sábado, 4 de junho de 2022

Em Arrés, éramos 15

Placa identifica o Albergue de Peregrinos de Arrés

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

A passagem por Arrés é a marca mais profunda de minha peregrinação pelo Caminho Aragonês a Santiago de Compostela, neste final de Primavera europeia. No tempo, ela aconteceu a partir das 19 horas e 20 minutos da segunda-feira 4 de junho, ainda um final de tarde, com muito sol, quando avistei os telhados das casas do pequeno pueblo, e se prolongou até as 8 horas e 38 minutos do dia seguinte, quando a hospitaleira Piedad se despediu de mim, acenando da porta do albergue Hospital de Peregrinos. Já no coração, a passagem ainda busca palavras e sentimentos que possam traduzir o que representou o encontro fraterno entre 13 peregrinos e duas hospitaleiras.

Arrés está isolada no Caminho Aragonês e, antes de decidir o seu acesso, o peregrino tem a opção de descartá-la, seguindo direto para Artieda. Se estiver cansado, olhará a subida e é possível que a evite. Quem encarar o desafio, contudo, não terá motivo de arrependimento. É mais ou menos o que alerta o guia de El País/Aguilar: “El pueblo queda apartado del Camino, por ló que no tienen que entrar quienes no vayan a hacer noche em él. Los que hayan decidido quedarse encontrarán uma pequeña localidad em la que el refugio de peregrinos abierto por la Federación de Asociaciones del Camino hace buena aquella máxima de ‘pueblo pequeño, hospitalidad grande’”.

Diria, a bem da verdade, que a hospitalidade é enorme! Aliás, é uma hospitalidade pura, irradiante, que contagia os peregrinos e anima todos a buscar uma forma de ajudar, colaborar, enfim, fazer o melhor – e fazer o melhor tem muita importância quando se está entre amigos! –, para que o encontro seja coroado de harmonia, carinho, respeito... ou seja, todas as virtudes que o espírito do Caminho de Santiago é capaz de proporcionar.

Essa energia senti logo ao entrar no pueblo e ver a placa “Hospital de Peregrinos”. Estava procurando albergue, mas precisando mesmo de hospital, pois naquele dia havia retomado a peregrinação... Explico: o início de minha peregrinação foi em 1º de junho, sexta-feira, de Somport a Villanúa, um trecho que apresenta divergências de extensão entre os guias El País/Aguilar, com 15,9 km, e Rother, com 19,2 km. Apesar de compreender o começo da travessia dos Pirineus, para mim o maior o impacto viria no dia seguinte, sábado 2, ao decidir pela segunda etapa do Caminho o trajeto entre Villanúa a San Juan de la Peña, algo em torno de 25 ou 30 km. Seria uma caminhada simples não fossem as dificuldades de dois montes, passando por Atarés, com subidas muito íngremes. O esforço foi tamanho que, tendo concluído a etapa por volta das 9 horas da noite, após 12 horas de peregrinação, seria impossível tentar o retorno ao Caminho – ou mesmo tomar um táxi, como o próprio guia Rother sugere ao peregrino que quer conhecer San Juan de la Peña. Decidi então permanecer no hotel do Monastério Novo e aproveitei todo o domingo 3 para me recuperar e conhecer as duas instalações, do Novo e do Monastério Real.

Assim é que, ao final do meu Caminho Aragonês, contabilizei oito dias no Caminho, sendo sete dias de peregrinação.

Na segunda-feira 4, pois, retomei a caminhada, descendo de San Juan de la Peña a Arrés – uma extensão estimada em mais de 21,6 km. Escolhi o trecho que passa por Santa Cruz de la Serós, com a expectativa de ficar em Santa Cília de Jaca, um percurso de 12 km. Cheguei por volta das 14 horas e no albergue de Santa Cília conheci o francês Igor, que me disse que o hospitaleiro deveria chegar após as 16 horas.

Tomei fôlego e com disposição resolvi continuar – talvez até Puente la Reina de Jaca, ou seja, mais 6,2 km, ampliando a etapa para mais de 18 km. Ao chegar nesse pueblo, como ainda estava com energia suficiente, passei na farmácia para comprar protetores contra as bolhas dos pés e segui adiante, até Arrés, ou mais 3,4 km (totalizando 21,6 km) – sem me importar em subir o morro. Juro que não tinha observado a convite velado do guia! Aliás, o acesso apavora, tanto que, ao me reencontrar com Igor no final do dia seguinte, em Ruesta, ele confessou que, ao sair de Santa Cília, preferiu não subir até Arrés.

Para mim, contudo, depois da solidão dos primeiros dias, a escolha por Arrés foi um dos grandes acertos de minha peregrinação pelo Caminho Aragonês.

Vi a placa “Hospital de Peregrinos” e, como não tinha certeza de que era ali mesmo, continuei a caminhar, sendo chamado por um peregrino, o espanhol Fernando, que viria a conhecer melhor e reencontrá-lo sempre. Disse-lhe que procurava um albergue e ele me apontou o “hospital”. Em tom de brincadeira, respondi que precisava de um albergue... Ao me dirigir para a porta conheci a hospitaleira Cintia, sul-africana, que estava escalada com a espanhola Piedad. Quando me dei conta já tinha sido levado para dentro do albergue, entregue meu passaporte e minha credencial de peregrino e, após meu cadastro, aceito o convite para conhecer a Igreja da Imaculada Conceição.

A joia de Arrés foi construída no século XVI e sofreu importantes reformas posteriores. Sua planta é retangular com apenas uma nave e quatro capelas, duas de cada lado. No altar-mor está o retábulo rococó da Imaculada Conceição.

Após a visita voltei ao albergue porque lembrei que, embora registrado, nada havia pago. Encontrei com Piedad, que me explicou que o albergue funciona mediante doação do peregrino; me convidou para a ceia, a partir das 21 horas, também sem custo; e me avisou que a estadia também incluía café da manhã no dia seguinte. Descontraído, respondi que ficaria para sempre no albergue. Ela sorriu e voltou para a cozinha para continuar a preparar a ceia, sendo ajudada por outros peregrinos...

Ao formar a mesa, não houve dúvidas: éramos 15. Treze peregrinos e duas hospitaleiras. O menu foi iniciado com uma salada variada, seguida de pasta e frutas de sobremesa. Antes, porém, Piedad e Cíntia falaram palavras de ânimo aos peregrinos, da alegria de estarmos compartilhando aquele momento – oportunidade em que solicitei a Piedad que fizesse fotos com minha máquina. Imagens históricas que registram todos os presentes naquela noite.

Final da ceia, fiz questão de lavar os pratos, copos e talheres, no que fui auxiliado por Rosa, esposa de Fernando, que os enxugou. Ao final, a convite de Piedad, caminhamos até outro ponto do pueblo, próximo ao café, para vermos o pôr do sol. Era por volta das 10 horas e 15 minutos da noite.

Entre os muitos ensinamentos na passagem por Arrés, pude ter a certeza de que as escolhas pessoais fazem as grandes diferenças na peregrinação a Santiago de Compostela, reforçando as máximas de que cada Caminho é um Caminho e cada peregrinação, uma peregrinação. Até, evidentemente, por todas as opções que se colocam a cada peregrino, jamais um Caminho será igual ao outro; poderá ser até muito parecido, mas, ao mesmo tempo, será muito diferente.

O meu Caminho Aragonês – uma das rotas a Santiago de Compostela, que compreende de Somport a Puente la Reina, ou melhor, a Obanos, quando se une ao Caminho Francês (que tive a oportunidade de peregrinar em 2009, desde Saint Jean Pied de Port) – foi absolutamente especial.

Continuo fazendo reflexões sobre a profundidade dessas diferenças, já em Santiago de Compostela, para onde segui de trem, desde Pamplona, visando cumprir o ritual de final de jornada (e prossigo nessa busca de compreensão em Santander, onde descanso na casa do amigo Soto Rojas, o pioneiro das competições de 100 quilômetros na Espanha, e sua doce Luz Mari) –, com a quase certeza de que esta terceira peregrinação me marcará pela maturidade da experiência, do equilíbrio e do conhecimento.

Cada vez mais percebo as diferenças em relação as minhas outras duas peregrinações; pois não faço comparações, naturalmente, em relação à peregrinação de outros amigos peregrinos. Afinal, nada posso saber sobre a peregrinação de outra pessoa para uma eventual comparação; só mesmo esta pessoa saberá avaliá-la, a partir de sua visão de mundo, e do que representa para ela o Caminho de Santiago.

Assim, recordo que minha primeira peregrinação a Santiago de Compostela, pelo Caminho Francês, em 2009, representou uma grande novidade, uma liberação de energia, meia que desenfreada, explosiva, e a alegria do meu encontro comigo mesmo. Foi um desafio e uma conquista caminhar 800 quilômetros em 29 dias, me conhecer e conhecer um mundo completamente distinto, de hospitaleiros e peregrinos, de lendas e histórias sobre pessoas com algo muito em comum – embora cada um faça questão de explicar do seu jeito.

A segunda peregrinação a Santiago de Compostela foi pelo Caminho Português, em 2010, Ano Santo, frise-se, e teve outro significado. Como, aliás, não poderia ser diferente. E não apenas pela extensão; afinal, o Caminho Português, desde Oporto, tem cerca de 240 quilômetros e foi peregrinado em apenas 10 dias. Mas, apesar de o Caminho Português ter apenas o tamanho de quase um terço do Caminho Francês, foi uma peregrinação dura, dolorosa – cada Caminho é um Caminho, repito! Marcada pela reflexão, sintetizei esta peregrinação, ao preparar a edição do segundo livro sobre o tema (o primeiro livro, “Pedras do Caminho, meu encontro no Caminho de Santiago”, foi lançado em março de 2013), no sentido do perdão no Caminho de Santiago. Não apenas o perdão pelo que, eventualmente, possamos fazer; mas também por aquilo que não fazemos. Trata-se de um sentimento capaz de mudar o sentido da vida.

Agora, avalio que esta terceira peregrinação se integra ao contexto das anteriores e assinala uma evolução, um amadurecimento no significado da peregrinação a Santiago de Compostela, cristalizado na busca, uma busca sem fim... e, quiçá, na conquista de experiência, equilíbrio e conhecimento.

Depois de Arrés, encontrando aqui a ali os amigos peregrinos conhecidos no pequeno pueblo, o Caminho Aragonês foi mais suave – apesar das distâncias consideráveis entre suas etapas. Afinal, reencontrá-los, concentrados na peregrinação ou comemorando o final de mais etapa, era sempre motivo de alegria e entusiasmo.

Foi assim que na terça-feira 5, peregrinei os 28,7 quilômetros de Arrés a Ruesta; na quarta-feira 6, os 22,1 quilômetros ou 22,6 quilômetros de Ruesta a Sangüesa; na quinta-feira 7, os 27 quilômetros de Sangüesa a Monreal; e na sexta-feira 8, os 31,2 quilômetros de Monreal a Puente la Reina – totalizando os cerca de 180 km de meu Caminho Aragonês.

Em Puente la Reina aconteceram os últimos momentos com alguns dos 12 amigos peregrinos que conheci em Arrés. Na última etapa, sabia que não veria alguns deles, que desta vez foram vencidos pelo Caminho, mas que tenho certeza retornarão, pois demonstraram ter vontade para isso. Caso do espanhol Xavi Xavier, que parou em Sangüesa, e da austríaca que está na foto da ceia do albergue e que não identifiquei. Apesar de sua visão reduzida, foi impressionante como venceu várias etapas do Caminho Aragonês, abandonando-o em Artieda.

Outros, como os espanhóis Fernando, Rosa, Jesus e Pedro, os também espanhóis Sara e Pache, e o segundo alemão da ceia, não identificado, completaram o Caminho Aragonês até Puente la Reina – mas, diferente de mim, não se dirigiram a Santiago de Compostela. Já o alemão Franz, o polonês Eszec e a francesa Nicole estavam com disposição de peregrinar a pé até Santiago. Espero que tenham feito um Buen Camino!

Hospitaleira Piedad, do albergue de Arrés

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