quinta-feira, 2 de junho de 2022

Será que deveria ter ficado em Jaca?

Monastério Real de San Juan de la Peña

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

2ª etapa - Villanúa a San Juan de la Peña (41,1 km)

Sábado – 02/06/2012

Sempre terei a dúvida se deveria ter encerrado em Jaca a segunda etapa de meu Caminho Aragonês! Capital do Reino de Aragão até 1097, hoje integrante da Província de Huesca, da Comunidade Autônoma de Aragão, Jaca está estrategicamente localizada no sopé dos Pirineus; e naquele sábado, 2 de junho, seria uma excelente opção para descansar e me preparar para o que seria o desafio seguinte, de me afastar da rota tradicional do Caminho Aragonês e conhecer o fantástico Monastério de San Juan de la Peña, que fascina com sua história e lendas. Confiante, decidi continuar caminhando...

Diz a placa que sinaliza a chegada a Jaca: “Es precisamente en Jaca donde el Camino de Santiago cambia bruscamente su dirección norte-sur, impuesta por la hidrografia para tomar definitivamente rumbo oeste, Camino de Compostela”. E acrescenta: “Aqui, en esta ciudad restaurada a fines del siglo XI y a la que el rey Sancho Ramirez dotó de sede diocesana y fueros atractivos, descansaban de la dura etapa pirenaica los viajeros procedentes del centro y sur de Europa”.

Até seria o mais lógico ficar em Jaca, pois vinha de Villanúa e já havia caminhado cerca de 14 quilômetros. Mas, efetivamente, esta não foi minha escolha; e, com absoluta certeza, não me arrependo do desafio aceito, da decisão tomada – que alinhavei desde minha preparação ao Caminho, reforcei durante o primeiro dia da peregrinação, iniciada em Somport, e consolidei na noite anterior, ao descansar em Villanúa. Assim, ao iniciar a caminhada naquela manhã já estava certo que terminaria em San Juan de la Peña. Só não sabia o quão difícil seria o Caminho...

Saí do albergue de Villanúa por volta das 8 horas e 40 minutos, pela variante da esquerda do pueblo. Iniciei esta segunda etapa junto com o espanhol Manolo; e, talvez, entretidos com o bom papo ou devido à sinalização de várias trilhas, acabamos indo para a estrada (N330). Discordei em retomar a variante da esquerda e, acelerando o passo, continuei pela estrada – o que foi uma decisão correta, pois em dois ou três quilômetros cheguei ao desvio, à direita, que indicava San Adrián, Aratorés y Borau; e avisei Manolo, que vinha atrás, acenando com o lenço verde e amarelo que estava em meu bordão... e que viria a perdê-lo minutos depois... Segui por uma trilha bem arborizada até alcançar o pueblo de Castelo de Jaca, onde tomei um café com leite, pago pelo amigo Manolo.

Tempo excelente, belas paisagens, em alguns trechos o Caminho reencontra o rio Aragão, muitas fotos, momentos de reflexão; e, após cerca de duas horas de caminhada, cheguei a Jaca. Passava um pouco do meio dia. Como estava me sentindo muito bem, em vez de procurar albergue, localizei uma tenda de frutas, o que no Brasil chamamos de quitanda, e comprei duas laranjas, uma pera, uma maçã e, como a única banana estava machucada, a dona não me cobrou a fruta. No supermercado próximo, comprei água e Aquarius, e parei para fazer um lanche na pequena praça em frente às muralhas medievais da Cidadela – a fortaleza em formato pentagonal, rodeada por um fosso, que foi construída no século XV para proteger Jaca das invasões francesas; e que hoje abriga um Regimento de Montanha.

Aproveitei para conferir o quanto teria de caminhar para chegar ao Monastério San Juan de la Peña e, apesar das informações pouco esclarecedoras dos guias – afinal, o monastério parece não fazer parte do Caminho! –, conclui que, após sair de Jaca (segundo o guia Rother), deveria caminhar cerca de 5 ou 6 quilômetros e, na altura da “fábrica de pretensados”, literalmente, protendido, ou pré-moldados, entrar à esquerda, em direção a Atarés – me desligando do Caminho.

Pela ilustração desse guia – relativamente mais preciso que o guia de El País/Aguilar –, o trecho seguinte seria um pouco maior, ou seja, entre 8 a 10 quilômetros. E, pela mesma ilustração, de Atarés até San Juan de la Peña, o percurso seria ainda maior, em torno de 10 a 12 quilômetros... Ou seja, para concluir meu segundo dia de peregrinação ainda faltavam de 23 a 28 quilômetros?!?!?

Se eu fosse considerar os 14 quilômetros de Villanúa a Jaca, totalizaria neste dia de 37 a 42 quilômetros, uma maratona!!! “Tudo bem”, admiti. Outra opção seria seguir pelo Caminho Aragonês até o Hotel Aragón, entrar à esquerda em direção a Santa Cruz de la Serós. Aparentemente, seria a mesma distância; mas me incomodava o fato de ter que usar este percurso para ir a San Juan de la Peña e depois utilizá-lo novamente para retornar ao Caminho.

Alimentado, segui para a Catedral de San Pedro de Jaca, apontada como hito, ou sinal, nº 2, no programa Hitos del Camino de Santiago (num total de 25) – o hito nº 1 é o Monastério Hospital de Santa Cristina de Somport, destacado no post anterior, sobre a primeira etapa do Caminho Aragonês.

A Catedral é reconhecida como uma joia do românico espanhol, fruto de várias etapas construtivas ao longo de mais de um século, com início no final do século XI, 1077, por iniciativa do rei Sancho Ramírez, e apontada como peça chave do Camino Aragonês. Até às duas horas da tarde percorri os ambientes da igreja, seu rico museu, o claustro. Ao final, retomei o Caminho, buscando como referência a fábrica de pretensados.

No blog e nos dois primeiros volumes de “Pedras do Caminho” comentei que, durante a caminhada, o peregrino recebe sinais; daí a importância de estar sempre atento às pedras do caminho, às árvores, aos bichos, outros peregrinos, enfim a todos os signos que o cercam, pois são muitos – embora em número muito menor do que os que proliferam na confusão urbana. Daí, também, a importância, pelo menos para mim, de caminhar só, concentrado, forte, preparado para... qualquer eventualidade. Foi com este ânimo que avistei, naquele sábado, do outro lado da pista, a fábrica fechada, e, ao mesmo tempo, no meu lado da pista, um homem... Passei por ele, continuei a caminhar e parei em frente a um pequeno poste de madeira, meio inclinado, com quatro placas: “Atarés, San Juan de la Peña”, “Santa Cília”, “Jaca” e “Puente la Reina”.

“Cheguei ao ponto”, pensei. Fiz a foto e, ao olhar para trás, o homem estava parado, me observando. Vestia roupas de peregrino, trazia uma pequena mochila às costas e, nas mãos, em vez de um bordão, carregava uma lata de tinta amarela e um pincel... Seu nome, Melchior. Instintivamente, nos aproximamos. Identificou-se como membro da Associação dos Amigos de Peregrinos de Jaca e disse que cumpria a missão de sinalizar o Caminho. Contou que acabara de chegar de San Juan de la Peña, o que significava que todo o percurso que eu iria fazer estava perfeitamente identificado com flechas amarelas, um dos símbolos do Caminho de Santiago. Considerei um bom sinal e nos despedimos. Ele, em direção a Jaca, me desejou “buen camino”; eu, com destino a Atarés, agradeci “muchas gracias”.

A síntese das dificuldades desse trecho de 18 a 22 quilômetros do Caminho Aragonês, quando durante quase três horas lutei pela minha sobrevivência, contei no post do dia 3 de junho passado, “Sonhando com o Santo Graal”, escrito ainda sob a forte emoção da experiência. Mas vale a pena fazer outros registros...

O primeiro trecho, de 8 a 10 quilômetros, é exuberante. Repleto de subidas e descidas, mas incrivelmente belo, como deve ser o paraíso. Enfrentei momentos de extremo cansaço, e numa das vezes tirei a mochila de minhas costas, me estiquei no chão e registrei numa foto... Começava a entender a trilha solitária e aos poucos ia me convencendo que não encontraria mais ninguém.

Depois de muita expectativa cheguei a Atarés. Tinha certeza que, se fosse preciso, estava preparado para caminhar outro trecho semelhante – depois, é claro, de tomar uma xícara de café com leite e comer alguma coisa... O pueblo, contudo, se resume a cerca de 30 casas e nenhum estabelecimento comercial. Apenas uma bica pública de água pura, gelada, que usei para encher as duas garrafas de plástico que carregava e que estavam vazias. Ao conversar com alguns moradores que me cercaram enquanto descansava, constatei que não teria qualquer apoio até San Juan de la Peña. A única opção era seguir em frente. E foi o que fiz.

Quando deixei Atarés, às 17 horas e 56 minutos, tirei duas fotos: de frente, congelei o que me esperava, ou o que achava que me esperava; virei de costas, disparei e dei adeus ao pueblo.

Foram mais 10 a 12 quilômetros de subidas e descidas e muita luta, comigo mesmo, para vencer o cansaço, recompor minha respiração, o senso de direção na busca dos sinais que Melchior garantira que havia feito. Muitas subidas íngremes pareciam escadas. E subiam, subiam, subiam... Hoje, recorrendo a mapas e informações sobre o lugar, não está claro como o trecho é difícil. Olhava sempre para o meu relógio, passava das 19 horas: dava passos durante 1 ou 2 minutos, e descansava 3, 4 minutos, até sentir o coração acalmar; sorvia um gole d’água e voltava a caminhar. A mochila não pesava apenas 10 quilos, com certeza não eram apenas 10 quilos... Sem tirá-la, algumas vezes sentei numa pedra e esperei me recuperar; em outras, fiquei em pé, com as pernas abertas, apoiado no bordão... Rezei muito para não perecer ali, sozinho. Pensei em largar tudo e subir... Mas, e aí? Teria que retornar depois... “Eu consigo, eu consigo”, repetia para mim, para me convencer de que, afinal, eu conseguiria.

Ficava aliviado quando a subida se tornava mais suave e podia enfim caminhar um pouco. Ao mesmo tempo, começava a ficar preocupado, pois, embora desde Lourdes os serviços de meteorologia já haviam alertado para a mudança no tempo, eu agora escutava, sim, trovões, anunciando chuva... Até que, por volta das 20 horas e 15 minutos, ainda dia, mas com o céu encoberto por nuvens escuras, a trilha encerrou e cheguei a uma estrada de asfalto.

Livrei-me da mochila, do bordão, deitei no asfalto morno e agradeci muito, a Deus, a Maria, a Santiago, a mim mesmo, minha família, amigos, enfim, todas as pessoas amadas que passavam pela minha cabeça. E raciocinei: “Não preciso mais subir... caminhar no asfalto é muito mais fácil... deve estar perto... estou salvo...” Agradecia e comemorava, pouco me importando com o barulho dos trovões, quando senti as pernas formigarem e tive a certeza de que, se tentasse ficar em pé, não conseguiria... “Sim, caminhar no asfalto é muito mais fácil, mas e se eu não puder caminhar?!??!”.

A batalha era, efetivamente, contra mim, contra meus pensamentos, e precisava resgatar a confiança no meu preparo físico e mental. Lembrei que carregava algumas barras de proteína, peguei uma e, lentamente, passei a mastigá-la. Fui me aquietando e voltei a sentir as pernas... Percebi os pingos da chuva e, antes de voltar a caminhar, coloquei a capa na mochila e a capa sobre o meu corpo. Caminhei pelo asfalto, devagar, pelo menos mais uns 30 minutos, sem se importar com a chuva que, rapidamente, parou. Mesmo assim permaneci de capa...

Revendo agora os arquivos de fotos, constatei que não tenho imagens desse trecho, entre Atarés a San Juan de la Peña... Sei que este texto poderá auxiliar o leitor a ter uma ideia do que passei, mas dificilmente mostrará o que aconteceu. Quem sabe um dia, como fizeram os antigos, tentarei desenhar como me pareceram aqueles momentos...

Finalmente, avistei o Monastério Novo de San Juan de la Peña: eram 20 horas e 50 minutos, e começava a escurecer. Peguei então a máquina, fiz duas fotos e um pequeno filme... Para quem havia dado os primeiros passos às 8 horas e 40 minutos, meu segundo dia de peregrinação estava terminando, após mais de 12 horas...

Bosque de Villanúa
Cidadela de Jaca, a fortaleza construída no século XV em formato pentagonal

Interior da Catedral de San Pedro de Jaca

Monastério Novo de San Juan de la Peña

Agnus Dei

A peregrinação a Santiago de Compostela é demonstrada, ao chegar à Catedral de Santiago, com apresentação da credencial do peregrino. É neste documento que deverão ser impressos, dia após dia, os selos dos albergues, templos, enfim, dos locais por onde o peregrino passou e que comprovarão a efetiva peregrinação, o que garantirá que o escritório de peregrinações da Catedral emita a Compostelana – o diploma que assegura a veracidade de sua peregrinação, a pé, de bicicleta ou a cavalo, e por um trecho de pelo menos os últimos 100 quilômetros até Santiago de Compostela...

Em outros tempos, conforme revela o escritor Bizén d’o Rio Martínez, a passagem do peregrino por um templo ou santuário mariano lhe dava o direito de obter um speculae, uma prova no formato de uma medalha de chumbo. Ao contrário do selo, que hoje é impresso na credencial, a speculae era costurada em sua roupa. Afirma Bizén: “Seguindo os exemplares que conhecemos, todos têm uma forma pentagonal, feita pela soma de retângulo e triângulo, dando-lhe na posição vertical o formato de uma capela, tendo nos quatro cantos do retângulo, ou saindo destes, pequenas alças para que pudessem ser costurados na roupa ou colocados juntos para formar um colar”.

O pesquisador detalha que a medalha estampava uma imagem da lenda ou invocação do santuário ao qual pertencia. No caso do monastério, o speculae apresentava a imagem do “Agnus Dei”, o Cordeiro de Deus, e o recebiam os peregrinos que faziam este trecho do Caminho de Santiago, desde o Monastério de Montserrat, ou aqueles que se desviavam do Caminho Aragonês, vindos da França. O simbolismo do Agnus Dei pode ser deduzido das orações usadas em épocas diferentes, que destaca sua natureza protetora contra os perigos das tempestades, doenças, incêndios, inundações, e também das peregrinações. Inclusive, a fabricação de falsificações, e até mesmo a pintura ou decoração de genuínos Agnus Dei, foi proibida por várias Bulas Papais. Hoje, o Agnus Dei está no selo oferecido aos peregrinos que passam pelo Monastério Real de San Juan de la Peña – como o que está na minha credencial.

Salão do Monastério Real de San Juan de la Peña

Na origem do Reino de Aragão

O surgimento do Monastério Velho de San Juan de la Peña continua sendo um grande mistério, em meio a informações que, com maior ou menor precisão, confundem detalhes históricos com relatos impressionantes, como a contada pelos guias oficiais do complexo... Diz a lenda, repetem eles, que um jovem nobre de nome Voto caçava nas cercanias do lugar quando avistou um cervo. Ao correr atrás da presa, despencou com seu cavalo no precipício, mas, milagrosamente, o animal caiu suavemente na terra. São e salvo no fundo do barranco, viu uma pequena cova na qual descobriu uma ermida dedicada a São João Batista e, no interior, o cadáver de um ermitão chamado João de Atarés. Voto retornou a Zaragoza, vendeu todos os seus bens e, juntamente com o irmão Félix, voltaram à cova e iniciaram uma vida eremítica.

A lenda é interpretada pelo escritor Bizén d’o Rio Martínez, em texto publicado no informativo da Hermandad de San Juan de la Peña, em dezembro de 2007: “El encuentro del cuerpo incorrupto de Juan de Atarés debe de ser interpretado como muestra de que la cueva está impregnada de inmortalidad, y como lugar de inmortalidad será transmitido a través de los siglos, mediante ese museo de la muerte que son sus panteones, compuestos por el Real, de Nobles, monjes y de toda clase de personas que hacen donaciones, voto, promesas y entregas para ser enterrados en este sagrado recinto”.

No contexto da origem do Reino de Aragão, o Monastério tem importância fundamental. Teria ocorrido no local uma reunião entre guerreiros cristãos e os ermitães Voto e Félix, que decidem por aclamação nomear como seu líder Garcí Ximénez, que os conduziria à batalha para reconquistar as terras de Jaca e Aínsa, ocupadas pelos muçulmanos, um episódio que ficou conhecido como o milagre da aparição da Cruz del Sobrarbe, no alto de um carvalho.

Reinando em Pamplona, García Íñiguez e Galindo Aznarez I, conde de Aragão, passaram então a favorecer o Monastério. O rei Garcia Sanches I concedeu aos monges direito de jurisdição, e seus sucessores, até Sancho, o Grande, continuaram esta política de proteção. Ali passou seus primeiros anos San Íñigo. É no reinado de Sancho I que o Monastério se torna panteão dos reis de Aragão.

Esse Panteão Real está no piso superior do Monastério, onde durante cinco séculos foram enterrados monarcas navarros que reinaram em Aragão, os primeiros condes aragoneses e os três primeiros reis da dinastia ramirense, Ramiro I, Sancho Ramires e Pedro I, juntamente com suas esposas. O panteão ocupa as dependências da antiga sacristia da igreja alta, que data do século XI, e foi reformado por Carlos III, em 1770, seguindo as indicações de Dom José Nicolás de Azara e do conde de Aranda, que quis ser enterrado no átrio. A reforma só afetou a decoração, permanecendo os sepulcros no mesmo lugar. Levantou-se diante deles uma parede na qual se colocaram lâminas de bronze com as inscrições correspondentes, distribuiu-se pela sala uma profusão de estuques e mármores, colocando na parede fronteira uns medalhões com relevos que representam cenas de lendárias batalhas.

O Monastério é cenário da lenda do Santo Graal, que ali teria permanecido de 1071 a 1399, depois de passar por diversas localidades, como a cova de Yebra de Basa, San Pedro de Siresa, igreja de San Adrián de Sásabe, San Pedro de la Sede Real de Bailo, a Catedral de Jaca. A necessidade de atrair os peregrinos a Santiago de Compostela, que passavam por Jaca, teria sido o motivo para que nele ficasse a relíquia. Depois de um breve período em Barcelona, em 1399, o rei Martim I levou o cálice sagrado ao Palácio da Aljafería, em Zaragoza, onde permaneceu por mais de 20 anos. Posteriormente, foi levado à Catedral de Valência, onde está até hoje (*).

(*) Em abril de 2014, cientistas espanhóis divulgaram estudos que garantem que o verdadeiro Santo Graal foi localizado na Basílica de São Isidoro, em León.

Réplica do Santo Graal no Monastério Real de San Juan de la Peña

Histórias, lendas, mistérios em San Juan de la Peña

O cansaço de mais de 12 horas de peregrinação no sábado, 2 de junho, me obrigou a permanecer mais um dia no hotel do Monastério Novo de San Juan de la Peña, só retomando o Caminho Aragonês na segunda-feira, 4 de junho. Afinal, cheguei à planície de São Indalécio quando as atividades do conjunto histórico-artístico estavam encerrando, ou seja, só (e como é muito...) havia visto a bela fachada da Igreja do Monastério, que fica a mais de um quilômetro distante do Monastério Velho ou Real, e conhecer detalhes das preciosidades levaria (e continua levando...) muito tempo, tamanha é a riqueza do patrimônio.

Sim, a decisão de permanecer mais um dia descansando era acertada, pois, da mesma forma que o caminho de ida havia sido penoso, não tinha dúvidas de que o retorno à rota tradicional, via Santa Cruz de la Serós, exigiria ânimo, força, fé – virtudes cultivadas e disseminadas por séculos por San Juan de la Peña, que tem o Grifo como um de seus símbolos; este animal fantástico, criatura lendária com cabeça e asas de águia e corpo de leão: juntos, o Rei do Céu e o Rei da Terra! Além disso, refletia (e continuo refletindo...) sobre os motivos que teriam me conduzido com segurança a San Juan de la Peña... Pesquisando sobre o que se convencionou chamar de rotas tangenciais, li textos que projetam algumas reflexões.

Afirma o escritor espanhol Bizén d’o Rio Martínez: “A crença na eficácia da intercessão dos santos para o perdão dos pecados foi algo generalizado que se arraigou lentamente, fazendo que, imperceptivelmente, à peregrinação com um objetivo específico, ou seja, Santiago de Compostela, fosse adicionada uma rota tangencial, que levava o peregrino a visitar, às vezes por devoção e outras por obrigação, como no caso dos prisioneiros, um famoso monastério ou santuário, buscando a distância e a dificuldade de acesso...”.

O autor cita, como exemplos mais conhecidos no Alto Aragão, que alguns peregrinos continuam a se desviar da rota tradicional para venerar relíquias, uma Virgem, como Nossa Senhora de la Peña, em Aniés; as relíquias de São Demétrio, em Loarre; Virgem de Casbas de Ayerbe; São Martin, em Riglos; o Santo Graal e o corpo de São Indalécio, em San Juan de la Peña; relíquias de São Valero e São Vicente, em Roda; Virgem de Fabana e Santuário de São Cosme e São Damião, em Panzano; Monastério de São Martinho de Corazas, em Rodellar; São Martin de la Val d’Onsera, na Serra de Guara; São Caprasio, em Alcubierre; Santa Marina, em Boltaña; São Vitoriano, em Los Molinos; a arca santa com os restos de São Urbez, em Nocito; os santuários de Santa Maria la Bella, de Castejón; Santa Maria, em Podium de Barbastro; ou Santa María la Blanca, de Berbegal...

Ops! Eu nada sabia sobre São Indalécio (seria mais um motivo, oculto, de estar ali?). É o mesmo Bizén d’o Rio Martínez quem explica sobre o discípulo de Santiago... Para compreender a conexão desta lenda, ele recorda que Santiago, filho de Zebedeu e irmão de João, foi enviado à Espanha para pregar o Evangelho. Nessa tarefa, Maria teria aparecido a Santiago sobre uma coluna de mármore apoiada por anjos. Este pilar ficaria em Zaragoza e em torno dele Santiago teria construído uma capela dedicada à Mãe de Deus. Esta antiga devoção mariana e sua conexão com Santiago é confirmada na lenda de Santa Engrácia e as perseguições de Décio e Diocleciano, ocorridas na segunda metade do século III, citadas por Prudêncio em seu “Peristephanon”, um livro sobre as coroas de mártires. A lenda apresenta Santiago, depois de ter percorrido o Norte e Centro de Espanha, descansando uma noite junto ao rio Ebro, em companhia de sete discípulos que o acompanhavam e posteriormente se encarregaram de pregar na Espanha, chamados os Sete Varões Apostólicos: Teodoro, Tesifonte, Cecílio, Eufrásio, Hesíquio, Torcuato e Indalécio.

Conta-se que durante o reinado de Sancho Ramirez, em Aragão, o abade de San Juan de la Peña, D. Sancho, viaja a Roma em nome do monarca, e nesta cidade Gregório VII se refere a São Indalécio e aos Varões Apostólicos, expressando sua preocupação e interesse pelo lugar onde se encontram os restos mortais do discípulo de Santiago, na antiga cidade de Urci, em local desconhecido. Ao retornar a sua abadia nos Pirineus, D. Sancho passa a buscar pelos restos do santo e sua transferência para o Monastério.

Sobre a translação do corpo deste discípulo de Santiago, Bizén d’o Rio Martínez cita frei Bernardino A. Echeverz, que se baseia em texto de 1084, escrito em latim, pelo monge Ebretmo, da Ordem de Cluny (considerada sucessora da Ordem de São Bento...), preservado nos arquivos de San Juan de la Peña, que conta como os restos de São Indalécio chegaram ao Monastério, em 28 de março de 1084, na festa de Quinta-Feira Santa, sendo recebidos na planície que teria o nome de São Indalécio, pelo rei Sancho Ramirez, seu filho Pedro, o abade D. Sancho, comunidade religiosa, nobres e pessoas dos pueblos vizinhos. Sob o canto do “Te Deum”, houve uma procissão até o Monastério, acontecendo o primeiro milagre com a cura do braço lesionado do abade.

O corpo foi colocado na igreja do monastério e trancado numa urna forrada de prata e cravejada com pedras, que seria destruída pelas chamas no incêndio de 1494, permanecendo intactos os restos sagrados, que foram colocados numa urna simples. Até que, em 15 de julho de 1735, foram transferidos para uma arca de prata esmaltada em ouro, que se encontra no altar-mor da Catedral de Jaca – onde também estive...

No meu caso, até aquele momento sonhava apenas com o Santo Graal – como escrevi na ocasião... Dormi e acordei descansado, com disposição para explorar San Juan de la Peña; e, claro, constatei que tinha bolhas nos pés. Tratá-las, contudo, foi como polir troféus e agradecer cada passo dado no dia anterior. Contabilizava que a estadia não seria econômica e pensava como seria bom se fossem construídas instalações mais adequadas ao modo peregrino, pela importância em passar por este ponto – ainda que naquele momento fosse impossível compreender tudo o que estava acontecendo, ou pudesse refletir sobre toda a simbologia que envolve San Juan de la Peña. Com muita paz, apenas agradecia, e agradecia, e contemplava, e agradecia... como a me preparar para uma magnífica iniciação, sem data para terminar, sobre um aprendizado enorme, comparável à rocha sob a qual foi edificado o Monastério Real e que mistura história, lendas, mistérios... sobre os quais continuo a me aprofundar e, ao mesmo tempo, passo a compartilhar.

O Monastério de San Juan de la Peña está localizado numa região protegida dos Pirineus, na Comunidade Autônoma de Aragão, Província de Huesca, e que envolve o Monte Oroel, a emblemática montanha que se destaca na geografia e rica biodiversidade de Jaca – que foi capital do Antigo Reino de Aragão.

O conjunto histórico-artístico inclui o Velho e o Novo Monastério de San Juan de la Peña, duas edificações que foram restauradas e que são apenas parte das que existiram e que testemunham as sucessivas expressões artísticas de diversas épocas, em especial do românico (séculos XI ao XIII), mostrado na arquitetura, pintura e escultura; e se completa com as igrejas de São Caprásio e de Santa Maria, num pueblo próximo, em Santa Cruz de la Serós, ambas do período românico.

O Monastério Velho de San Juan de la Peña é coberto pela enorme rocha que lhe dá o nome e foi construído em etapas, a partir do século X, servindo a princípio como refúgio de eremitas, até a criação de pequeno centro monástico dedicado a São João Batista. Arruinado ao fim daquele século, foi reaberto no início do século seguinte com o nome de San Juan de la Peña, por Sancho, o Grande, de Navarra.

Ao longo do século XI o centro se ampliou com novas construções e se converteu em panteão de reis e monastério predileto da monarquia aragonesa, que o dotou com inúmeros bens.

A construção de maior importância tem início no ano 1026 por iniciativa de Sancho, o Grande. Em 1071 o rei Sancho Ramírez cede o conjunto aos monges da Ordem de Cluny e favorece sua reforma. Uma data significativa é 22 de março de 1071, quando o Monastério assistiu à introdução na Península Ibérica do rito litúrgico romano, seguido em toda a igreja do Ocidente, que pôs fim ao antigo rito hispano-visigótico. Neste período levanta-se o conjunto que hoje existe.

A reforma beneditina de Cluny não paralisou a construção de um claustro que se finalizaria no começo do século XII.

No seu interior, conforme tive a oportunidade de conhecer, se destacam a igreja pré-românica, as pinturas de São Cosme e São Damião, do século XII, o Panteão dos Nobres, a igreja superior, consagrada em 1094, a capela gótica de São Victoriano, o magnífico claustro românico, o Panteão Real, de estilo neoclássico, erguido no final do século XVIII.

Uma das atrações do claustro românico são os capitéis das colunas, elaborados no final do século XI por um autor anônimo, que desenvolveu um conjunto de cenas bíblicas, onde aparecem, entre outras, o Anúncio aos pastores, a Natividade, a Anunciação, a Epifânia, o Batismo e a Circuncisão de Jesus, a Última Ceia, episódios sobre Caim e Abel, a Criação de Adão e Eva, assim como sua Reprovação e posterior condenação ao trabalho. Também há motivos geométricos e vegetais, com pergaminhos.

O mestre anônimo só teria elaborado os capitéis para duas alas do claustro, já que na segunda metade do século XII o monastério entrou em decadência, acentuada no período seguinte e se estendendo no século XIV.

As dificuldades financeiras, aliadas à perda do poder religioso, deterioraram as construções, que também sofreram incêndios devastadores. O último deles, em 1675, durou três dias e inviabilizou seu funcionamento, exigindo a construção do Monastério Novo, em lugar próximo, sobre uma grande rocha, conhecido como planície de São Indalécio.

A implantação do novo monastério teve início em 1676 e, ao longo das obras, até os primeiros anos do século XIX, os monges tiveram assessoria de muitos profissionais, como o arquiteto de Zaragoza, Miguel Ximenez, que fez do conjunto exemplo da evolução da arquitetura monástica na Idade Média, pela simetria, multiplicação dos claustros e organização, apesar de o projeto original nunca ter sido realizado em sua totalidade.

A fachada da igreja é um dos aspectos mais interessantes do monastério barroco. Destaca uma exuberante decoração vegetal, com diferentes tipos de flores, folhas e caules, e formas figuradas, como cabeças de puttis e de anjos, com escudo de armas na parte superior. Na porta central está representado São João Batista; à esquerda, São Indalécio, que foi discípulo de Santiago e que deu nome à planície onde está o Monastério; e à direita, São Bento, fundador da ordem monástica que se professava em San Juan de la Peña.

As dependências foram abandonadas em 1835 e desde então o edifício passou a deteriorar-se progressivamente.

Foi preciso chegar a um lamentável estado de ruína para, em nosso século, o Governo de Aragão iniciar uma profunda restauração, com investimento de 25 milhões de euros, recuperando o edifício principal e criando o Centro de Interpretação do Reino de Aragão, o Centro de Interpretação do Monastério de San Juan de la Peña e um hotel quatro estrelas, pertencente à Red de Hospederías de Aragão.

Sistema hidráulico em pedra no Monastério Novo

Pinhas e folhas na área dos Monastérios de San Juan de la Peña

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Atravessando os Pirineus

Deixando Somport para atravessar os Pirineus

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

1ª Etapa - Somport a Villanúa (15,9 km ou...)

Sexta-feira - 01/06/2012

Minha despedida de Lourdes, neste primeiro dia de junho, surpreendeu desde cedo, com sol e céu azul. Para quem, como eu, acredita em milagres e crê em bruxas, apesar de consultar o serviço de meteorologia pela internet, não era possível me conformar com a previsão de que o tempo estaria encoberto, com raios, chuvas. Uma previsão que se estendia a Oloron, Somport, Confranc, Jaca, qualquer lugar que fosse passar.

Não foi o que aconteceu. Apesar dos agourentos de plantão, esta primeira etapa valeu o Caminho Aragonês. De Somport, caminhei até Villanúa, cerca de 15,9 km, segundo El País/Aguilar, ou 19,2 km, segundo o guia Rother. Mas, o tempo pode mudar amanhã...

A travessia dos Pirineus, tanto no Caminho Francês quanto no Aragonês, rumo a Santiago de Compostela, é um espetáculo. Descartá-la, ao fazer o Francês, iniciando a peregrinação em Roncesvalles, por exemplo, a pretexto de economizar esforço, é, no mínimo, discutível, e será um arrependimento para toda a vida.

Dispensar a travessia dos Pirineus pelo Caminho Aragonês, então, nem deve ser considerado. São duas travessias distintas. No Caminho Francês, a primeira etapa é marcada por uma acentuada subida, passando de 163 metros acima do nível do mar, em Saint Jean Pied de Port, para 1.430 metros, em Lepoeder, para depois despencar para 962 metros em Ronscesvalles – ao longo de 24,8 quilômetros. Já no Aragonês, o perfil é outro: o peregrino inicia de 1.640 metros de altitude, em Somport, e desce para 959 metros, em Villanúa – num trecho de 15,9 quilômetros (segundo o guia El País/Aguilar) ou 19,2 quilômetros (para o Rother).

Tanto em um quanto em outro, contudo, há uma sequência de subidas e descidas, o que exige um bom preparo físico, para que as etapas seguintes, até Puente la Reina, no caso do Aragonês, quando ele já se uniu ao Caminho Francês, sejam realizadas sem causar muitas lesões pelo corpo.

Meu Caminho Aragonês foi diferente do que havia pensado e planejado nos últimos meses: etapas curtas, sem pressa, muita contemplação, curtindo cada pedra do Caminho. Infelizmente, não consegui seguir este ritmo. As decisões, das quais não me arrependo, foram sendo tomadas sob a emoção de estar fazendo minha terceira peregrinação a Santiago de Compostela, baseada em informações de dois guias impressos, depoimentos de peregrinos e uma vontade de caminhar que me surpreendeu; e que, enfim, ia me deixando cada vez mais feliz por estar caminhando, e caminhava para me sentir mais feliz.

Com ânimo, deixei Lourdes, na França, na manhã de 1º de junho, e fui de trem até Pau; depois tomei outro trem até Oloron-Sainte-Marie e, finalmente, um ônibus até Somport – onde desembarquei, eu e um peregrino francês, próximo ao albergue Aysa. Ele, talvez mais ansioso que eu, entrou no albergue, onde também funciona um café e uma loja de souvenirs, perguntou o preço de um chapéu, não comprou, não tomou café e foi embora – iria reencontrá-lo em Canfranc Estación, usando um pano sobre a cabeça, quando indiquei a ele a oficina de turismo para o selo na credencial (que, aliás, ele não colocou em Somport). Logo após selar sua credencial, lhe ofereci um pedaço de laranja, e, agradecendo sem aceitar, solicitou que eu abrisse sua mochila, sem tirá-la das costas, e retirasse a laranja que trazia. Agradeceu e retornou ao Caminho. Não voltaria a reencontrá-lo. Como, aliás, nenhum outro peregrino, naquele primeiro dia.

No albergue Aysa, ao contrário do peregrino francês, carimbei o segundo selo na minha credencial (o primeiro havia sido colocado pela Associação de Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de Compostela, de São Paulo), tomei café, comprei dois pins que coloquei no meu chapéu, troquei a calça por uma bermuda, conversei com os dois homens que atendiam no albergue, perguntei sobre o tempo, o movimento de peregrinos, pedi a um deles que tirasse fotos minha, tirei fotos da gruta acima do monte, do escritório aduaneiro de Somport, fiz um pequeno filme desse ponto que marcaria o início da minha peregrinação... e mergulhei no Caminho, sorrindo, rindo, falando comigo, agradecendo, sob um sol de quase 30 graus, céu azul, um dia perfeito. Faltavam cinco minutos para o meio dia e o marco oficial indicava o percurso de 858 quilômetros até Santiago de Compostela.

O Caminho Aragonês é lindo, especialmente seu início, neste trecho de Somport até Villanúa, onde, conforme já havia cogitado, iria parar e descansar após o primeiro dia de peregrinação. A natureza é exuberante, com pequenos bosques refrescantes e tomados pelo canto de pássaros; à sua direita, em vários momentos, o Rio Aragão; como pano de fundo, os Pirineus, com picos exibindo neve eterna.

Aspectos da origem da histórica rota são revelados logo no início, nas ruínas do Monastério Hospital de Santa Cristina de Somport, que data do final do século XI, fundado pela Ordem do Santo Sepulcro, de Jerusalém, e, mais tarde, no século XIII, mantido pela Ordem de Santa Cristina, uma organização religiosa, hospitalar e militar, que visava dar proteção à rota peregrina.

Informa a placa do Governo de Aragão junto às ruínas: “En la falda meridional del Somport, el Summus Portus romano, se ubicó a fines del siglo XI um establecimiento al servicio de viajeros y peregrinos que alcanzaría pronta fama, llegando a considerarse unum tribus mundi: uno de los tres hospitales más importantes de la Cristiandad, junto com los del Gran San Bernardo (em su paso de Los Alpes) y el de Jerusalén”.

E mais: “Su existência em tan estratégico paso fue causa y razón de que la vía jacobea que atravesaba el sur de Francia por la ciudad de Tolosa, o Via Tolosana, girara bruscamente em Olorón buscando el camino de Jaca, primera capital del reino aragonês, dando así origen al actual Camino de Santiago em Aragón”.

Embora não se saiba a data exata da fundação do monastério hospital, ele é mencionado em um documento de Sancho Ramírez, escrito em 1078, e citado pelo historiador Ricardo del Arco. Outra menção está em um diploma de Pedro I de Aragão, em 1100.

Alguns desses dados, inclusive, estão no Códice Calixtino, ou Calixtinus Codex, o guia medieval de peregrinos, de meados do século XII, cujo original foi furtado em 7 de julho de 2011 da biblioteca da Catedral de Santiago de Compostela – já encontrado.

Afinal, o hospital era importante aos peregrinos que atravessavam o Summus Portus para chegar a Santiago de Compostela, via Toulouse e o vale de Aspe, em vez de entrar na Península por Mauleon-Licharre e Roncesvalles – via Saint Jean Pied de Port. Quando os peregrinos chegavam até Somport, cansados, famintos e doentes, ficavam no hospital. Segundo o Códice Calixtino e o Liber Sancti Iacobi, um livro que detalha as quatro rotas oficiais do Caminho que cruzavam a França, os peregrinos recebiam três dias de hospedagem gratuita e alimentação. Se estivessem doentes, permaneciam até se recuperarem. Se algum peregrino morria, era sepultado numa pequena cova ao lado da capela.

O declínio do hospital teria começado em 1374 e continuou durante todo o século XVI, devido às guerras entre católicos e huguenotes (protestantes franceses), fazendo com que os monges abandonassem o hospital e se transferissem para sua igreja-palácio, em Jaca.

A partir de escavações arqueológicas e manuscritos sobre a distribuição dos prédios é possível conhecer a aparência que teve o hospital durante o seu auge. Consta que a construção tinha estilo arquitetônico românico. No centro do conjunto havia uma pequena igreja românica, do século XII ou XIII, com uma ábside semicircular direcionado para o Leste. Ao lado da igreja ficava a taberna, do século XVIII, onde os peregrinos comiam. Do outro lado da igreja se encontrava o cemitério, onde ainda é possível ver os túmulos de pedra. O mosteiro também estava localizado ao lado da igreja, onde antes do século XVIII era a taberna. Segundo o historiador Frei Francisco Lalana, mais abaixo se encontravam o palácio do Prior e a capela de Santa Bárbara.

Muito próximo das ruínas do hospital, junto a um condomínio residencial, funciona um teleférico que, no Inverno, leva aos picos nevados. Depois desses marcos, é só natureza, até Canfranc Estación, que possui estação de trem em estilo neoclássico, construída em 1928. Ao sair do pueblo, um marco sinaliza as ruínas da Torre de La Espelunca, ou Torre de los Fusileros, que teria sido construída em 1592, pelo engenheiro Tiburcio Spannocchi, visando repelir invasões francesas. Em 1707 ela foi incendiada, abandonada, e as ruínas afetadas pela construção de uma hidrelétrica, até ser redescoberta em 1999 e ser relacionada ao Caminho de Santiago.

Antes de chegar a Villanúa, o peregrino passará por duas pontes: Puente de Arriba, do século XVI, que teria aumentado sua importância no Caminho de Santiago quando a segunda, a Puente de Abajo, a Pon Nou, foi destruída no final do século XVI por uma inundação do rio Aragão. Ao ser reconstruída, a Pon Nou, ou Ponte Nova, ganhou uma lápide, na qual se lê Ramon me fecic, ou “Ramon me fez”, em referência ao mestre Ramón de Argelas.

Ruínas do Monastério Hospital de Santa Cristina de Somport

Marco do Caminho Aragonês nos Pirineus

Rio Aragão, sempre junto ao Caminho

Ponte Nova, a Pon Nou: “Ramon me fecic”, chegando a Villanúa

terça-feira, 31 de maio de 2022

Somport. “Oui, Saint Jean Pied de Port”!

Mosaico no interior da Basílica de Nossa Senhora do Rosário, em Lourdes, na França

Fiéis, muitos em cadeira de rodas, esperam a vez de passar a mão na parede da gruta, sob a Basílica

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

Não sei se exatamente pela minha pronúncia, mas o fato é que mais de uma vez, em minha passagem por Lourdes, na França, tive que repetir o destino pretendido: Somport. “Oui, Saint Jean Pied de Port!”. Não, Somport, o outro ponto da travessia dos Pirineus, entre França e Espanha, na peregrinação a Santiago de Compostela, que ficou conhecido como Caminho Aragonês, por acompanhar o curso do Rio Aragão e, claro, adotar o nome do antigo reino e atual comunidade autônoma, formada pelas Províncias de Huesca, Teruel e Zaragoza.

O chamado Caminho Aragonês compreende exatamente o trecho entre Somport e Obanos (pouco antes de Puente la Reina), quando se encontra com o Caminho Francês, este sim, cuja travessia dos Pirineus é feita a partir de Saint Jean Pied de Port. Foi o Caminho que fiz em 2009, inaugurando minha aproximação, simpatia, diria respeito ao Apóstolo Santiago o Maior, reforçada em 2010, diga-se de passagem Ano Santo, ao peregrinar o Caminho Português, desde Oporto.

De Lourdes, onde decidi passar antes de continuar o Caminho até Santiago de Compostela não é simples alcançar Somport. Apesar de todas as dicas e possibilidades fornecidas gentilmente por peregrinos, curiosos, taxistas, entre outros, na prática a solução me foi dada pela atenciosa funcionária da SNCF, a rede ferroviária da França, em Lourdes.

“Oui, Saint Jean Pied de Port”, me disse ela, para logo ser corrigida: Não, Somport! Consultou o sistema e me detalhou: de trem até Pau; outro trem, minutos depois, até Oloron-Sainte-Marie; e, finalmente, mais alguns minutos depois, de ônibus, até Somport. Incrédulo pela facilidade, pedi que emitisse os bilheres, o que fez e me esclareceu todos os horários de partida e chegada, para a viagem que seria feita na manhã do dia seguinte.

Ao agradecer com o recorrente “merci”, que foi respondido no mesmo tom – como estão gentis os franceses! –, antes de sair da estação fui abordado por uma jovem brasileira, que não sei exatamente como me reconheceu. “Você é brasileiro?”. Meio desconcertado, concordei: “Também”. Ela queria saber se eu estava indo para os Pirineus.

“Somport”, disse. “Sim, Saint Jean Pied de Port”! Não, repeti: “Somport. Caminho Aragonês”. Embora ela tenha me garantido ter feito o Caminho Francês, a partir de Saint Jean Pied de Port, confessou desconhecer Somport. Desta vez, disse que faria um tour pela região dos Pirineus. Buen Camino!

Basílica de Nossa Senhora do Rosário em Lourdes

Demonstração de fé com o passar da mão na rocha da gruta onde apareceu a Imaculada Conceição

terça-feira, 10 de maio de 2022

Você está com medo, peregrino?

Postado em 10.05.12, 15h23 >>>>

Vou fazer o Caminho de Santiago neste ano...

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

Estaria mentindo se não admitisse que fiquei abalado, e muito provavelmente ainda estou, desde que foi noticiado, no último dia 2 de maio, que na véspera um grupo de peregrinos havia sido assaltado na cidade de Guarujá, ao fazer a rota Passos dos Jesuítas, de Itanhaém a Ubatuba, lançada pelo governo do Estado de São Paulo, e que visa divulgar o caminho que era feito pelos missionários da Companhia de Jesus, no século XVI, tendo José de Anchieta como um dos mais notórios, na tarefa de catequizar os índios do litoral paulista.

Fiquei abalado sim, apesar de que, para mim, o crime era anunciado, uma questão de tempo, considerando os índices de violência na região e a fragilidade de quem se dispõe a fazer a peregrinação. Aliás, num briefing para eventual entrevista de tevê que serviria para reforçar a divulgação da rota, fui logo avisando: “Posso falar sobre o Caminho de Santiago, sem problemas. Mas, sobre este projeto, com certeza, hoje não ousaria fazer peregrinação pelo Litoral de São Paulo”. Um ou dois dias depois, sob alegação de problemas na agenda etc. e tal, coincidência ou não, a entrevista foi cancelada... Minha preocupação, contudo, já havia deixado clara a vários amigos peregrinos, que recordaram desse detalhe quando divulguei o link de acesso ao famigerado noticiário.

Caso isolado? Pode ser que sim. Pelo menos, tendo peregrinos como vítimas e com registro policial, teria sido o primeiro. Mas, com absoluta certeza, foram muitos os episódios de ataques contra pessoas na região, especialmente atletas que utilizam as estradas do litoral para a prática esportiva – seja por meio de bicicleta ou a pé.

Pois não é que, refletindo sobre tais estatísticas, uma semana depois, ou dias atrás, um ultramaratonista (atleta que disputa provas com distância acima dos 42.195 km de uma maratona tradicional), que buscava a quebra de um recorde de resistência e era acompanhado por um ciclista, foi alvo de assaltantes na cidade de Praia Grande, incluída na rota de peregrinação!!!

Meu abalo – e insisto em não dizer medo, pois, assim como não tenho medo, também não sou burro – é compreensível, nesses dias que antecedem meu retorno ao Caminho de Santiago, ainda que não me perturbe relato de assalto a peregrinos na tradicional rota, e não tenha me abalado com essa possibilidade nas duas vezes em que fiz a peregrinação, em 2009, pelo Caminho Francês, e em 2010, pelo Português. Não pretendo ter o extremo cuidado, como cheguei a constatar com este ou aquele peregrino (seja por questão de segurança ou superstição, não me interessa!), de encobrir qualquer informação sobre eventual plano de peregrinação.

Sim, estou me preparando e vou fazer o Caminho de Santiago neste ano... Quando mesmo?!?!?

Pois é, agora tenho algumas dúvidas: executarei o plano inicialmente traçado? Irei só ou acompanhado? Afinal, qual dos caminhos me levará a Santiago de Compostela: Francês, Português, Aragonês, Do Norte, Inglês, Sanabrês, Salvador, de La Plata...? A partir de onde? Iniciarei em qual dia? Qual horário? Até quando?!?!?

Bem, confio no lapso do tempo para retomar minha costumeira tranquilidade...

quarta-feira, 20 de abril de 2022

“Eu sou tu”! Afinal, quem voltarei?

Postado em 20.04.12, 16h09 >>>>

Credencial do peregrino: Caminho Aragonês, de Somport a Puente la Reina

Texto abaixo foi escrito há 10 anos...

Pela enésima vez, repito que sou apenas um peregrino. Igual a milhões de outros que, ao longo dos últimos anos, décadas, séculos, percorreram, no meu caso a pé e por duas vezes, o Caminho de Santiago de Compostela. Ouso ainda dizer que minha fé há de ser semelhante, nem maior ou menor, a daqueles que fizeram a rota jacobea de bicicleta ou a cavalo – as outras duas formas de se obter a Compostelana. E acrescento que ânimo similar há de ter os que foram de carro, ônibus, trem ou avião. Afinal, se para alguns ortodoxos importa a ritualística exata para definir quem é ou não peregrino e, assim, presumir determinada característica especial, para mim, nos últimos anos, isso é o que menos importa para dimensionar a força interior de se acreditar ou não no sentido supremo da vida, seja pela vontade de superar os próprios limites, ou de se encontrar consigo, ou por religiosidade... E ainda, os que não acreditam e garantem que nunca farão o Caminho, que sejam felizes com a sua verdade, afinal, cada um desses é também uma pessoa...

Se sou apenas um peregrino, a partir de agora equivalente a uma pessoa, sou exatamente isso, mais uma pessoa. Nem melhor, nem pior que as demais pessoas. Ou, ainda, tão melhor ou pior quanto as demais pessoas. Isto é, com todas ou nenhuma das virtudes, ou todos ou nenhum dos vícios, de todas as pessoas.

Da mesma forma que uma pessoa, carrego a aparente e absoluta normalidade, ou anormalidade, de uma pessoa, como tantas outras que são possíveis encontrar nos diferentes países do planeta, nos mais distantes (?)... ora, a partir de onde?... Aqui, me desculpe, não há que se falar em distância! Então, normal, ou anormal, a partir de tantas diferenças culturais e antropológicas; tão normal, ou anormal, então, pela sua semelhança.

Sou, enfim, como todos, o que me obriga a recordar uma famosa expressão, reiterada num livro que li há muitos, muitos anos, e que me marcou, de que “eu sou tu”.

Assim, apesar das prováveis e possíveis mudanças que se incorporam à conduta de todo aquele que se dispõe a fazer o Caminho a Santiago, não é possível exigir de quem o faça que aja desta ou daquela forma, nesta ou naquela situação, como se fosse, enfim, uma pessoa diferente, que não é; um iluminado, que não é; um cidadão que haverá de ser sempre modelo de generosidade e paciência; virtuoso nos atos e pensamentos, absolutamente ético e moderado, na concepção aristotélica, em busca incessante pela felicidade. Ah! não apenas a sua felicidade, mas a de todos, indistintamente. Tipo alguém “purificado”, como se a condição de peregrino, e aí peregrino lato sensu, fosse suficiente para torná-lo diferente, uma transformação que, indistintamente, a peregrinação não tem o condão de proporcionar.

Ou tem?

Pelo menos, não comigo. Com tranquilidade e boa dose de humildade, procuro evitar esse tipo de leitura, rechaçando alusões nesse sentido – chegando até, a contrario sensu, não me atrever a censurar quem utiliza a peregrinação para se diferenciar, seja ao admitir que percorreu o Caminho orando o terço e dormindo apenas em albergues religiosos... ou se gabar de ter participado de farras, regadas a muito vinho e pulpo, após um dia extenuante de peregrinação. Certo ou errado, no caso de um ou de outro, cada qual faz o seu Caminho! Afinal, por mais que eu tenha mudado, ao fazer o Caminho do meu jeito (e isso deixei expresso no primeiro livro da trilogia, sobre a peregrinação pelo Caminho Francês, em 2009), continuo sendo eu mesmo – ainda que meu nome tenha sido alterado na Compostelana para Aloisium Carolum Ferraz; o que, aliás, mudou pela segunda vez, para Ludovicum Carolum Ferraz, ao concluir a peregrinação pelo Caminho Português, em 2010.

Sim, 2010, Ano Santo...

Minhas reflexões e os questionamentos a mim lançados, sejam diretamente ou de forma velada, eis que nem sempre ditos, se alternam como numa gangorra, e me inquietam, nesses dias em que me preparo e penso na peregrinação pelo Caminho Aragonês, em junho próximo.

Afinal, quem voltarei?