segunda-feira, 24 de junho de 2019

Negócios...


Ao longo dos anos, Caminho de Santiago mudou muito...

Refletindo sobre a essência do Caminho de Santiago, escrevi sobre os negócios que nele proliferam, após a 18ª etapa, de Reliegos a La Virgen del Camino, cerca de 32,5 quilômetros, que completei ontem, há 10 anos...
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O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

O “BUSINESS” DO CAMINHO

A peregrinação deixa marcas no peregrino, não só aquelas mais profundas – n’alma, por exemplo, pois como se diz, “ele nunca mais será o mesmo!” –, mas tantas outras pelo corpo, que acabam sendo compartilhadas pelos que estão no Caminho.
Os pés são os que mais sofrem – e os joelhos, os ombros, as costas... também, devido ao peso da mochila. Mas, as bolhas nos pés são inevitáveis e aparecem mesmo que o calçado seja o mais adequado e o peregrino dos novos tempos tenha tido a oportunidade de planejar o uso diário das botas antes de pôr o pé na estrada.
O piso irregular em que os passos são dados, quase sempre de cascalho e pedra, mesclado com subidas e descidas, determinam uma pisada que ora força a ponta dos pés – e aí as bolhas surgem dos dedos para a planta –, ora o calcanhar, formando bolhas exatamente nessa parte do pé.
Com bolhas nos pés fica muito difícil caminhar. Uma forma de prevenir o surgimento de bolhas logo no primeiro dia é evitar andar com as meias úmidas. O ideal, assim que o suor ensopou os pés, é trocar as meias.
Ah! E menos mal se forem só as bolhas, pois há casos em que o pé, o tornozelo, o calcanhar ou o joelho incham, talvez resultado de algum processo inflamatório, e andar fica quase impossível!
Eu mesmo acompanhei o sofrimento de um peregrino durante dois dias seguidos, desde que chegou a Frómista. A comoção era geral, pois todos ouviam seus gritos. No dia seguinte, achando até que havia abandonado o Caminho, o encontrei na rua seguindo em frente. À noite, chegou gemendo a Calzadilla de la Cueza, depois de percorrer 36,4 quilômetros!
Eu mesmo, embora sabendo que não deveria, ofereci comprimido de aceclofenaco, que levei para minhas dores na coluna, mas ele não aceitou. Ainda bem. Vai que tem alergia...
O sofrimento, nesses casos, desencadeia um fenômeno solidário, desde o colega peregrino ao hospitaleiro, que é o responsável pela acolhida do doente.
A dor, portanto, faz, sempre fez e fará parte do Caminho. Imagino os muitos casos de dor em todos esses séculos de peregrinação... Antigamente, a maioria dos peregrinos ia provavelmente descalça, fazendo a rota jacobea com motivações muito diferentes das de hoje, quase que absolutamente sob a pressão da Igreja, com o objetivo de buscar a indulgência e se livrar do pecado.
Afinal, em 1119, o papa Calixto II concedeu ao peregrino de Santiago durante o ano jubilar, como será 2010 (*), quando o Dia de Santiago Maior, 25 de julho, cai num domingo, o perdão a todos os seus pecados. Então, peregrinar nos demais anos não conta? Deve contar, ora!
Quem tinha dinheiro pagava a chave celeste... Descalço, aquilo sim é que era sofrimento – daí terem proliferado tanto hospitais e albergues de peregrinos no Caminho, até muito mais e maiores do que nos dias de hoje, conforme relatos dos guias medievais. Aliás, em 1332, o papa João XXII concedeu indulgência às pessoas que ajudassem os peregrinos com hospedagens ou com esmolas, o que fez ampliar essa estrutura...
Por isso, foi com estupefação que a hospitaleira Carmen, do Albergue Municipal de Peregrinos de Frómista, numa manhã de junho, atendeu um motorista de táxi. Em 21 anos de hospitalaria ela nunca havia presenciado tal cena. O taxista trazia duas mochilas, devidamente identificadas, e colocou aos seus pés.
– São de dois peregrinos.
– Dois o quê? – não acreditou Carmen.
Pois é, os peregrinos haviam contratado o táxi para levar as mochilas para o Albergue Municipal. Fariam a peregrinação tal como peregrinos, ou seja, fantasiados com roupas tradicionais, tecido leve, cor caqui, botas de solado resistente, cajadinho básico de alumínio, e uma pochetezinha na cintura, com dinheiro para o menu ou o bocadilho num dos muitos bares existentes no Caminho, credencial de peregrino adquirida em alguma das associações de amigos e quando chegassem...
Pois é, quando chegaram, pediram para ver o albergue, não gostaram e foram para o hotel ao lado.
– Não recebo mais mochila aqui –, vacinou-se Carmen – Este não é o espírito do Caminho.
Eis a questão, qual é o espírito do Caminho?
Ao longo dos últimos anos o Caminho de Santiago de Compostela mudou muito. Não só para os que o fazem, mas também para os que trabalham nele, incluindo aí a Igreja, poder público (local e provincial), empresariado e os que veem nele a oportunidade de ganhar dinheiro e muito – caso dele, sim, ele mesmo, o próprio, Paulo Coelho. A começar pela rota, que a cada dia muda, com o surgimento de um novo negócio ou interesse, do empresário ou mesmo do poder público – como, aliás, me confidenciou um dono de restaurante em Carrión de Los Condes. Nessa que é uma das últimas cidades importantes da Província de Palencia, antes de o Caminho entrar em León, a rota original foi alterada para fazer com que os peregrinos passem por ruas onde funcionam negócios dos apadrinhados do poder...
Hoje, o Caminho de Santiago é importante para a própria sobrevivência da Espanha. Não somente como polo de difusão cultural, pelo rico patrimônio histórico, arquitetônico, arqueológico e o escambau, mas especialmente como atração turística.
Peregrinar o Caminho nos dias atuais, além das muitas motivações que o próprio peregrino enumera ao justificar sua presença na rota, virou turismo – e turismo barato, para a família inteira, de um dia, uma semana, ou uma quinzena, fácil de fazer, principalmente em meio à crise que se abateu nas principais economias do mundo, notadamente na Europa.
Peregrino virou turista! Ou melhor: turista virou peregrino!
Ou seja, estabeleceu-se a maior confusão na terceira maior rota de caminhantes do mundo – depois da Palestina, a primeira, e do Vaticano, os chamados romeiros.
A questão, como demonstra o episódio dos peregrinos que mandaram as mochilas pelo taxista, já alcança a questão ética, e o turista não se faz de rogado (não no caso, cujos protagonistas preferiram o hotel...) em utilizar a estrutura mantida para atender o verdadeiro peregrino.
Ou isso é uma bobagem? Talvez seja, coisa de purista – e nesses tempos bicudos de crise, há de ser pragmático.
Afinal, turismo movimenta o comércio, o serviço, faz a riqueza circular!
O próprio ayjuntamiento, o equivalente à prefeitura, não se preocupa em dar uma orientação clara no caso do atendimento prestado ao peregrino no albergue municipal – que geralmente é bem equipado, recebe recursos do governo da Província e mesmo assim ainda cobra. Enquanto um municipal cobra 4 euros, por exemplo, caso do albergue municipal Cluny, de Sahagún, um particular pode cobrar 10 euros, caso do El Pajar, de Agés. Além de tudo, a solidariedade faz parte do Caminho, e mesmo que o hospitaleiro, ainda que de um albergue municipal, de associação ou da igreja, perceba que está diante de uma fraude, será improvável que não aceite o turista... digo, peregrino. Ainda mais se estiver portando uma credencial. E tem também aquela bula papal...
A situação vai recrudescer nestas férias de Verão, a primeira depois da crise, e que terá seu pico nos meses de julho e agosto. Por enquanto, os albergues estão vazios, ou com muito espaço vago.
Domingo passado, 21 de junho, em Sahagún, por exemplo, das 64 camas disponíveis, somente 10 estavam ocupadas. Apesar disso, enquanto degustava um menu peregrino, com direito a coelho no segundo prato!, chegaram uns 10 peregrinos (ou seriam turistas?, não importa!), que movimentaram o restaurante. Eles haviam caminhado cerca de 15 km e estavam sedentos e famintos. Falei com alguns deles e, para provocar, perguntei se eram turistas. O líder não se ofendeu e corrigiu:
– Somos peregrinos de final de semana! – inovou.
Pois é, esse é o espírito. Se fazem o Caminho, são peregrinos. No caso, o grupo se reúne uma vez por mês, num domingo, e fazem um trecho. Assim, pretendem um dia chegar a Santiago de Compostela. Mas, pela condição, dormem de sábado para domingo num hotel e quando terminam a etapa se confraternizam e retornam numa van de apoio aos seus lares.
O que deve ser considerado, finalmente, é que essas adequações do Caminho de Santiago são sinais do tempo. Conversando com empresários do setor de serviços sobre o assunto, de modo geral, eles estão tranquilos. No fundo sabem que há mercado para as várias faixas de renda e, no caso de uma classe ser incrementada, naturalmente a outra terá benefícios.
César, de Calzadilla de la Cueza, está otimista com as perspectivas deste Verão. O pequeno povoado está estrategicamente localizado a 17,2 quilômetros de Carrión de Los Condes, após uma planície fatigante! Se quiser evitá-lo, o melhor é que durma em Carrión e o atravesse em direção a Lédigos (6,2 quilômetros após) ou Terradillos de Templarios (mais 3,3 quilômetros).
Agora, se você vem de Frómista, parar em Carrión, depois de 19,2 quilômetros é pouco; e inevitavelmente você terá que dormir em Calzadilla de la Cueza. Lá, a única opção é o empreendedor César. Ou você vai para o hostal dele, o Camino Real, na faixa dos 20 euros em quarto individual, ou fica no albergue, também dele, a 6 euros – e terá como hospitaleiro o baiano Sidney, que veio para estudar na Espanha e foi ficando, ficando, ficando. Diz que nunca mais voltará ao Brasil...
Negócios do Caminho...

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