Em Pamplona: a síndrome do terceiro dia...
Hoje, há 10 anos, completei a terceira etapa de minha peregrinação
pelo Caminho Francês, de Zubiri até Pamplona, algo em torno de 21,1 quilômetros.
Foi um momento crucial, a síndrome do terceiro dia, quando me perguntava e me
perguntava: “o que estou fazendo aqui?!?!?!”
#10yearchallenge
#pedrasdocaminho
#xacobeo2021
O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da
trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!
DOMINGOS E OS AMANTES DO BRASIL
No primeiro
domingo no Caminho conheci Domingos, natural de Benin, na África – que,
orgulhoso, diz ser a terra do vodú... –, e que reside em Versalhes. Entre as
coisas que pude entender na sua língua enrolada, contou sobre famílias de seu
país que foram morar na Bahia, e relacionou o vodú, candomblé e o escambau.
Lembrar de Domingos me fez recordar muitas das pessoas, provavelmente
inesquecíveis, que estou encontrando no Caminho. Antes mesmo de iniciar o
Caminho coloquei em minha cabeça que, muito mais do que paisagens, monumentos,
cultura, o Caminho são as pessoas, sejam peregrinos, sejam os que convivem com
essa rotina de muitos séculos.
Sempre que
posso, fotografo... Maria Camino me abrigou em Sain Jean Pied de Port – duas
diárias, cada 25 euros, e mais 5 euros de um bocadilho que me salvou na
primeira etapa... Ela mesma duas vezes peregrina até Santiago. O negócio deu
tanto certo que possibilitou a compra de um pequeno sítio nas cercanias de
Saint Jean, onde planta verduras e frutas – a banana que me serviu, contudo,
era das Ilhas Canárias.
Domingos
encontrei na segunda etapa, na saída de Roncesvalles. Ele já vinha do trecho
francês, não lembro exatamente, mas após Le Puy, e tinha um pique muito forte.
Acabamos tomando café da manhã juntos no primeiro bar do trajeto e trocamos
ideias, ele falando um francês, misturado com inglês e espanhol, e eu com meu
portunhol e alguma coisa em inglês. Se não nos entendemos completamente, pelo
menos não discutimos e o papo rolou fácil, animando a caminhada.
Sua
motivação – aliás, como a da grande maioria com quem tenho falado e indagado –
é a aventura, aliada à fé numa energia superior. Quase sempre esses peregrinos
não revelam a religiosidade, mas todos, pelos menos os que confessaram, eram
católicos. Acho que essa discrição é fruto do desgaste da Igreja, alvo de
tantas denúncias, e de seu eventual afastamento do rebanho – mas que investe
forte na peregrinação, pelo menos na Espanha. Para a qual, tanto quanto, a
peregrinação é um negócio.
O português
Pedro, que está fazendo o Caminho de bicicleta, peregrina por aventura e
aproveita as férias. A bicicleta veio de trem, não é uma “Brastemp” e pesa 13,5
quilos. Na primeira etapa, com muitas subidas, em muitos trechos Pedro a
empurrou. Contei que a bicicleta especial de um amigo, de carbono, que fará a
travessia da Califórnia, nos Estados Unidos, pesa 3,5 quilos e ele delirou...
Católico e louco por aventura, Pedro – que estava fazendo 47 anos naquele
sábado (dei-lhe um pedaço do Lindt que comprei no freeshop) – levava um
altímetro e, apesar de sua incredulidade na capacidade da máquina, confirmou o
ponto mais alto dos Pirineus a 1.430 metros.
Outro
figuraça acabou de passar agora por aqui – estou escrevendo sentado na cama
(desta vez na parte de cima do beliche), cama número 33 (ainda falta muito para
alcançar...), no novo e grande albergue municipal de Pamplona. Tem capacidade
de 112 camas, mas é muito mais moderno que o de Roncesvalles – aquele casarão
medieval a que já me referi. É um belga – que não me lembro o nome, mas que
sempre que me vê diz “Olá, Luiz!!!!”. Sentamos na mesma mesa para comer um menu
do peregrino em Roncesvalles. Acho que já falei da sopa de batatas, truta frita
com batatas e iogurte de sobremesa (ele me deu o dele, o que me ajudou na manhã
seguinte até tomar o café da manhã no Caminho com o Domingos...), regado a
vinho de Navarra e água.
Ah! E de
outros três brasileiros que ainda não tenho fotos. Um é o..., como é mesmo o
nome dele? De Ribeirão Preto, vendeu a sociedade que tinha numa universidade,
uma dezena de cursos, negocião, jogou tudo para o espaço para viver a vida. Diz
que vai comprar uns boizinhos para colocar na fazenda dos pais... Tem 50 anos,
mas os cabelos brancos aparentam mais.
Nos
conhecemos na minha segunda etapa, mas a primeira dele, pois iniciou em
Roncesvalles. Ele leva fraldas de pano para se enxugar, porque sua pele é
sensível. Sei disso, pois em Pamplona colocamos as roupas molhadas na mesma
máquina para secar. Ele pagou uma rodada da máquina, eu paguei um chocolate na
máquina que tem na lavanderia. Ao final, vai se encontrar com a esposa em
Madri... Era o que eu queria... com a minha, claro! Foi ele que,
coincidentemente, providenciou o meu reencontro com meus óculos, que havia
perdido quando fotografava a medieval “Puente de la Rabia”, em Zubiri. Uma
peregrina achou, ele estava junto; ambos seguiram para Larrasoaña, mas no local
que os óculos caíram no chão, junto ao rio, outro peregrino também tomou
conhecimento. Ao refazer o percurso desde a hora em que havia trocado de
óculos, pelo escuro, acabei localizando o peregrino, que ficou de conversar com
a dupla, pois sabia exatamente quem era, e deixar com algum hospitaleiro em
Larrasoaña.
Pois não é
que no dia seguinte, com o compromisso de parar no albergue de Larrasoaña para
pegar os óculos (naturalmente levei um reserva e estava tudo bem...), encontrei
o... Ribeirão e a peregrina exatamente no ponto onde sairia do Caminho para ir
até o albergue – que fica a uns 200 metros. Eles estavam escrevendo um bilhete
para mim num mural do Caminho. Demais, né? Agradeci aos dois e fui até o
albergue...
Mas haviam
escrito que estava em cima de um móvel na entrada principal e a porta estava
fechada. Bati e ninguém apareceu...
Vi um senhor
numa casa em frente e fui ao seu encontro. Santiago – mais uma figura. Adora o
Brasil e os brasileiros – Ih! Lembrei de outros dois espanhóis que encontrei e
que também amam as coisas do Brasil. Aliás, aproveitando a sequência de
parênteses, o que tem de espanhol que gosta do Brasil não é brincadeira. O
Lisbôa já havia me advertido disso. Aí, eu aproveito!!! Nesta segunda-feira, no
café da manhã, que acabei tomando em Larrasoaña, logo depois de conhecer
Santiago – que mantém um Museu do Peregrino, com coisas que ganha de
peregrinos. Ele tem um cantinho com bandeiras do Brasil, camisa do Ronaldo
Fenômeno, foto do Ayrton Senna... O que me deu de presentes e cartões,
brincadeira! Ele dizia, leva mais alguns, divulga lá no Brasil. Em minutos, me
dava mais um montinho...
Mas... e o
responsável pelo albergue? Afinal foi para isso que busquei informações com
ele. “Daqui a pouco chega o pessoal da limpeza...”, me tentava tranquilizar. E
depois de um papo com Santiago – que me indicou o café onde conheci outro
espanhol amante do Brasil – fiquei alguns minutos na praça ajeitando minha
mochila, quando vi uma senhora entrando no prédio. Não era da faxina, mas uma
hospitaleira, que me entregou os óculos.
Resolvida a
questão, aceitei a sugestão do Santiago e fui tomar o café da manhã no bar
indicado. Esse outro espanhol foi muito engraçado. Tinha outros estrangeiros no
bar, mas quando disse que era do Brasil, da terra do Santos Futebol Clube, do
Rei do Futebol – e quem no mundo não conhece essa dupla!!!, coisa de deixar
qualquer santista com muito orgulho, rolando de rir de outros times, que nem
vou citar, que não tem história, não tem cultura, lamentável... O papo foi se
prolongando até que versou sobre música e eu pedi para ele colocar uma
brasileira. Não é que o bonachão abandonou o balcão, veio se sentar na mesa
comigo, trazendo junto um grande livro com nomes de cantores e músicas e ia falando...
Eram CDs que ele dizia ter. Várias coleções... sertanejo, Roberta Miranda,
Chitãozinho & Chororó (claro que com sotaque navarro..., o que ficava mais
engraçado), Caetano, Chico Buarque, Tom Jobim... Ele falava alto... e eu
acrescentava... “É um especialista, é um especialista!!!”. Ele não parava.
Percebi pelo vidro da janela que vinham uns quatro peregrinos e avisei. Ele não
deu pelota (“eles esperam...”) e continuou recitando os grupos musicais e
cantores brasileiros.
Um dos
peregrinos que entrou, aproveitou o clima e brincou, sem saber de quem ele
estava falando...
– São
peregrinos?
Outro
espanhol que revelou seu amor pelo Brasil foi o que me preparou um tremendo
bocadilho em Zubiri, logo após reservar a vaga no refúgio e ter localizado o
paradeiro dos óculos...
Ao saber que
eu era brasileiro colocou um CD com músicas de um show ao vivo de Roberta
Miranda. Ele estava encerrando o expediente, mas ficou tão alegre, que cantava
a guarânia de Roberta, enquanto tomava uma mistura com Campari preparada pelo
funcionário – que também arriscava um trago. Ao perguntar se ele tinha comprado
ou ganho o CD ele resumiu: “Internet!”
E ainda me
avisou: “Você precisa conhecer o Pepe... Ele sim, adora o Brasil”. Os outros
dois brasileiros são um casal, Graciliano, de São Luis, do Maranhão, e a
esposa. De 2003 até agora fez o Caminho seis vezes. As duas últimas com a
esposa – juntos fazem o terceiro.
Eles estão
andando desde Le Puy, na França. Ao chegar a Saint Jean Pied de Port – eu os
conheci na sede da Associação – eles já tinham caminhado cerca de 700
quilômetros. Contam com entusiasmo que o lado francês é demais e diz que
preciso fazê-lo. Aliás, não é a primeira pessoa que diz isso.
Quem sabe,
um dia.
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