domingo, 5 de junho de 2022

Reflexões até Ruesta

Plantações de cereais marcam o Caminho

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

4ª etapa – Arrés a Ruesta (28,7 km)

Terça-feira – 05/06/2012

Por Caminhos de Santiago, até 2012, peregrinei cerca de 1.250 quilômetros, em três situações: pelo Francês, desde Saint Jean Pied de Port; pelo Português, a partir de Oporto; e pelo Aragonês, de Somport a Puente la Reina. Mas, embora tenha frequentado perto de 40 albergues, ao deixar o de Arrés, na manhã de 5 de junho, tive a emoção de, pela segunda vez, o hospitaleiro se despedir de mim... A primeira vez foi ao deixar o albergue em Santo Antonio de la Calzada, quando Jesus, o hospitaleiro, me acompanhou até a porta e desejou “buen camino”. Desta vez, o momento mágico foi proporcionado pela hospitaleira Piedad. Com certeza, seus votos foram importantes para aumentar minha determinação no quarto dia de peregrinação pelo Caminho Aragonês, de Arrés a Ruesta, um percurso com mais de 31 quilômetros de distância.

O trecho de Arrés a Ruesta é um convite à reflexão. O silêncio pela ausência de árvores..., ou melhor, de pássaros, acompanha o peregrino a partir da descida do Monte Samitier em direção ao vale do Rio Aragão, atravessando ora campos de cereais, ora terras áridas..., o céu azul; passando ao largo de alguns pueblos, como Martes (Província de Huesca) e Mianos (já na Província de Zaragoza), até a entrada em Artieda. Fiz alguns vídeos, que confirmam o clima e o som, apenas, dos meus passos. Foi uma excelente oportunidade de, mais uma vez, promover o reencontro comigo – o deserto de Marcos, compartilhado por Santiago...; pensar na minha querida família; nos estimados amigos; agradecer, agradecer... e ainda impactado pela atenção da hospitaleira Piedad.

Já havia sido alertado pelos guias Rother e El País/Aguilar que seria uma etapa sem muitas opções (El País/Aguilar a intitula como “maratón de desamparo”), com praticamente apenas uma parada, Artieda, após cerca de 21,5 quilômetros sem sombras, ou apenas a sua. E foi lá que cheguei, após 4 horas e meia de caminhada, a 655 metros de altitude. O pueblo tem área de 14 km2 e população de pouco mais de 50 habitantes.

Pelo que informa uma placa antes da subida, Artieda concentrou, em sua extensão, um conjunto impressionante de assentamentos romanos. “En tan sólo 4 km de ribera se conocen varios yacimientos de interés, entre los que destaca La Cantera de Gimeno, que ofreció magníficos mosaicos trasladados a Zaragoza”. O marco oficial explica que o disperso assentamento romano foi reduzido aos núcleos medievais de Rienda, Artieda e Viasués, restando apenas Artieda, com clara vocação de defesa, em virtude de sua localização junto à fronteira entre as Províncias de Aragão e Navarra.

Sua ligação com o Caminho de Santiago é enfatizada pela tradição assistencial: “Se cita en 1124 un refugio (albergaria) em Viasués, en medio del camino (in media via); y en Artieda, el famoso Hospital de Santa Cristina de Somport, mantuvo un hospício con dos sacerdotes y cinco donados donde se atendia a pobre e peregrinos”.

Uma joia de Artieda é a Igreja de San Martín, cujo templo original foi construído no final do século XII e consistia em uma nave fechada com ábside de forma semicircular. Mais tarde, entre o XVI e XVI, foram adicionados vários edifícios, a sacristia, a capela de Nossa Senhora do Rosário, o pórtico que abriga a porta clássica e a torre quadrada de pedra, com uma escada em espiral anexa.

Quando passei por Artieda a igreja estava fechada. Mas, pelos relatos, estão na capela de Nossa Senhora do Rosário as duas obras mais valiosas do templo, o altar e a imagem de Cristo, cuja qualidade artística revela a influência das oficinas de escultura da vizinha cidade de Sangüesa, já em Navarra.

Uma preocupação latente do pueblo é com o projeto de ampliação da represa de Yesa, aos seus pés, que nos anos 1960 já inundou uma extensão 2.400 hectares, sendo mais da metade de terras agrícolas, a partir do estrangulamento das águas do Rio Aragão. Em meio ao rico patrimônio submerso, as termas romanas de Tiermas e o traçado original do Caminho de Santiago, entre Ruesta e Tiermas, e deste pueblo até o Monastério de Leyre. A transformação ambiental provocou a transferência de muitas famílias e continua perturbando o sono das autoridades locais. Irritados, os ambientalistas criaram o movimento “Yesa no!”; uma bandeira, aliás, que é encampada por peregrinos de todo o mundo, já que, se a capacidade da represa for mesmo triplicada, como se pretende, desaparecerá o trecho do Caminho de Santiago entre Artieda e Ruesta!

A parada em Artieda foi providencial. Tirei as botas e meias e, junto com a mochila, deixei tudo no sol para secar o suor..., coloquei os chinelos e fui comer um bocadilho de jamón com queijo no bar do albergue de peregrinos, acompanhado por três, sim, três Aquarius em lata. Revigorado, desci o morro de Artieda e me reencontrei, na estrada, com o espanhol Xavi, um dos 13 peregrinos que estavam em Arrés.

Paramos para fotos e depois seguimos um trecho juntos; falamos sobre vários assuntos, entre os quais, seu triste relato sobre como as bolhas nos pés ameaçavam sua peregrinação – que, aliás, viria a ser suspensa no final do dia seguinte, logo após ser atendido no posto médico em Sangüesa.

De Artieda a Ruesta foram mais 10 quilômetros, em meio a plantações, um pequeno bosque refrescante, com árvores magras, seguindo por um caminho que acompanha o temido reservatório de Yesa. Antes mesmo de chegar a Ruesta é possível avistar as torres e ruínas do castelo medieval, de origem árabe, do final do século X, e da Igreja de Santa Maria, do século XVI. Os edifícios são ícones do pueblo, cuja grande parte do território está submersa pelas águas de Yesa, cuja construção exigiu a desapropriação de campos e casas.

Muitos dos moradores foram embora para sempre ou aceitaram se mudar para núcleos de repovoamento, em zonas irrigadas do Canal de Bardenas, como Bardena, Santa Anastásia e Pinsoro. Conforme apurado, Ruesta ocupa hoje áreas dos pueblos de Sigüés e Urriés, região de Jacetania, distrito judicial de Ejea de los Caballeros.

Nessa movimentação provocada por Yesa, a Confederação Geral do Trabalho de Aragão, em parceria com o Colégio Oficial de Arquitetos de Aragão, fez um trabalho de recuperação de vários edifícios, como a casa Valentín e a casa Alifonso, onde hoje funcionam o albergue de peregrinos, a casa de cultura, biblioteca e o camping.

Duas joias de Ruesta, o Castelo e a Igreja de Santa Maria, junto ao albergue, sobrevivem em meio às ruínas. Registros históricos revelam que Ruesta foi fortificada por Sancho III o Grande, de Navarra, em 915, e até 1055 se constituiu em enclave navarro em Aragão. Em 1050 passou definitivamente ao poder de Aragão e, em 1055, assumiu Sancho Garcés, como primeiro senhor de Ruesta, sob o domínio de Ramiro I. Depois, até 1058, Sancho Galíndez. No tempo de Ramiro II o Monge, desde 1133, Ruesta esteve nas mãos de Cecodín de Navasa; e Frontín, até 1136. Reinando James II, assumiu Dom Pedro de Ayerbe. Situada no outro extremo do castelo, a Igreja de Santa María de Ruesta deve ter sido fundada nos séculos X e XI, mas foi completamente reconstruída no século XVI. Na Idade Média, Ruesta abrigou a comunidade judia mais antiga de Aragão.

Amapola junto ao Caminho Aragonês

Mais um belo dia, muitas cores, céu azul, rumo a Ruesta

Peregrinos miram Artieda

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