terça-feira, 7 de junho de 2022

Fui levado pelo vento

Início do sexto dia de peregrinação, avistando Rocaforte

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

6ª etapa – Sangüesa a Monreal (27 km)

Quinta-feira – 07/06/2012

Vinte e sete quilômetros, segundo o guia El País/Aguilar, ou 30 quilômetros, para o guia Rother, pouco me importou a extensão desta sexta etapa do meu Caminho Aragonês a Santiago de Compostela, entre Sangüesa e Monreal. Apesar da distância considerável, que exigiu cerca de sete horas de peregrinação, as características desta etapa – com belas paisagens, pueblos pequenos, aparentemente perdidos no tempo, e a extrema solidão... em sintonia com tudo o que se espera do Caminho de Santiago – as tornaram leve, doce, um autêntico passeio nas nuvens... Diria que fui levado pelo vento, o mesmo vento que impulsiona as hélices dos muitos parques eólicos que predominam nessa região da Comunidade Foral de Navarra.

Peregrinando a penúltima etapa de meu Caminho Aragonês, de Sangüesa a Monreal, embora com uma vontade impossível de continuar o Caminho, já sabia que deveria me contentar em finalizar a peregrinação deste ano em Puente la Reina, o que representava apenas mais um dia de caminhada, quando o Caminho Aragonês se integra ao Caminho Francês. Diante desse impasse comigo – aliás, um pensamento que me perseguiu durante todo o dia –, fiquei na dúvida em manifestar qualquer tipo de comemoração. Mas, claro, chegar são e salvo a Monreal foi motivo de festa!

Acordei cedo, talvez com o alarme do celular, ou quem sabe com as vozes em frente ao hostal onde descansei em Sangüesa. Abri a janela e vi apenas o peregrino Jesus, que estava no grupo com o casal Fernando e Rosa e Pedro, que conheci em Arrés..., atravessando a ponte sobre o Rio Aragão, em direção ao centro do pueblo, no sentido inverso ao caminho para Monreal... Ao final do dia viria a saber que, com dores no joelho, Jesus não teve condições de fazer esta etapa a pé... E na noite anterior, Xavi já havia abandonado a peregrinação.

Comparando os episódios a dois raios no mesmo lugar, redobrei minha cautela e me preparei para mais esta etapa como se fosse a primeira. Ou a última... Ainda no quarto, tomei o café da manhã com frutas, chá energético e o bocadilho que havia comprado no dia anterior. Disposto e confiante, iniciei o Caminho em direção a Rocaforte, ou Sangüesa la Vieja... onde Francisco, ao peregrinar a Santiago de Compostela, em 1214, fundou o primeiro convento franciscano da Espanha. Ele teria entrado na Espanha pelo Caminho Aragonês e, segundo a tradição, dormiu em Undués de Lerda e de lá seguiu até Sangüesa. Em 2014, quando se completam 800 anos da peregrinação de Francisco, é grande a expectativa no Caminho de Santiago.

A partir de Rocaforte já é possível avistar as hélices de um grande parque eólico da região, que produz a energia limpa através do vento – uma imagem que me acompanhará em vários outros pontos dessa etapa. Perto, uma placa sinaliza a fonte de São Francisco, que data do século XVIII, hoje área de lazer, equipada com churrasqueiras.

O Caminho começa a subir ao Alto de Aibar, entre campos de cereais, e segue num constante sobe e desce pelo Vale de Ibargoiti, que ocupa uma zona de transição entre as montanhas pirenáicas e a Navarra meridional, com vários bosques e pequenos pueblos, como Abínzano, Celigüeta, Equísoain, Idocin, Izco, Lecáun, Salinas, Sengáriz e Vesolla, formado por “gente acolhedora, acostumada pela passagem de viajantes e peregrinos”, como anuncia uma placa turística.

Pouco mais de 16 quilômetros desde Rocaforte e encontro Izco, com sua população de 50 habitantes..., e logo em seguida, Abínzano, com 20 habitantes..., que exibe uma igreja dedicada a São Pedro Apóstolo, de estilo barroco. Assim como os demais pequenos pueblos do Vale de Ibargoiti, Abínzano tem sua economia baseada na agricultura do trigo, da cevada, entre outros cereais.

Continuo a peregrinação deslumbrado com a paisagem... e após cerca de cinco quilômetros avisto a torre da Igreja de São Miguel, românica, do pueblo de Salinas de Ibargoiti, em cuja entrada existe uma bela ponte medieval – que, aliás, cheguei a pensar que estaria chegando a Monreal. Uma confusão que deixei registrada num vídeo que resume esta etapa, e que pode ser visto no Youtube, em www.youtube.com/watch?v=I0g5C1MtwyY

Dois quilômetros depois, após um pequeno bosque, aí sim, encontro a placa que indica Monreal – ou Elo, em euskera, o idioma basco –, e próximo à famosa ponte medieval.

Monreal está localizado a 18 km de Pamplona, a capital da Comunidade Foral de Navarra, e possui cerca de 500 habitantes. Documentos medievais do século XII já citam o pueblo de Monreal, ora como Mone Real, ou Mont Real, Monte Real, Monte Realle, Monte Regale, ou ainda Montis Reyalis; nome que teria sido dado pelo rei de Navarra, Garcia Ramirez, o Restaurador.

Entre outros registros históricos, sabe-se que abrigou importante colônia de judeus e teve o direito, por um tempo, de cunhar moeda própria. Teve um castelo que serviu de residência de caça dos reis de Navarra, cuja derrubada foi decidida pelos monarcas em 1521.

Hoje, seu monumento mais precioso é a Igreja da Natividade de Nossa Senhora de Monreal, dos séculos XVI a XVIII, que possui uma arquitetura diferenciada, conforme destaca folheto do Arcebispado de Pamplona e Tudela. O templo é marcado por uma parte mais antiga, gótica, e outra moderna, fruto de sua ampliação. As esculturas mais significativas são as de Jesus Crucificado, da primeira metade do século XVII, e o grupo renascentista de Santa Ana, localizado no altar de São Francisco Xavier... Vale a pena fazer uma visita guiada e conhecer o museu da Igreja.

Em Monreal não fiquei no albergue de peregrinos. Cheguei a me inscrever, selar minha credencial, pagar, tomar banho, arrumar a cama... aliás, pela primeira vez no Caminho Aragonês usaria o saco de dormir sobre o colchão... mas, aproveitando que a conexão wifi estava falha, tive motivo para juntar tudo de novo e mudar meu plano de permanecer no albergue. Instalei-me na Casa Rural, a menos de 50 metros de distância, em frente à praça. Fui recepcionado por um atencioso proprietário/hospitaleiro que, junto com a senha de acesso rápido à internet, contou histórias hilárias sobre peregrinos brasileiros, indicou-me o guia da igreja, o restaurante..., e colaborou para que minha passagem por Monreal fosse perfeita. Afinal, no dia seguinte estava determinado a fazer a última etapa do meu Caminho Aragonês.

Rumo ao Alto de Aibar, a caminho de Monreal

Plantações no Alto de Aibar
Muito perto de Izco, antes de chegar a Monreal

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