segunda-feira, 10 de junho de 2019

Saudades do Brasil


Ermida de Santa María de Eunate: legado dos Templários...

As quarta e quinta etapas de minha peregrinação pelo Caminho Francês, há 10 anos, corresponderam ao trecho de Pamplona até Estella, com cerca de 45 km – friso “cerca de” pois essas marcas não têm e possivelmente nunca terão um consenso nos diferentes guias e sites sobre o Caminho de Santiago... Enfim, ao chegar a Estella refleti sobre os dois dias anteriores, quando experimentei uma rota tangencial do Caminho de Santiago para alcançar o Caminho Aragonês e visitar a ermida de Santa María de Eunate: fantástica!!!
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#pedrasdocaminho
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

MINHA TERRA TEM PALMEIRAS

Na quarta-feira, 10 de junho, completei a minha quinta etapa do Caminho, no qual em algum momento ultrapassei os primeiros 100 quilômetros – só para lembrar, serão mais de 800 quilômetros até a Catedral de Santiago de Compostela...
Afinal, a primeira etapa, de Saint Jean Pied de Port, na França, até Roncesvalles, na Espanha, tem 25,7 km. A segunda, de Roncesvalles até Zubiri, 21,5 km. A terceira, de Zubiri até Pamplona, 20,4 km. A quarta, de Pamplona até Puente la Reina, 24 km. E a quinta, de Puente la Reina até Estella, 22 km, totalizando 113,6 km. Mais teve uns quilômetros a mais, que vou detalhar...
Se quiser ser um pouco mais exato e tirar esses 13,6 km da marca, creio que os 100 quilômetros foram completados em algum momento em que pisava em resquícios da calçada romana, entre Cirauqui e Lorca.
A calçada, possível ver em vários trechos, é uma das atrações históricas de todo o Caminho e junto com as pontes românicas e medievais, com suas estruturas arcadas, fazem uma composição muito bonita com a natureza.
Pois é, merecem destaque os aspectos arquitetônicos e naturais do Caminho, embora na postagem anterior foi enfatizado que o melhor do Caminho se encontra nos peregrinos, gente de toda parte do planeta, e no povo, francês e espanhol, dos “pueblos”, que vive diuturnamente o fenômeno da peregrinação. Não se trata de uma contradição, muito menos fazer uma mea culpa, mas sim deixar claro que tantas são as atrações do Caminho para quem se dispõe a fazê-lo, que vale a pena inclui-lo no roteiro de viagem de algum ano – ainda que seja por alguns dias.
Quem tem tempo reserva 30 dias, ou mais, para percorrê-lo na sua forma tradicional, de Saint Jean Pied de Port, no caso do Caminho Francês, ou de Somport, no caso do Aragonês, até Santiago de Compostela. Quem tem mais dias, começa de outros pontos da França. Ouvi casos de pessoas que vieram de Jerusalém, outras da Holanda, sempre a pé.
Mas, quem não tem tempo, e conheci muitos com essa limitação, fazem um ou mais trechos, 10 ou 30 quilômetros, apenas para sentir o espírito do Caminho, conversar com os peregrinos, o povo, ver os monumentos, refletir, se aventurar, fazer amigos etc. No ano seguinte, faz mais um pedaço. E aí continua se divertindo, aprendendo, se machucando...
E como dói...
Mas como vim de longe, não desisto fácil... Depois das duas primeiras etapas, completei a terceira, de Zubiri a Pamplona, com alguma dificuldade... Em termos, pois ao chegar e atravessar a ponte elevadiça das muralhas restauradas de Pamplona fui de tênis percorrer a cidade, até a Plaza de Toros, e também as famosas ruas que em julho sediarão a tradicional Festa de São Firmino, quando os touros são soltos e sai da frente... No centro da cidade tem uma escultura sobre a festa...
Não é a minha combalida coluna que dói, mas os joelhos, de tanta subida e, principalmente, descida. Acho que teve gente que parou aqui e desistiu... O José Avelino, aquele brasileiro de Ribeirão Preto, não vi mais... De repente, em alguma etapa volte a encontrá-lo. Mas da última vez que falei com ele, em Pamplona (e olha que iniciou em Roncesvalles e não fez o trecho mais difícil, saindo de Saint Jean!) estava desolado.
Eu mesmo cheguei a arquitetar uma paradinha. Ou seja, em vez de fazer a quarta etapa completa, de Pamplona a Puente la Reina, iria parar em Cizur Menor, a 5,1 quilômetros, um passeio, que tem uma boa estrutura, tiraria o dia para descansar, ou mesmo voltar a Pamplona e curtir mais a cidade. Fui dormir na dúvida. Seguir e me arriscar ou parar logo mais e recarregar energias? É aquele negócio que só você decide, não dá para pedir ajudar a outro peregrino, às cartas, aos universitários, como naquele programa de televisão... Afinal, quem deve saber do seu limite é você, e mais ninguém!
(PS.: Tremenda bobagem. Agora entendo que nem mesmo você, muitos menos os outros sabem o seu limite, eis que, absolutamente imponderável!)
O que sei é que no dia seguinte a ideia de jerico havia desaparecido. Acordei recuperado e, em vez dos 5,1 km negociados, fiz os 24 km (na verdade um pouco mais, vou detalhar...) até Puente la Reina. Foi fácil? Claro que não. Mas o trajeto me reservou situações emocionantes.
Ao chegar em Muruzábal, faltando apenas 4,1 km para Puente la Reina, avistei o templo da igreja de San Esteban e na porta, faltando 15 minutos para fechar, conheci mais uma Maria. Atenciosa, começamos a conversar e como demonstrei interesse entramos e ela deu detalhes do templo, com partes bem diferenciadas. A primeira, gótica, do século XIV. A segunda, renascentista, do século XVII.
Entre tantos aspectos interessantes, está na Capela de São José os restos mortais do bispo de Calahorra, Don Juan Juaniz de Echalaz, nascido em Muruzábal, que conquistou o espaço pois ajudou a financiar uma ampliação da igreja...
Aí surgiu a reiteração (outras pessoas também me deram essa dica...) de que deveria conhecer a ermida de Santa María de Eunate, que está no Caminho Aragonês, exatamente no momento em que se encontra com o Francês para seguir até Santiago. Apontou o percurso, com sinalização precária e lá fui eu conhecer a famosa ermida. Para quem estava a ponto de parar para embromar um dia, dar uma esticada de mais uns 4 a 5 quilômetros parece coisa de louco...
Pois é, caminhei com disposição. Um pouco antes de chegar dei uma parada para tomar uma água e notei a aproximação de uma pessoa. Vestia camisa e calça na cor marrom, trazia um crucifixo no peito e puxava uma mala de rodinhas. Não pode ser peregrino, pensei. Mas já havia ouvido falar de peregrino que leva suas coisas em mala de rodinhas, em vez da mochila...
Ah!, sobre isso e sobre as pessoas que fazem um pedaço do Caminho, é cada vez mais normal peregrinar levando uma mochilinha básica, enquanto as roupas da noite, para o passeio para saborear a gastronomia e outras diversões da parada, vão de carro, por meio de serviços prestados por empresas, em conjunto com hotéis de classe.
Não era o caso. Tratava-se de Lázaro, um ermitanho, em espanhol, ou ermitão (não aquele de caverna...), ou seja, quem vive em ermida, orando, aprendendo a Bíblia, orando... Era o primeiro ermitão que estava conhecendo no dia. Primeiro, porque logo em seguida iria conhecer João, o ermitão de Santa María de Eunate.
Abordei Lázaro e caminhamos juntos. Me contou que Lázaro não era seu nome de batismo, mas o que escolheu quando fez seus votos e passou a se dedicar à Igreja Católica. Lázaro, aquele que Deus ressuscitou. Estava em visita ao ermitão de Eunate e ficaria lá uns dias.
A ermida é do século XII, tem forma octogonal e é cercada por um muro também octogonal. Ela teria sido construída pelos Templários, mas não há provas consistentes. Mas tem tudo a ver, pois é da época em que foi forte a influência dos Templários em toda a Península Ibérica. Ela foi recuperada, como a grande maioria dos templos e monumentos do Caminho – uma preocupação com o patrimônio histórico e cultural que deveria ser mais efetiva no Brasil.
Conheci a ermida enquanto Lázaro foi ao encontro de João, nome de batismo. Ao me despedir, conheci o segundo ermitão. Ao saber que eu era brasileiro – como faz a grande parte dos espanhóis que tenho conhecido nos últimos dias – ficou tão alegre que recitou versos de Gonçalves Dias e eu, claro, o acompanhei: “Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá. As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá...” Sem lembrar todas as estrofes acrescentei a última: “Não permita Deus que eu morra, sem que eu volte para lá!”
Lázaro não estava entendendo nada e João passou a explicar os significados dos versos.
Sobre o final, contei que, pelo que eu sabia, ao retornar ao Brasil o navio que trazia o desterrado Gonçalves Dias naufragou na costa.
Vai chorar?

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