sua doce Luz Mari) –, com a quase certeza de que esta
terceira peregrinação me marcará pela maturidade da experiência, do equilíbrio
e do conhecimento.
Cada vez
mais percebo as diferenças em relação as minhas outras duas peregrinações; pois
não faço comparações, naturalmente, em relação à peregrinação de outros amigos
peregrinos. Afinal, nada posso saber sobre a peregrinação de outra pessoa para
uma eventual comparação; só mesmo esta pessoa saberá avaliá-la, a partir de sua
visão de mundo, e do que representa para ela o Caminho de Santiago.
Assim,
recordo que minha primeira peregrinação a Santiago de Compostela, pelo Caminho
Francês, em 2009, representou uma grande novidade, uma liberação de energia,
meia que desenfreada, explosiva, e a alegria do meu encontro comigo mesmo. Foi
um desafio e uma conquista caminhar 800 quilômetros em 29 dias, me conhecer e
conhecer um mundo completamente distinto, de hospitaleiros e peregrinos, de
lendas e histórias sobre pessoas com algo muito em comum – embora cada um faça
questão de explicar do seu jeito.
A segunda
peregrinação a Santiago de Compostela foi pelo Caminho Português, em 2010, Ano
Santo, frise-se, e teve outro significado. Como, aliás, não poderia ser
diferente. E não apenas pela extensão; afinal, o Caminho Português, desde
Oporto, tem cerca de 240 quilômetros e foi peregrinado em apenas 10 dias. Mas,
apesar de o Caminho Português ter apenas o tamanho de quase um terço do Caminho
Francês, foi uma peregrinação dura, dolorosa – cada Caminho é um Caminho,
repito! Marcada pela reflexão, sintetizei esta peregrinação, ao preparar a
edição do segundo livro sobre o tema (o primeiro livro, “Pedras do Caminho, meu
encontro no Caminho de Santiago”, foi lançado em março de 2013), no sentido do
perdão no Caminho de Santiago. Não apenas o perdão pelo que, eventualmente,
possamos fazer; mas também por aquilo que não fazemos. Trata-se de um
sentimento capaz de mudar o sentido da vida.
Agora,
avalio que esta terceira peregrinação se integra ao contexto das anteriores e
assinala uma evolução, um amadurecimento no significado da peregrinação a
Santiago de Compostela, cristalizado na busca, uma busca sem fim... e, quiçá,
na conquista de experiência, equilíbrio e conhecimento.
Depois de
Arrés, encontrando aqui a ali os amigos peregrinos conhecidos no pequeno
pueblo, o Caminho Aragonês foi mais suave – apesar das distâncias consideráveis
entre suas etapas. Afinal, reencontrá-los, concentrados na peregrinação ou
comemorando o final de mais etapa, era sempre motivo de alegria e entusiasmo.
Foi assim
que na terça-feira 5, peregrinei os 28,7 quilômetros de Arrés a Ruesta; na
quarta-feira 6, os 22,1 quilômetros ou 22,6 quilômetros de Ruesta a Sangüesa;
na quinta-feira 7, os 27 quilômetros de Sangüesa a Monreal; e na sexta-feira 8,
os 31,2 quilômetros de Monreal a Puente la Reina – totalizando os cerca de 180
km de meu Caminho Aragonês.
Em Puente la
Reina aconteceram os últimos momentos com alguns dos 12 amigos peregrinos que
conheci em Arrés. Na última etapa, sabia que não veria alguns deles, que desta
vez foram vencidos pelo Caminho, mas que tenho certeza retornarão, pois
demonstraram ter vontade para isso. Caso do espanhol Xavi Xavier, que parou em
Sangüesa, e da austríaca que está na foto da ceia do albergue e que não
identifiquei. Apesar de sua visão reduzida, foi impressionante como venceu
várias etapas do Caminho Aragonês, abandonando-o em Artieda.
Outros, como
os espanhóis Fernando, Rosa, Jesus e Pedro, os também espanhóis Sara e Pache, e
o segundo alemão da ceia, não identificado, completaram o Caminho Aragonês até
Puente la Reina – mas, diferente de mim, não se dirigiram a Santiago de
Compostela. Já o alemão Franz, o polonês Eszec e a francesa Nicole estavam com
disposição de peregrinar a pé até Santiago. Espero que tenham feito um Buen
Camino!
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