segunda-feira, 1 de julho de 2019

Vacaciones no Caminho...


Família em férias no Caminho de Santiago

1º de julho, há 10 anos, constatei os efeitos do início das “vacaciones” no Caminho de Santiago, em minha 26ª etapa peregrinando o Caminho Francês, de Portomarín a Palas de Rei, com cerca de 25 quilômetros...
#10yearchallenge
#pedrasdocaminho
#xacobeo2021

Os textos abaixo foram publicados no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

ARREPIOS A CADA METRO...

Não posso negar: os pés doem ao chegar a Palas de Rei, após deixar Portomarín e completar a etapa 26 com mais 25,1 km.
Considero normal, ou inevitável.
Afinal, depois de peregrinar cerca de 733 km, em 26 dias – uma média de 28 km por dia! – o corpo há de sentir. Só o corpo? Muito mais. Vai levar tempo para assimilar a dimensão dos sentimentos.
Os quilômetros finais me arrepiam a cada metro.

OBA, OBA! VACACIONES NO CAMINHO

A Europa está em férias escolares e isso é fácil constatar no movimento dos últimos dias no Caminho de Santiago de Compostela, especialmente nos albergues de peregrinos da rota jacobea. Mas, o que tem a ver a ocupação dos equipamentos da peregrinação com as vacaciones espanholas – de resto dos demais países da Comunidade Europeia?
Tudo – apesar do desconforto que essa invasão gera ao verdadeiro peregrino. Frise-se verdadeiro, pois o turista, ora em grupos de adolescentes, ora acompanhados de pais, avós..., também se considera peregrino, embora seja uma fraude...
Comentando o assunto com um monge beneditino, que não tem qualquer dúvida sobre o “espírito do Caminho”, além de possuir uma histórica experiência no atendimento a peregrinos, ele concorda que se trata de um desvirtuamento. Em cita dois tipos que interferem com o peregrino: o turista, que como se observa – e em seguida darei exemplos – ocupa o espaço do peregrino; e o ladrão, que se infiltra no albergue para furtar, naturalmente, o peregrino...
Sobre furtos, o monge me contou um caso – um único, talvez o mais recente, mas “inadmissível!”, e eu lhe contei outro, absurdo. Quem me relatou foi a própria vítima, o brasileiro Ricardo, que conheci em Samos, e que teve furtadas as botas no albergue paroquial em Hospital de Órbigo. Teve que comprar outras em Astorga. O prejuízo não fica só pela despesa, pois se soma o risco de usar botas sem o necessário amaciamento...
Sobre a superlotação provocada pelo turista, no sábado 27, por volta das 16 horas, ingressei no Albergue Municipal de Peregrinos (ô mania oficial de enfatizar o “espírito” do Caminho, por apenas 6 euros), em Cacabelos, chegando de Molinaseca – depois de 23,3 km de peregrinação. Percebi crianças com duas famílias, respectivos pais, avós. Cheguei a conversar com o grupo e um pai me disse que sua filha tinha 12 anos e estava sim peregrinando, mas em “tramos”, ou seja, em trechos. E só nos finais de semana!
Nesse dia fui um dos últimos a chegar, número 49, para 56 vagas. Sai para cear etc e tal, quando retornei, já na hora de fechar as portas, percebi que um casal de peregrinos, autênticos (pois já o tinha visto em várias etapas), estava dormindo em colchões improvisados em cima de bancos... Dia seguinte, domingo 28, fiz o trajeto de Cacabelos até O Cebreiro, percorrendo 36,5 quilômetros, e fiquei no albergue municipal (outra vez... só 3 euros) mantido pela Xunta de Galícia. O Cebreiro é uma cidade turística, estava fervendo. A vista de lá é fenomenal, lembra a nossa serra gaúcha. O albergue dispõe de 104 vagas, um mostro, mas muito bem cuidado e preparado para receber peregrinos (?).
Depois de 36,5 quilômetros de peregrinação, mesmo tendo iniciado às 6h30 da manhã, cheguei por volta das 16 horas. Fui o 93! Como havia passado vários peregrinos, inclusive alguns que conheço desde Saint Jean Pied de Port... como os italianos Andréa e Roger... sabia que logo iria lotar. E é o único albergue do local; o resto é hostal. Eles conseguiram entrar, tudo bem, e logo a hospitaleira (?) colocou o aviso: não há mais vagas.
Estava pendurando roupas que acabara de lavar quando um casal espanhol de peregrinos chegou de bicicleta perguntando sobre o acesso à secretaria. Era por volta das 17h15 e embora soubesse que não tinha mais vagas indiquei a entrada. Foi a maior confusão, porque queriam a todo custo ficar e a funcionária do albergue não tinha como abrigá-los. Ou seja, tiveram que pedalar pelo menos mais 10 km em busca do albergue mais próximo. E se estivessem a pé?
Na segunda, fiz o trecho de O Cebreiro até Samos (30,6 quilômetros) – onde tem um precioso monastério beneditino (mil histórias para contar, participei de uma visita guiada, fiquei mais de meia hora falando com um monge, sobre tudo, de Paulo Coelho ao “espírito do Caminho”, menos política...) – e no albergue mantido pela Ordem, muito simples, mas limpo (sem taxa, só doação...), teve espaço para todo mundo.
Ontem, terça, completei minha etapa 25 de Samos a Portomarín (33,7 quilômetros...). Entrei num albergue da Xunta de Galícia (novamente... só 3 euros...) e, apesar de ter capacidade para 110 pessoas (além de estar apto a ocupar uma escola localizada em frente...), ao ir até a biblioteca blogar, não havia mais vaga.
Lotado de turistas e alguns peregrinos – que enfrentam fila para tomar banho, disputam espaço para uma mesa para o lanche, tropeçam em turistas e ainda são repreendidos quando, às 6 horas, começam a fazer barulho para se preparar para a peregrinação e a turistada quer mesmo é dormir... Falei com a hospitaleira... hospitaleira nada, a gerente do estabelecimento, e ela me confirmou que é só pagar os 3 euros que o acesso é liberado – para menor, inclusive. Basta estar com pai ou monitor.
“Aqui não é só para peregrino”, fez questão de frisar, embora na entrada o nome do lugar deixe claro que se trata de um albergue de peregrinos... Mas como esse pessoal está pagando e consome, e muito, usufruindo um turismo barato para uma Espanha em crise (?), o que tem demais tomar emprestado a estrutura construída ao longo dos anos – anos o cacete, séculos! – para dar suporte aos que, por algum motivo, acreditam no poder de transformação do Caminho Santo?
Outro exemplo dessa lotação encontrei em Sarria (primeira parada, ontem, após Samos...). Me deparei com um grupo de 50 estudantes de Madri entrando na rota jacobea. Falei com um dos monitores, Carlos, que contou que se tratava de uma atividade desportiva extracurricular...
Como Sarria está distante cerca de 120 quilômetros de Santiago de Compostela, ele contou que nos próximos dias o grupo fará etapas diárias em torno de 20 quilômetros. Em seis dias voltam para casa... Engasgou para lembrar onde o grupo iria parar ao final do dia; mas, possivelmente, iriam ocupar um espaço que, se houvesse necessidade, seria do peregrino...
Como se disse, essa agitação tem o seu lado bom, porque movimenta a economia. E como!!! Por duas bananas paguei 1 euro e 20 centavos, ou seja, cada banana o equivalente a 1,80 real!!! Por um sabonete desembolsei 3 euros e 60 centavos!!!
Mas, só isso? Para o monge beneditino que concordou em conversar comigo, não, decididamente, não. Além de acreditar na importância de se praticar o bom exemplo – até para intimidar o ladrão de botas... – ele pondera que, ao fazer a rota por turismo, pode acontecer o momento mágico do encontro com Deus... e aí ele dá o exemplo de uma jovem que, ao passar férias na rota jacobea, decidiu fazer seus votos religiosos...
Viva Santiago!

Nenhum comentário:

Postar um comentário