sexta-feira, 5 de julho de 2019

Mais um em mim!


Está na Compostela: também sou Dnum. Aloisium Carolum Ferraz

“Vou continuar o mesmo, com todas as qualidades e defeitos...” Era o que achava ao final da peregrinação pelo Caminho Francês, de Saint Jean Pied de Port a Santiago de Compostela, com cerca de 800 quilômetros, realizada há 10 anos durante 29 dias. Viva Santiago!
#10yearchallenge
#pedrasdocaminho
#xacobeo2021

O texto abaixo foi publicado no primeiro livro da trilogia Pedras do Caminho: Meu Encontro no Caminho de Santiago!

APENAS... MAIS UM EM MIM!

– Você voltará outro!
Nunca compartilhei a ideia de que a peregrinação a Santiago de Compostela seja capaz de me mudar. Quem me conhece há mais tempo pode até achar essa necessidade. Eu não. Estou bem. Tenho ao meu lado pessoas que me amam do jeito que sou, inclusive uma cadela que me obedece e abana o toco de seu rabo quando me vê... exerço atividades profissionais proativas que, além de me manter e a minha família, me dão a oportunidade de ajudar inúmeras pessoas (e se não ajudo tanto quanto gostaria, pelo menos não prejudico...).
Por isso, pelo menos da minha parte, selo o compromisso de que não vou, ou pelo menos não quero e não pretendo mudar. Vou continuar o mesmo, com todas as qualidades e defeitos... apenas, é claro, enriquecido com a experiência de ter feito uma caminhada – que muitos julgam maluca (“gastando sola”, resumiu o “Macarrão” no blog do Jornal da Orla) – de 800 quilômetros sobre solo europeu, a maior parte na Espanha. Um país que passei a compreender melhor e amar seu povo, tanto quanto muitos dos espanhóis que conheci amam o povo brasileiro.
Portanto, sem essa de mudar, mas de agregar, somar: a partir de agora sou apenas... mais um em mim! Afinal, escrita em latim e assinada por Jenaro Fabrício F., Canonicus Deputatus pro Peregrinis, a Compostelana que recebi num anexo da Catedral de Santiago de Compostela me assegura outra identidade. Agora, além de Cebola, Cê, Luiz Carlos Ferraz, Lú, Neguinho, entre outras variações, sou o Dnum. Aloisium Carolum Ferraz.
Aloisium, tudo bem. Mas, para quem nunca teve vocação para coroinha, ainda não me acostumei com Carolum no meio do nome, do qual Carlos teria derivado. O Ferraz se manteve. O Dnum equivale a senhor...
Depois de um dia emocionante em Santiago de Compostela, a cidade repleta de peregrinos e turistas, a grande Feira Medieval ocupando as ruas do Centro Histórico, domingo 5 logo cedo peguei o ônibus que me levou a Finisterre, na Costa da Morte...
Não é a primeira vez que chego ao fim do mundo. A primeira foi no início dos anos 90, quando conheci Ushuaia, na Terra do Fogo, Patagônia Argentina, que também se intitula a cidade do fim do mundo – por ser a mais austral, a mais perto da Antártida. Na ocasião estava com o colega Lauro Tubino, do jornal A Tribuna. Éramos convidados do empresário Pepe Altstut, idealizador da Memorial Necrópole Ecumênica, “a mais alta do mundo”, para apresentar a cidade argentina que estava firmando um convênio de irmanação com Santos... Aliás, como está esse intercâmbio?
Foi uma experiência muito interessante, conheci a neve, andei de snowjet, entrevistei políticos, empresários do segmento turístico e cientistas – na época, um dos focos avançados de estudos era, como deve ser ainda hoje, a destruição da camada de ozônio pelos gases que causam o efeito estufa, especialmente o CO2...
Meus textos foram publicados no Jornal Perspectiva, claro, e no Jornal da Orla. Naquela época o fax era uma revolução e a Internet um sonho... Fosse agora, talvez tivesse colocado tudo num blog.
Nesta segunda vez, o contexto é outro... Finisterre por um longo período foi tida efetivamente como a cidade do fim do mundo – afinal, para os romanos, que acreditavam que ali acabava a terra, o Atlântico era referido como Mare Tenebrosum... Hoje, Finisterre reflete sobre o passado e investe no segmento turismo, em especial buscando recepcionar a legião de peregrinos que cada vez mais chega de Santiago de Compostela. Para isso, recorre a referências sobre a peregrinação na Idade Média aliada à rituais de purificação e de celebração do sol e da fertilidade... E só! Afinal, segundo se conta, após pregar pelos pueblos da Espanha, Santiago regressou à Palestina e foi decapitado por ordem do Rei Herodes (41-44 d.C). Seu corpo foi colocado numa barca de pedra e, milagrosamente, viajou da Palestina à Galícia, chegando à costa em Iria Flavia, atual Padrón... ou seja, nem foi em Finisterre...
O corpo foi enterrado e mais tarde encontrado e declarando autêntico pelo bispo Teodomiro, da então Iria Flavia. Nesse local, por determinação de Alfonso II, Rei de Asturias e León, foi construída uma igreja, dando origem à cidade de Santiago de Compostela.
Em meio a lendas e contradições, Finisterre é simpática. É como um pueblo espanhol tradicional, só que no litoral e, também por isso, atrai turistas de toda a Europa. O grasnar das gaivotas, ininterrupto, garante a trilha sonora do lugar. De seu pequeno centro, com hotéis, pensões, albergues e restaurantes, a rota do peregrino determina que vá a pé ao farol do cabo. O local está distante cerca de 4 quilômetros e é aberto à visitação, com exposição de fotos e informações turísticas. Ao redor, em meio às pedras, o peregrino fará seu ritual de queima de roupas... visando a renovação e a purificação... de preferência, ao pôr do sol...
Num mastro de madeira, em quatro línguas, a mensagem: “Que a paz prevaleça na Terra”.
Como estou com as roupas contadas, duas bermudas, três camisetas, três cuecas, três pares de meia... e ainda vou permanecer alguns dias na Espanha, queimar algo, ainda que fosse uma cueca, é um risco. Me foi sugerido queimar as botas... Passei essa parte...
Fui ao farol, a pé, conferi o visual, me emocionei – é difícil não se emocionar depois de tudo que aconteceu... – e voltei para tomar sopa de mariscos, comer uma paella e descansar num piso, apartamento, para peregrinos que se dispõem a pagar um pouco mais...
Sem os pés no Caminho, sigo de ônibus – dotado de wifi, onde concluo esse post – para a casa do amigo José Antonio Soto Rojas, em Santander, que me convidou para descansar alguns dias...

Nenhum comentário:

Postar um comentário