Família em férias no Caminho de Santiago
1º de julho, há 10 anos, constatei os efeitos
do início das “vacaciones” no Caminho de Santiago, em minha 26ª etapa peregrinando
o Caminho Francês, de Portomarín a Palas de Rei, com cerca de 25 quilômetros...
#10yearchallenge
#pedrasdocaminho
#xacobeo2021
Os textos abaixo foram publicados no primeiro livro da
trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!
ARREPIOS A CADA METRO...
Não posso
negar: os pés doem ao chegar a Palas de Rei, após deixar Portomarín e completar
a etapa 26 com mais 25,1 km.
Considero normal,
ou inevitável.
Afinal,
depois de peregrinar cerca de 733 km, em 26 dias – uma média de 28 km por dia!
– o corpo há de sentir. Só o corpo? Muito mais. Vai levar tempo para assimilar
a dimensão dos sentimentos.
Os
quilômetros finais me arrepiam a cada metro.
OBA, OBA!
VACACIONES NO CAMINHO
A Europa
está em férias escolares e isso é fácil constatar no movimento dos últimos dias
no Caminho de Santiago de Compostela, especialmente nos albergues de peregrinos
da rota jacobea. Mas, o que tem a ver a ocupação dos equipamentos da
peregrinação com as vacaciones espanholas – de resto dos demais países da
Comunidade Europeia?
Tudo –
apesar do desconforto que essa invasão gera ao verdadeiro peregrino. Frise-se
verdadeiro, pois o turista, ora em grupos de adolescentes, ora acompanhados de
pais, avós..., também se considera peregrino, embora seja uma fraude...
Comentando o
assunto com um monge beneditino, que não tem qualquer dúvida sobre o “espírito
do Caminho”, além de possuir uma histórica experiência no atendimento a
peregrinos, ele concorda que se trata de um desvirtuamento. Em cita dois tipos
que interferem com o peregrino: o turista, que como se observa – e em seguida
darei exemplos – ocupa o espaço do peregrino; e o ladrão, que se infiltra no
albergue para furtar, naturalmente, o peregrino...
Sobre
furtos, o monge me contou um caso – um único, talvez o mais recente, mas
“inadmissível!”, e eu lhe contei outro, absurdo. Quem me relatou foi a própria
vítima, o brasileiro Ricardo, que conheci em Samos, e que teve furtadas as
botas no albergue paroquial em Hospital de Órbigo. Teve que comprar outras em
Astorga. O prejuízo não fica só pela despesa, pois se soma o risco de usar
botas sem o necessário amaciamento...
Sobre a
superlotação provocada pelo turista, no sábado 27, por volta das 16 horas,
ingressei no Albergue Municipal de Peregrinos (ô mania oficial de enfatizar o
“espírito” do Caminho, por apenas 6 euros), em Cacabelos, chegando de
Molinaseca – depois de 23,3 km de peregrinação. Percebi crianças com duas famílias,
respectivos pais, avós. Cheguei a conversar com o grupo e um pai me disse que
sua filha tinha 12 anos e estava sim peregrinando, mas em “tramos”, ou seja, em
trechos. E só nos finais de semana!
Nesse dia
fui um dos últimos a chegar, número 49, para 56 vagas. Sai para cear etc e tal,
quando retornei, já na hora de fechar as portas, percebi que um casal de
peregrinos, autênticos (pois já o tinha visto em várias etapas), estava
dormindo em colchões improvisados em cima de bancos... Dia seguinte, domingo
28, fiz o trajeto de Cacabelos até O Cebreiro, percorrendo 36,5 quilômetros, e
fiquei no albergue municipal (outra vez... só 3 euros) mantido pela Xunta de
Galícia. O Cebreiro é uma cidade turística, estava fervendo. A vista de lá é
fenomenal, lembra a nossa serra gaúcha. O albergue dispõe de 104 vagas, um
mostro, mas muito bem cuidado e preparado para receber peregrinos (?).
Depois de
36,5 quilômetros de peregrinação, mesmo tendo iniciado às 6h30 da manhã,
cheguei por volta das 16 horas. Fui o 93! Como havia passado vários peregrinos,
inclusive alguns que conheço desde Saint Jean Pied de Port... como os italianos
Andréa e Roger... sabia que logo iria lotar. E é o único albergue do local; o
resto é hostal. Eles conseguiram entrar, tudo bem, e logo a hospitaleira (?)
colocou o aviso: não há mais vagas.
Estava
pendurando roupas que acabara de lavar quando um casal espanhol de peregrinos
chegou de bicicleta perguntando sobre o acesso à secretaria. Era por volta das
17h15 e embora soubesse que não tinha mais vagas indiquei a entrada. Foi a
maior confusão, porque queriam a todo custo ficar e a funcionária do albergue
não tinha como abrigá-los. Ou seja, tiveram que pedalar pelo menos mais 10 km
em busca do albergue mais próximo. E se estivessem a pé?
Na segunda,
fiz o trecho de O Cebreiro até Samos (30,6 quilômetros) – onde tem um precioso
monastério beneditino (mil histórias para contar, participei de uma visita
guiada, fiquei mais de meia hora falando com um monge, sobre tudo, de Paulo
Coelho ao “espírito do Caminho”, menos política...) – e no albergue mantido
pela Ordem, muito simples, mas limpo (sem taxa, só doação...), teve espaço para
todo mundo.
Ontem,
terça, completei minha etapa 25 de Samos a Portomarín (33,7 quilômetros...).
Entrei num albergue da Xunta de Galícia (novamente... só 3 euros...) e, apesar
de ter capacidade para 110 pessoas (além de estar apto a ocupar uma escola
localizada em frente...), ao ir até a biblioteca blogar, não havia mais vaga.
Lotado de
turistas e alguns peregrinos – que enfrentam fila para tomar banho, disputam
espaço para uma mesa para o lanche, tropeçam em turistas e ainda são
repreendidos quando, às 6 horas, começam a fazer barulho para se preparar para
a peregrinação e a turistada quer mesmo é dormir... Falei com a hospitaleira...
hospitaleira nada, a gerente do estabelecimento, e ela me confirmou que é só
pagar os 3 euros que o acesso é liberado – para menor, inclusive. Basta estar
com pai ou monitor.
“Aqui não é
só para peregrino”, fez questão de frisar, embora na entrada o nome do lugar
deixe claro que se trata de um albergue de peregrinos... Mas como esse pessoal
está pagando e consome, e muito, usufruindo um turismo barato para uma Espanha
em crise (?), o que tem demais tomar emprestado a estrutura construída ao longo
dos anos – anos o cacete, séculos! – para dar suporte aos que, por algum
motivo, acreditam no poder de transformação do Caminho Santo?
Outro
exemplo dessa lotação encontrei em Sarria (primeira parada, ontem, após
Samos...). Me deparei com um grupo de 50 estudantes de Madri entrando na rota
jacobea. Falei com um dos monitores, Carlos, que contou que se tratava de uma
atividade desportiva extracurricular...
Como Sarria
está distante cerca de 120 quilômetros de Santiago de Compostela, ele contou
que nos próximos dias o grupo fará etapas diárias em torno de 20 quilômetros.
Em seis dias voltam para casa... Engasgou para lembrar onde o grupo iria parar
ao final do dia; mas, possivelmente, iriam ocupar um espaço que, se houvesse
necessidade, seria do peregrino...
Como se
disse, essa agitação tem o seu lado bom, porque movimenta a economia. E como!!!
Por duas bananas paguei 1 euro e 20 centavos, ou seja, cada banana o
equivalente a 1,80 real!!! Por um sabonete desembolsei 3 euros e 60 centavos!!!
Mas, só
isso? Para o monge beneditino que concordou em conversar comigo, não,
decididamente, não. Além de acreditar na importância de se praticar o bom
exemplo – até para intimidar o ladrão de botas... – ele pondera que, ao fazer a
rota por turismo, pode acontecer o momento mágico do encontro com Deus... e aí
ele dá o exemplo de uma jovem que, ao passar férias na rota jacobea, decidiu
fazer seus votos religiosos...
Viva
Santiago!
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