sexta-feira, 2 de junho de 2017

De noooovo?!?!?!

Bula do Papa Julius II, de 23 de setembro de 1512: Ano Jubilar no Caminho Lebaniego

Não é de hoje que ouço a frase, curta e em tom de espanto, toda vez que alguém me pergunta, ou se não me pergunta eu revelo que estou indo para a Espanha peregrinar o Caminho de Santiago de Compostela. Não costumo me aborrecer com tal manifestação, ainda que a incredulidade possa ser interpretada sob diferentes ângulos, que não os relaciono, deixando ao sabor da criatividade de cada um. Prefiro, aliás, o mais singelo, o sincero desconhecimento de meu interlocutor sobre a dimensão do universo jacobeo. Assim tenho a chance de discorrer sobre a famosa rota de peregrinação cristã, desde a descoberta do sepulcro do Apóstolo Tiago Maior, no primeiro terço do século IX, que fomentou os inúmeros itinerários de diferentes pontos da Europa, notadamente da própria Espanha, Portugal e França.
Desta vez, contudo, enfrentar o questionamento é ainda mais complexo, pois, efetivamente, neste mês de junho peregrinarei o Caminho Lebaniego, que não é exatamente um Caminho a Santiago de Compostela...
O queeee?!?!?!
A resposta é outra grande oportunidade, pois diante do aparente interesse passo a relatar o pouco daquilo que nada sei sobre o que alguns historiadores convencionaram chamar de rota tangencial do Caminho de Santiago.
Capturei este conceito quando escrevia “Busca sem fim”, o terceiro livro da trilogia Pedras do Caminho, que trata de minha peregrinação pelo Caminho Aragonês a Santiago de Compostela. Sem ter a plena noção que estava adotando uma rota tangencial, logo após Jaca deixei o itinerário tradicional para alcançar Atarés e chegar ao Monastério de San Juan de la Peña. O lugar é mágico e sua tradição afirma que abrigou o Santo Graal e as relíquias de São Indalécio, discípulo de Santiago e um dos Sete Varões Apostólicos...
Este é o trecho de “Busca sem fim”, no qual o conceito é explicado pelo escritor espanhol Bizén d’o Rio Martínez. Escreveu ele, numa tradução livre:
“A crença na eficácia da intercessão dos santos para o perdão dos pecados foi algo generalizado que se arraigou lentamente, fazendo que, imperceptivelmente, à peregrinação com um objetivo específico, ou seja, Santiago de Compostela, fosse adicionada uma rota tangencial, que levava o peregrino a visitar, às vezes por devoção e outras por obrigação, como no caso dos prisioneiros, um famoso monastério ou santuário, buscando a distância e a dificuldade de acesso...”.
O Caminho Lebaniego leva o peregrino ao Monastério de Santo Toríbio de Liébana, na Cantábria, onde repousam, além das relíquias do então bispo de Astorga, Santo Toríbio (402 - 460), a Lignum crucis, o maior pedaço da cruz de Jesus Cristo, que Toríbio trouxe de Jerusalém. Não bastassem estas motivações, desde 16 de abril passado o Caminho Lebaniego comemora seu Ano Jubilar. O privilégio foi concedido em 23 de setembro de 1512 pelo Papa Julius II (nº 216 da Igreja Católica, de 1503 a 1513), que, por meio de uma bula (leia o texto na íntegra ao final), estabeleceu que todo ano em que o Dia de Santo Toríbio cai em domingo é Ano Santo, quando é aberta a Porta Santa, a Porta do Perdão. Este ano, por conta das comemorações da Páscoa, a abertura da Porta aconteceu no domingo seguinte, 23. A passagem por ela e a obediência a um minucioso ritual garantem indulgência plenária ao peregrino, que no Lebaniego também é chamado cruceño ou cruzeiro.
A rota ao Monastério de Santo Toríbio de Liébana pode ser realizada a partir de dois famosos Caminhos de Santiago. O peregrino do Caminho do Norte, que cruza a Espanha pelo litoral, pode adotar o desvio a partir de San Vicente de la Barquera. Afastando-se do litoral, serão cerca de 75 quilômetros pela Cordilheira Cantábrica, com belas paisagem e uma vista estupenda dos Picos de Europa. Já o peregrino do Caminho Francês, o mais famoso dos itinerários que levam a Compostela, deve utilizar o desvio em Mansilla de las Mulas, seguindo aquele que é denominado Caminho Vadiniense, com cerca de 153 quilômetros até o Monastério.
Naturamente, é possível somar essas duas rotas tangenciais e atravessar do Caminho do Norte para o Francês e vice-versa, venerar a “Lignum crucis”, e continuar a peregrinação a Santiago de Compostela. Este não será o meu caso. Estou programado para peregrinar tão somente o Caminho Lebaniego – o que não considero pouco.
Ooooutro livro?!?!?!
Quem sabe! Creio que sim. Minha busca pelos mistérios do Caminho de Santiago é permanente. Quanto mais encontro respostas mais indagações surgem, o que cristaliza em mim a máxima socrática de que o que sei é que nada sei. Desde a primeira peregrinação a Compostela, em 2009, pelo Caminho Francês, persigo a história do Caminho de Santiago, que compartilho por meio de livros. O fruto de uma série de peregrinações está detalhado em sete livros, sendo o último deles, “Juntos no Caminho de Santiago, as pedras do Caminho Inglês”, lançado em abril num encontro memorável na Igreja Anglicana de Santos.
Sobre as questões que guardo comigo espero refletir com profundidade nos dias em que peregrinarei o Caminho Lebaniego. Este é o meu foco, nesses dias que antecedem meu retorno à Península Ibérica. Daquilo que semear e colher espero ter o discernimento necessário para compartilhar com alegria, colaborando para fomentar ainda mais a mística sobre o Caminho de Santiago.
Sete vezes estive em Compostela e em duas delas não cheguei caminhando. A primeira foi em 2012, quando para lá me dirigi após peregrinar o Caminho Aragonês. Realizei apenas o trecho de 180 quilômetros, de Somport a Puente la Reina, onde a tradição anuncia que o Aragonês se encontra com o Caminho Francês. Um encontro que na verdade acontece um pouco antes, em Obanos... De Puente la Reina peguei um ônibus a Pamplona e de lá o trem que me levou a Compostela. Relato essa experiência em “Busca sem fim”.
A outra vez foi em 2014, ao resgatar a célebre peregrinação de Francisco, no século XIII, quando, em companhia de minha esposa Sandra, percorremos o trajeto de Assis a Compostela. Na ocasião, comemoramos os 800 anos do feito de Francisco e os 30 anos de nossa união. Atravessamos esses 2.500 quilômetros de ônibus, trem e carro. E foi de carro que chegamos à Plaza do Obradoiro. “Passos do Amor”, da série Descobrindo Novos Caminhos, relata os detalhes da peregrinação do poverello e de nossa viagem.
Nas outras cinco vezes fui caminhando a Compostela e posso assegurar que é emocionante chegar exausto à Plaza do Obradoiro e ajoelhar-se aos pés da magnífica Catedral, onde na cripta repousam as relíquias do Apóstolo Tiago Maior. Os dias peregrinando são verdadeiramente os grandes momentos em que o peregrino se depara consigo e festeja o seu reencontro. É no Caminho que se proliferam os questionamentos, as dúvidas e muitas vezes se encontram as respostas, capazes de gerar novas e consequentes dúvidas. Contudo, nada se compara ao fim, ao instante fatal, ao enfrentar-se a metáfora da morte. Sucumbir e viver na plenitude o instante da transformação, extasiado com a energia do Campo Santo e podendo compartilhar este renascimento com outros peregrinos.
Estou chegando. Santiago, Passa à Frente!
Buen Camino!

Esta é a íntegra da bula do Papa Julius II:
Julio, Obispo, Siervo de los siervos de Dios, a los amados hijos abades de los monasterios de San Facundo y de San Salvador de Onís, de la diócesis de León y Burgos y de San Vicente de Oviedo, salud y apostólica bendición.
Hemos recibido la querella de los amados hijos prior y comunidad del Monasterio acostumbrado a gobernarse por el prior de Santo Toribio de Liébana, de la Orden de San Benito, de la diócesis de León, en que se contiene que es lícito por indulto de la autoridad apostólica al prior y a la comunidad y al Monasterio predichos que todos y cada uno de los fieles de ambos sexos que visitaren devotamente la iglesia de dicho Monasterio en que descansa el cuerpo del mismo Santo Toribio, en otro tiempo Obispo de Astorga, y donde se guardan una gran parte de la Cruz del Señor que allí resplandece con continuos milagros, en la fiesta del predicho Santo Toribio, y cuando cae en domingo en los siete días inmediatamente siguientes  a la fiesta, puedan ganar indulgencia plenaria y remisión de todos sus pecados, de que estuvieren contritos de corazón y confesados; y que los predichos prior y comunidad estuvieron en pacífica posesión de estas facultades desde tiempo inmemorial más allá de cuyo principio no hay memoria entre los hombres.  Sin embargo de esto Juan Sánchez (Saneii), Pedro González (Gundisalvi) y Alfonso Martínez (Marini) y algunos otros clérigos, aún constituidos en dignidad eclesiástica, y religiosos y seglares de las ciudades y diócesis de León, Astorga y Burgos, pretendiendo falsamente que el predicho indulto no se extiende a los siete días inmediatos siguientes a dicha fiesta, han tratado de impedir contra justicia que el prior y comunidad puedan usar y gozar este indulto; y sobre esto han intentado inferir y de hecho han inferido e infieren ciertas graves molestias, perjuicios, impedimentos, inquietudes y perturbaciones con daño de sus almas y perjuicio y gravamen no escaso de los mismos prior y comunidad. Por lo cual de parte de los mismos prior y comunidad humildemente se nos ha suplicado que juzguemos y declaremos que conforme a lo contenido y a tenor de este indulto los dichos fieles cristianos que visitaren dicha iglesia en la fiesta de Santo Toribio y cuando esta fiesta ocurriere en domingo tanto la fiesta como los siguientes siete días inmediatos, en la forma dicha, puedan ganar indulgencia plenaria en remisión de todos sus pecados; y que los dichos clérigos y laicos que se oponen, sean obligados y compelidos a desistir de estos impedimentos, perturbaciones, gocen de este indulto, y que nos dignásemos proveer lo oportuno en benignidad apostólica. Por esto mandamos a vuestra discreción por letras apostólicas que llamados los que hubieren  de llamarse y oídos, juzguéis lo que fuere justo en apelación remota, haciendo que lo que decretareis se observe firmemente por censura eclesiástica. Y a los testigos que se nombraren, si por gracia o por oído o temor evadiesen el cumplimiento de su deber, compeledlos con censura semejante, cesando la apelación, a dar testimonio de la verdad. Y si no pudiereis intervenir todos en estas ejecuciones, intervengan dos o uno de vosotros.

Dado en Roma, junto a San Pedro, año de la Encarnación del Señor, mil quinientos doce, día nono de las calendas de octubre (23 de septiembre), de nuestro Pontificado año nono.

www.facebook.com/CebolaFerraz
#pedrasdocaminho

2 comentários: