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1ª Etapa -
Somport a Villanúa (15,9 km ou...)
Sexta-feira
- 01/06/2012
Minha
despedida de Lourdes, neste primeiro dia de junho, surpreendeu desde cedo, com
sol e céu azul. Para quem, como eu, acredita em milagres e crê em bruxas,
apesar de consultar o serviço de meteorologia pela internet, não era possível
me conformar com a previsão de que o tempo estaria encoberto, com raios,
chuvas. Uma previsão que se estendia a Oloron, Somport, Confranc, Jaca,
qualquer lugar que fosse passar.
Não foi o
que aconteceu. Apesar dos agourentos de plantão, esta primeira etapa valeu o
Caminho Aragonês. De Somport, caminhei até Villanúa, cerca de 15,9 km, segundo
El País/Aguilar, ou 19,2 km, segundo o guia Rother. Mas, o tempo pode mudar
amanhã...
A travessia
dos Pirineus, tanto no Caminho Francês quanto no Aragonês, rumo a Santiago de
Compostela, é um espetáculo. Descartá-la, ao fazer o Francês, iniciando a
peregrinação em Roncesvalles, por exemplo, a pretexto de economizar esforço, é,
no mínimo, discutível, e será um arrependimento para toda a vida.
Dispensar a
travessia dos Pirineus pelo Caminho Aragonês, então, nem deve ser considerado.
São duas travessias distintas. No Caminho Francês, a primeira etapa é marcada
por uma acentuada subida, passando de 163 metros acima do nível do mar, em
Saint Jean Pied de Port, para 1.430 metros, em Lepoeder, para depois despencar
para 962 metros em Ronscesvalles – ao longo de 24,8 quilômetros. Já no
Aragonês, o perfil é outro: o peregrino inicia de 1.640 metros de altitude, em
Somport, e desce para 959 metros, em Villanúa – num trecho de 15,9 quilômetros
(segundo o guia El País/Aguilar) ou 19,2 quilômetros (para o Rother).
Tanto em um
quanto em outro, contudo, há uma sequência de subidas e descidas, o que exige
um bom preparo físico, para que as etapas seguintes, até Puente la Reina, no
caso do Aragonês, quando ele já se uniu ao Caminho Francês, sejam realizadas
sem causar muitas lesões pelo corpo.
Meu Caminho
Aragonês foi diferente do que havia pensado e planejado nos últimos meses:
etapas curtas, sem pressa, muita contemplação, curtindo cada pedra do Caminho.
Infelizmente, não consegui seguir este ritmo. As decisões, das quais não me
arrependo, foram sendo tomadas sob a emoção de estar fazendo minha terceira
peregrinação a Santiago de Compostela, baseada em informações de dois guias
impressos, depoimentos de peregrinos e uma vontade de caminhar que me
surpreendeu; e que, enfim, ia me deixando cada vez mais feliz por estar
caminhando, e caminhava para me sentir mais feliz.
Com ânimo,
deixei Lourdes, na França, na manhã de 1º de junho, e fui de trem até Pau;
depois tomei outro trem até Oloron-Sainte-Marie e, finalmente, um ônibus até
Somport – onde desembarquei, eu e um peregrino francês, próximo ao albergue
Aysa. Ele, talvez mais ansioso que eu, entrou no albergue, onde também funciona
um café e uma loja de souvenirs, perguntou o preço de um chapéu, não comprou,
não tomou café e foi embora – iria reencontrá-lo em Canfranc Estación, usando
um pano sobre a cabeça, quando indiquei a ele a oficina de turismo para o selo
na credencial (que, aliás, ele não colocou em Somport). Logo após selar sua
credencial, lhe ofereci um pedaço de laranja, e, agradecendo sem aceitar,
solicitou que eu abrisse sua mochila, sem tirá-la das costas, e retirasse a
laranja que trazia. Agradeceu e retornou ao Caminho. Não voltaria a
reencontrá-lo. Como, aliás, nenhum outro peregrino, naquele primeiro dia.
No albergue
Aysa, ao contrário do peregrino francês, carimbei o segundo selo na minha
credencial (o primeiro havia sido colocado pela Associação de Confrades e
Amigos do Caminho de Santiago de Compostela, de São Paulo), tomei café, comprei
dois pins que coloquei no meu chapéu, troquei a calça por uma bermuda,
conversei com os dois homens que atendiam no albergue, perguntei sobre o tempo,
o movimento de peregrinos, pedi a um deles que tirasse fotos minha, tirei fotos
da gruta acima do monte, do escritório aduaneiro de Somport, fiz um pequeno
filme desse ponto que marcaria o início da minha peregrinação... e mergulhei no
Caminho, sorrindo, rindo, falando comigo, agradecendo, sob um sol de quase 30
graus, céu azul, um dia perfeito. Faltavam cinco minutos para o meio dia e o
marco oficial indicava o percurso de 858 quilômetros até Santiago de Compostela.
O Caminho
Aragonês é lindo, especialmente seu início, neste trecho de Somport até
Villanúa, onde, conforme já havia cogitado, iria parar e descansar após o
primeiro dia de peregrinação. A natureza é exuberante, com pequenos bosques
refrescantes e tomados pelo canto de pássaros; à sua direita, em vários
momentos, o Rio Aragão; como pano de fundo, os Pirineus, com picos exibindo
neve eterna.
Aspectos da
origem da histórica rota são revelados logo no início, nas ruínas do Monastério
Hospital de Santa Cristina de Somport, que data do final do século XI, fundado
pela Ordem do Santo Sepulcro, de Jerusalém, e, mais tarde, no século XIII,
mantido pela Ordem de Santa Cristina, uma organização religiosa, hospitalar e
militar, que visava dar proteção à rota peregrina.
Informa a
placa do Governo de Aragão junto às ruínas: “En la falda meridional del
Somport, el Summus Portus romano, se ubicó a fines del siglo XI um
establecimiento al servicio de viajeros y peregrinos que alcanzaría pronta
fama, llegando a considerarse unum tribus mundi: uno de los tres hospitales más
importantes de la Cristiandad, junto com los del Gran San Bernardo (em su paso
de Los Alpes) y el de Jerusalén”.
E mais: “Su
existência em tan estratégico paso fue causa y razón de que la vía jacobea que
atravesaba el sur de Francia por la ciudad de Tolosa, o Via Tolosana, girara
bruscamente em Olorón buscando el camino de Jaca, primera capital del reino
aragonês, dando así origen al actual Camino de Santiago em Aragón”.
Embora não
se saiba a data exata da fundação do monastério hospital, ele é mencionado em
um documento de Sancho Ramírez, escrito em 1078, e citado pelo historiador
Ricardo del Arco. Outra menção está em um diploma de Pedro I de Aragão, em
1100.
Alguns
desses dados, inclusive, estão no Códice Calixtino, ou Calixtinus Codex, o guia
medieval de peregrinos, de meados do século XII, cujo original foi furtado em 7
de julho de 2011 da biblioteca da Catedral de Santiago de Compostela – já
encontrado.
Afinal, o
hospital era importante aos peregrinos que atravessavam o Summus Portus para
chegar a Santiago de Compostela, via Toulouse e o vale de Aspe, em vez de
entrar na Península por Mauleon-Licharre e Roncesvalles – via Saint Jean Pied
de Port. Quando os peregrinos chegavam até Somport, cansados, famintos e
doentes, ficavam no hospital. Segundo o Códice Calixtino e o Liber Sancti
Iacobi, um livro que detalha as quatro rotas oficiais do Caminho que cruzavam a
França, os peregrinos recebiam três dias de hospedagem gratuita e alimentação.
Se estivessem doentes, permaneciam até se recuperarem. Se algum peregrino
morria, era sepultado numa pequena cova ao lado da capela.
O declínio
do hospital teria começado em 1374 e continuou durante todo o século XVI,
devido às guerras entre católicos e huguenotes (protestantes franceses),
fazendo com que os monges abandonassem o hospital e se transferissem para sua
igreja-palácio, em Jaca.
A partir de
escavações arqueológicas e manuscritos sobre a distribuição dos prédios é
possível conhecer a aparência que teve o hospital durante o seu auge. Consta
que a construção tinha estilo arquitetônico românico. No centro do conjunto
havia uma pequena igreja românica, do século XII ou XIII, com uma ábside
semicircular direcionado para o Leste. Ao lado da igreja ficava a taberna, do
século XVIII, onde os peregrinos comiam. Do outro lado da igreja se encontrava
o cemitério, onde ainda é possível ver os túmulos de pedra. O mosteiro também
estava localizado ao lado da igreja, onde antes do século XVIII era a taberna.
Segundo o historiador Frei Francisco Lalana, mais abaixo se encontravam o
palácio do Prior e a capela de Santa Bárbara.
Muito
próximo das ruínas do hospital, junto a um condomínio residencial, funciona um
teleférico que, no Inverno, leva aos picos nevados. Depois desses marcos, é só
natureza, até Canfranc Estación, que possui estação de trem em estilo
neoclássico, construída em 1928. Ao sair do pueblo, um marco sinaliza as ruínas
da Torre de La Espelunca, ou Torre de los Fusileros, que teria sido construída
em 1592, pelo engenheiro Tiburcio Spannocchi, visando repelir invasões
francesas. Em 1707 ela foi incendiada, abandonada, e as ruínas afetadas pela
construção de uma hidrelétrica, até ser redescoberta em 1999 e ser relacionada
ao Caminho de Santiago.
Antes de
chegar a Villanúa, o peregrino passará por duas pontes: Puente de Arriba, do
século XVI, que teria aumentado sua importância no Caminho de Santiago quando a
segunda, a Puente de Abajo, a Pon Nou, foi destruída no final do século XVI por
uma inundação do rio Aragão. Ao ser reconstruída, a Pon Nou, ou Ponte Nova,
ganhou uma lápide, na qual se lê Ramon me fecic, ou “Ramon me fez”, em
referência ao mestre Ramón de Argelas.
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